Sem parafina no cabelo

Molto grazioso


Gostaríamos de falar da permanência.
Gostaríamos de falar da permanência usando, como está claro, o plural majestático. 
(Também conhecido por "plural da modéstia".) Em renunciando assim à primeira pessoa do singular e adotando a primeira do plural, pretendemos falar da permanência não apenas em nosso nome mas também no de tantos quantos se interessem por tratar de tal tema.)
Confidenciemos: esperamos que seja uma verdadeira delícia, que nos sintamos no playcenter com friozinho na barriga enquanto papai empolga nossa mãozinha com sua garra de roceiro.
Baita segurança.
Admitimos que a máscara da nossa antiga professora Lurdinha de Matemática zapeia diante de nossos olhos. Queremos pregar um nariz de palhaço no esgar da morte.
Sim, gostaríamos de tratar da permanência. Desejaríamos com isso mirar na fenomenologia do espírito hegeliana. Mas não lograremos sequer demonstrar quão desajustados nascemos e esquizóides nos tornamos a cada dia que nunca passa.
A título de exercício, olhemos à nossa volta. Olhemos prestando atenção para ver se atravessaremos vivos mais esta noite vagabunda que nos levará errática ao amanhã em banguela mental e daí aos irrespiráveis confins da tarde forrada de miragens que tomamos por processo cognitivo.
Olhemos.
Olhemos outra vez.
Que é que vemos?
Vemos a tela do computador. As caixas acústicas pelas quais chegam aos nossos ouvidos os acordes de Adagio For Strings, de Samuel Barber, um scanner, racks com centenas de devedês com que vamos empreendendo nossa história digital neste mundo (história que, ao contrário das outras, não sobreviverá à nossa morte).
Vemos ainda uma xícara de café vazia, uma impressora pronta para registrar nosso cotidiano em papel, o jornal de ontem e tudo mais que compõe inutilmente esta nossa vidinha pasmacenta.
Agora dispensemos o majestático.
Você se assustou?
Tudo bem, também me assusto. É meu estado constante. Quando me sinto relativamente confortável, reduzo um ou dois dentes meu estado. De agonia para sobressalto. Na última vez consegui rir. Faz um tempo. Não lembro de que, só que consegui.
Você talvez tenha se assustado por imaginar que tenho o dom da telepatia, adivinhando assim a tralha que te cerca.
De certa maneira, sim, tem algo a ver com transmissão de pensamentos. Não é isso que os humanos fazem o tempo todo ou quase? Pensam tão igualzinho, que é como se todos estivessem tendo o tempo todo o mesmo pensamento?
Às vezes tenho a impressão de que o mundo está coberto por um gigantesco pensamentão que protege todos do desconhecido mas abafa as peculiaridades de cada um qual essa atmosfera poluída que alimenta, oxigena, envenena e mata os seres que habitam este planeta.
Grandes cismas da humanidade, você se perguntaria, grandes cismas como ideologia esquerda-direita, características próprias homem-mulher, dicotomias naturais como criança-homem e outras milhões das dualidades que formam as duas metades do nosso pãozinho francês sem entranhas? Qual. Brincadeira de amadores. Não era essa a idéia de deus, afinal?
Queria hoje falar da permanência.
Olho à minha volta. Tudo permanece mais ou menos no mesmo lugar desde ontem, anteontem, antes de anteontem. Eu também. Meu pai também. Meu avô também.
Estou sentado nesta minha cadeira de rodinhas e encosto reclinável há 190 mil anos. As rodinhas me permitem razoável mobilidade de 180 graus, o encosto atenua a rigidez do meu espinhaço. Embora possa me locomover para ir à cozinha tomar um café e escutar um carro que passa na rua, eu também. Embora me escravize e me torture, me dando esta falta de ar sob o pensamentão que a tudo nutre e devora e que é meu estado mais constante, eu também, embora viva de cometer excursões interiores e, oh, tão simetricamente falso, incursões exteriores, eu também.
Que seria de nós pobres diabos sem a permanência?
Imagine só:
Você desce ao teu escritório, como faz todas as manhãs, todas as benditas, todas as malditas manhãs, sôfrego por ligar o computador, antegozando as melífluas delícias da peripatetice digital, e pumba! o computador não permaneceu.
Gasp! que é que faz agora?
Engole uma ruidosa golfada de ar sujo. Passada a perplexidade inicial, sendo tão perspicaz coisa e tal, nota que outras coisas também deixaram de permanecer, incluindo a impressora, a xícara, o scanner, os devedês, talvez o próprio escritório.
Sendo simpatizante incondicional do pensamentão-mestre, você certamente se poria a apalpar o próprio corpo, à beira do desespero sob o terror de, que azar, ter caído vítima duma malfadada impermanência. E também certamente exalaria o ar dos pulmões, aliviado por deus e seu pensamentão magnânimo ter te poupado. Pelo menos desta vez.

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