Será verdade que o mundo sorri aos inocentes?

A porta da casa se abre de repente abrindo repentinamente a porta da casa.
Ela sai, fechando a porta atrás de si, avançando o pé direito para a soleira e iluminando-se pela luz solar do meio da manhã. Queria estar no meio da tarde. A luz do sol, sólida, afoga todos os pedestres, engole cada detalhe do mundo exterior.
Ela ganha a rua, encostando displicente o portão. O portão é feito de ripas laqueadas de cinza. A fechadura do portão está quebrada.
Assim que se encontra na calçada, ela se volta para a direita, a direção que a afastará do centro da cidade. E, sem preguiça nem vergonha, sem psicologia nem óculos ela começa a avançar pela rua. A rua vai caindo em ligeiro declive, não chegando a se constituir uma ladeira.
Ela veste um conjunto de blusa e saia em tecido estampado cuja cor predominante parece ser o verde. O alaranjado. O mate.
Suas panturrilhas são bem-lapidadas. Mas vigorosas. Robustas demais para sugestões sensuais. Quem caminha atrás pode ver parte da alça esquerda do sutiã bege pela cava ampla da manga da blusa. O sutiã certamente não é novo nem usado. Mas, também seguramente, ainda guardava vestígios de suor de ontem quando ela o vestiu momentos antes de sair de casa nesta manhã ensolarada que deveria ser uma tarde definitiva. A tarde absoluta. E é.
Quem vai caminhando atrás torce para que ela dobre uma esquina. Ou de repente se detenha ante um portão qualquer e toque uma campainha. Mas não. Ela simplesmente desaparece. Como não poderia deixar de ser. Também de repente, como não poderia deixar de ser.
Faltava ainda descrever seus cabelos castanho-escuros, presos na nuca, com algumas mechas fugindo rebeldes da presilha. Faltava ainda especular sobre seus passos nem longos nem curtos, mas decididamente resolutos, talvez determinados pela robustez das pernas. Faltava ainda falar do pouco do rosto que pôde vislumbrar quem vinha caminhando alguns passos atrás.
Faltava ainda denunciar o mais importante: o nome da cidade. E a década aproximada.

dra. Samira quinta quinze e vinte

Ao contrário dos metafísicos, nunca questionei, nem jamais questionaria, por que o mundo existe. Estranharia é se não existisse.
Liberdade não passa duma racionalização provocada pelo desejo delirante qual tantas inúmeras das nossas distorções perceptivas em colisão com emoções, sentimentos, memórias, intuições, e o mais próximo que consigo chegar da noção é deixar, ou tentar, meu pensamento bater asas na direção que lhe aprouver para pousar no galho que lhe der na telha (...) Missão impossível, claro. Você tem de se munir de forças e a encrenca já começa com a escolha das palavras e você então precisa se convencer de que elas não levarão embora seu élan quando perecerem, forem embora, fugirem da luta, desertarem, te pregarem uma peça. Pensamentos batendo asas? Pensamentos pousando em galhos? Veja como imagens empobrecem, metem as palavras dentro duma carapuça para lhes roubar o significado e, pior, a significação. Escrever não é moleza, escrever honestamente, menos ainda.
Tinha parado de ler Pessoa anos atrás, recaída braba meses pra cá. Pessoa pulveriza todos os outros poetas e até prosadores, te monopoliza, te escraviza, te joga num interminável meio-metro de wasteland. Críticos literários há que reclamam dos imitadores de Pessoa. Mas há os que não o imitam? As poesias inglesa e americana, as melhores, não; para eles Pessoa é um mero sucessor de Whitman, cuspo para a ignorância arrogante. Pessoa não é o Shakespeare da poesia do século 20 porque Portugal é insignificante e o português tem tanta importância no mundo culto quanto um dialeto de Katmandu. E, como disse dia desses, continuará desconhecido. A grande poesia é intraduzível. Porque poesia não é pensamento, não é inteligência nem palavra. Os sindicatos esquerdalhos de professores do brasil varonil bem que podiam orientar seus membros a fugir da idade da pedra em que batem cabeças e aprender a ler poesia para ensinar a seus alunos. Um mundo sem poesia é inconcebível. Um mundo sem poesia é este em que vivemos, inviável. Cansei de viver porque, entre outras razões, não tenho com quem falar de poesia. Da maneira como deve ser falada. Da minha maneira.
Saudade doida de pegar fogo. Entendi agora. Sempre bebi pra me incendiar. Apagado sou um fiasco. Bem lá no fundo mamãe deve ter sacado que aquele 14 do 12 tinha parido um foguete latente e, pobre roceira, morreu de medo de me acender. Escuta, liberar, ou ao menos tentar, a fantástica energia retida em cada coração não pode fazer do mundo calamidade maior do que ele já é. Cada um dos nossos controles civilizatórios tem sido inútil até aqui e a pletora de teorias e princípios e planos e metas que vimos elaborando e implantando e observando não tem dado conta de meio por cento do caos que nós mesmos geramos. O Estado Islâmico é apenas o começo, baby. Não há paz, não há convivência possível, quem quiser continuar vivo terá de matar. É assim desde o começo, por que agora seria diferente? Nossas racionalizações bem-comportadas não passam de piadas que inventamos para tentar aliviar o susto de enxergar um monstro quando nos olhamos no espelho. O resto é PC.


Escola de cínicos




Lido na porta do consultório daquele filósofo cínico:
“Trata-se da mais pura verdade”


***


Na parede daquele restaurante
tinha uma placa de fato intrigante:
“Atenção, senhores navegantes!
incluindo cavalheiros e mulheres –

neste local é proibido tinir os talheres”

 

***

 

Aquela modelo é que era fiel – transava com apenas

um time de futebol.


***


Placa na porta do gabinete daquele deputado
que tudo começava mas nada acabava:
“Vendem-se princípios”


***


O escritor devagar
dotado de grande, fino talento
e lábia esperta espetacular
grafava mixto com x e acento
aos ricos, se vendia por ouro
às damas, micava com as pretas
com a língua brigou feito mouro
e lançou-se a feias mutretas
até ser aceito hors concours
na Academia Brasileira de Letras


***


Bares, botecos e similares
são imprescindíveis postos de
abastecimento estrategicamente situados
nos caminhos do ébrio para que possa
aterrissar feliz e seguro ao porre final.


***


Meu porto, navio
é meu horizonte telúrico
minha saída é você
meu barbitúrico


***


Mineiros que debaixo da terra extraem
ouro ou
carvão são homens profundos
Pode-se dizer.
Os que idealizam o mundo, os que têm a
cabeça nas alturas, os
pilotos, astronautas
e invocadores de Ícaro são homens aéreos
também pode-se dizer.
Eu estou doente desta dor,
esta dor de ser um homem raso.


***


Te amar foi me afogar de sede
e engolir todos meus sorrisos secos.
preciso duma ventania


***


Dividido em um,
vi um boneco se aproximar.
Era um homem.


***


Fome

Meu apetite é fácil de saciar
basta enchê-lo de orgasmos
enquanto filosofo sedento de amores


***


Prisioneiro

Chega! Não quero mais falar.
Fechei o cofre da alma,
joguei fora o segredo, a porta
da cela do passado, ah, a porta
da cela do passado, tranquei e atirei
pela janela da noite a chave, que
afundou no mar do tempo, rasguei
o mapa, apaguei as pegadas,
esqueci o caminho. E agora, que
só me restam estas metáforas idiotas,
como saio daqui?


***


Fecho os olhos, conto até cinco.
Se reabrisse agora, te veria?
Se me esquecesse assim, talvez
você me cutucasse dizendo,
acorda!
Conto infinitamente até sete,
durmo.
Conto até oito,
me perco.
Fico com medo de terminar a vida assim.
Abro os olhos.

E não te vejo.

 

***

 

Último Encontro Mundial de Poetas


Através do Centro Internacional de
Radiodifusão Lírica, vates do mundo
(deste, daquele, de vários) decidiram realizar o
Primeiro Encontro Mundial de Poetas.
Depois de trocarem alguns versos,
alexandrinos
incluso,
por meio do Serviço de Comunicações
Oníricas, ficou determinado que o Encontro
realizar-se-ia no Brasil, o mais
impossível dos países.
A princípio, estava a plêiade indecisa
quanto ao local mais apropriado – uns advogavam
Pasárgada,
outros faziam proselistimo a favor de
Itabira,
os mais dotados, equipados com
pseudônimos, batiam seus vários
pares de pés querendo a
rua Aurora.

Por fim concluiu-se,
desesperançadamente,
que a vida não tem
plano B.



***


Recebi seu bilhete. Fiquei gravemente feliz.


***


No trem da vida
Hoje é a locomotiva
Ontem, o último vagão
Amanhã, a estação


***


Senti cheiro de café
Corri até a cozinha

Você não estava lá

Agora eu era um homem

experiente

 

 ***

  

Meu pai não me queria poeta

Então acabei obstetra
sem mestrado na vida


***


Peço um favor:
Na lógica da dor
Teu riso me faz mal


***


como eu
como tu
como ele
como nós
como vós
como eles
como eu

 

***

 

Viramundo e a primavera


Meu jardim é feito dum cacto
Que só dá rima em Portugal


***


Mar à beira de mim

 

Com o mar à beira de mim

Mal vejo a hora de
Tirar o gosto azedo da boca
Fazer esta névoa furmigante
parar de me embaçar os olhos
E tornar à minha dor constante


***


A cortina estufou, feito vela,
se afastando da janela.
Seria a mão do meu pai?
Era só o invisível
Erguendo-a feito vento.


***


Dança comigo essa valsa
essa volta, essa salsa
me roda, me roda, me roda
murmura, graciosa, me salva


***


O distraído cego e mudo
Cruzou a avenida sem olhar
E morreu num baque surdo.


***


Aquele poeta era organizado:
tinha tantas surpresas no dia
que as punha uma atrás da outra.


***


No Congresso, aquele era um dos
muitos políticos de caráter
provisório.


***


Depois da intensa e louca noitada,
as duas amigas foram dormir
e despertaram suspeitas.



***


O juiz Matos, denunciado
por prevaricação, falsidade ideológica,
interceptação ilegal de telefone,
peculato, corrupção passiva,
falsificação de documentos
e venda de sentenças,
alegou que era mentira,
que na hora nem estava olhando,
mas todos logo viram que naqueles
matos tinham cachorros.


***


Aquele policial era tão honesto,
mas tão honesto, que de
repente parou o carro no meio
da rua, deu voz de prisão
para si mesmo, tascou uma
bofetada na própria orelha e
imediatamente se levou preso
para o distrito.


***


Se nem todo dia é
dia de São João
por que os
políticos
estão sempre em
formação de
quadrilha?


***


A suave princesinha d’Espanha
sorria, bebericando champanha,
e enlevada em doce burburinho,

soltava satisfeitos peidinhos.

 

***

  

Anúncio nos classificados


Precisa-se de ex-presidentes da república, ex-ministros da fazenda e ex-presidentes do banco central que, tendo detonado a economia do país, concentrado a riqueza, levado empresas à falência, criado ambiente propício para desvios de verbas, entregue de mão beijada recursos nacionais a outros países e movimentado ricas contas em paraísos fiscais, sirva de exemplo de dignidade e bom caráter.


***


Naquele curioso país, o curioso ministro da previdência fez um curioso apelo à população. Mais ou menos nestes termos: para que o governo possa equilibrar as contas da previdência, aos maiores de 90 anos, solicito que se matem. Aos que se sentirem impedidos por motivos religiosos, que renunciem às suas pensões, pois tudo será devidamente acertado na Outra Vida. Aos que não tiverem coragem, que peçam aos parentes. Aos que não tiverem parentes, pra que continuar vivendo, afinal?


***


Brasileiro é o que usa o título de eleitor para cometer o mais terrível dos crimes.


***


O técnico, vendo seu time perder de
humilhante goleada, teve um
contra-ataque cardíaco.


***


Dois brasileiros.
Um passa, puxando atrás de si, amarrada a uma corda,
uma pedra que deve pesar bem uns trezentos quilos.
O outro, sentado, olha e pergunta:
- Por que está puxando essa pedra?
- Que pedra? – espanta-se o que passa, seguindo seu caminho.


***


Aquele poeta
Sempre precoce
em tudo
mal completou
seis meses de idade
e aprendeu a falar
ai!


***


A elegante sala de estar
daquele torturador era
decorada com requintes
de crueldade.


***


A polícia foi chamada
urgente para
o grande edifício
do centro.
Do décimo-quinto
andar um homem,
pendurado no corrimão
ameaçava se atirar.
Munidos de poderosos
fusis
os policiais crivaram
o pobre coitado
de balas
antes que ele
cometesse
tão impensado
ato



***


aqui dentro
asfixiado
em fantasias
o gato geme
lá fora
impensável
noite fria
a fêmea foge
aqui dentro
o gato grunhe
lá fora
a fêmea lambe
aqui fora
o gato mela
lá dentro
a fêmea
entorna
aqui, ali
a gata chora
mundo afora
goza o fêmeo
suave lenta
gritaria
mamãe me
dá logo essa
anestesia



***


No mundo da propaganda
não cabe valor redondo
Na feira tu anda e desanda
Abbiamo perduto il mondo

De todo preço estampado
Nenhum termina com zero
Então eu penso abestado
Pechincha assim é qu’eu quero!

Tá tudo muito barato
Seu moço, olhe e comprove
A dor de barriga é um fato
Dá uma caixinha de engove!

Pois não: é um e vinte e nove
O mais em conta da feira
¿Qué hago? E puor se muove?
Mais bão que a caganeira.


***


Ela disse tchau
deu as costas
e saiu
deixando atrás
de si
a porta
borquiaberta


***


Semianalfabeto: aquele que escreve e não lê.


***


TV: sucessão de cadáveres ao vivo.


***


Aquele sujeito, cansado de viver
contido, mal via a hora de chegar
na praia e se esparramar
feito água sem balde.


***


Olhando bem, o que mais gosto
em mim é minha
sombra.
Uniforme, modesta, caladamente
obediente, sóbria
e, sobretudo
(sem nenhuma intenção de
trocadilho indesejável)
é o contrário daquele sujeito
manjadíssimo que estou
cansado de ver no
espelho,
sempre com cara de
quem quer me dizer
alguma coisa.


***


Aquele fantástico compositor virtuosístico
foi menino-prodígio
desde criança


***


Presidente, se beber, não presida


***


Crítico literário: sujeitinho iracundo e irascível
segundo o qual o escritor deve escrever não
para o leitor, mas para ele,
sujeitinho iracundo e irascível


***


Aforista: sujeitinho ingênuo
que pensa que os grandes
aforistas da história
foram aforistas


***


À noite quando me deito
a cama, rangendo sob meu peso,
geme: basta


***


É cedo
ainda não
estou com medo
em tortura arde
o homem
à tarde


***


Viver

ter de quebrar as leis da vida como quebramos
a lei da gravidade mesmo que seja para mexer
um dedo e não atrofiarmos antes do tempo. Mas
ao contrário da nossa condição de transgressores
da física, que nos faz rebeldes por princípio e
circularmente estabelece nossa condição,
permitindo-nos exercitar os músculos e crescer –
mas agora desprovidos da pureza intacta que
tínhamos antes de tudo –, viver não exige outra
condição senão não morrer.


***


Não sei se este mal-estar
é estar mal com o mundo
só sei que afundo,
afundo, afundo



***


Dia sim dia não explode em
mil asteroidizinhos cor de
enxofre, dos quais um rola para
sob a cômoda lustra
Eis o que mais sofre



***


Sou um homem
tão pobre, tão pobre
com coração
que vale ouro
sob um lençol que
mal me cobre



***


Chegou o outono
olho a rua, tenho
vontade de sair
feito um cachorro
sem dono



***


esfrega-me
seca-me
beija-me



***


Agudo feito flecha
nunca usei
camuflagem
sempre quis ver
o outro lado
vou me
desencaminhando
sob explosões
invisíveis e surdas



***


Pai
eis meu boletim
desde o dia em que nasci
hoje posso compreender
que enfim chegou meu fim



***


A única palavra que não sei
para expressar a dor que sinto
é a palavra que não digo
que está em minha garganta
é a palavra que não ouço
que está em meus ouvidos
é a palavra que não sei
dizer se é o que sinto



***


Beco sem saída

Preciso passar
agora que fechei a porta



***


Eu sou canhoto
ela é destra
gosto d’esgoto
ela não presta

Que prostituta
que mulherengo
bebe cicuta
vir’um monstrengo

Ela me chama
de desonesto
paga o programa
não faço gesto

Vem, não me toque
não, vem, te quero
dança teu roque
eu, meu bolero


***


A cada dia
me defendo de você
removendo um brilhantezinho
do muro de amor
que erguemos entre nós



***


Ontem, quando cheguei em
Dois Córregos
aflito, sedento
ela foi pra
Três Corações, me disseram
quem sabe
Santa Rita do Passa Quatro
ou mesmo
Sete Lagoas
Agora não sei se
aumento ou
diminuo
multiplico
ou me divido


***


Foi nesta rua
sem fim nem calçadas
olha, exatamente aqui
que te olhei dar as costas
e ir embora
me deixou em cacos
c’um nó no peito
outro no estômago
comecei a sofrer do fígado
agora me diga
onde vou arrumar uma rima?


***


A cada notícia
Teu rosto me doía


***


Puxei a descarga
A angústia se foi


***


Já não há mais agora
já não há mais passado
já não há mais futuro
só um rodopio
permanente


***


Anúncio classificado

Procura-se
Alguém de bom senso
de coração imenso
que pense como eu penso
e seja um pouco tenso


***


Resposta a anúncio classificado

Aceito a vaga
só tenho um problema
não brinco, não rio
não danço, não falo
só penso em suicídio


***


Canção para todos os filhos

Quero cantar uma canção
ao meu filho
ainda não nascido
não torturado
nem sofrido
que ainda não sorriu
que ainda não morreu


***


Minha adega

À tarde desço à minha adega. Examino
os numerosos tonéis de vinho. Cada qual
tem um sabor, uma procedência, uma idade,
um buquê e um travo distintos. Todas as tardes,
todas as tardes invariavelmente – a única em que
faltei foi aquela em que morreu meu pai, desço e
apanho um cálice grande o bastante para conter
um litro, e despejo um dedo de cada um dos
tonéis que guardo em minha adega. Então
sozinho brindo não à vida, não à morte,
não à própria tarde. Apenas levo
o cálice aos lábios e engulo
disciplinadamente toda
a
taça
duma
golfada,
pois
não
sei
sorver
o que tenho senão duma vez.


***


Vou à cozinha
empunho um copo
para matar a sede
levo o copo à boca
molho os lábios
entorno
sorvo
engulo
a água
escuto na rua
um carro buzinar
pela última vez


***


Panela quente de polenta

Encher uma panela de fubá e
água, levar ao fogo, esperar
ferver, de súbito testemunhar os
beijos vagarosamente subindo lá do
fundo, eclodindo em blopes
na superfície amarelo budista
como se o fubá tivesse vida. Não
lhe passava pela cabeça que a polenta
escondia tantos insuspeitos beijos,
passava? Se você fosse poeta ou
cartomante ou numerólogo, diria que
era tua avó, morta há tantas décadas,
enviando lembranças. Talvez basta
chamar apenas de experiência
humana.


***


Fim de ano

Acordo e alguns minutos depois saio para o jardim da frente. Apanho o jornal. De dentro dele cai um pedaço de papel. Agacho de novo e recolho. É um cartão. Lê-se ali, ipsis litteris, o voto de “que os 365 dias do Ano Novo sejam de Paz, Alegria, Prosperidade, Compreensão e Amor”. Os caracteres, em tipografia canhestra, são todos em itálico azul-marinho, cada bloco de texto em tipo de letra diferente. No alto à esquerda dois sinos enfeitados por ramos de flores parecem badalar, provavelmente sugerindo que deles ouviríamos o tangido fossem de verdade e não apenas uma ilustração.
Embaixo, em grafia igualmente canhestra, está assinado “EMERSON” em letras de fôrma.
Não sei por que me ocorre que o entregador de jornal tem algo em comum com Emerson: nenhum dos dois jamais ouvi falar um do outro.


***


E os seios foram dotados de bicos tão anatomicamente
chupáveis, e o pênis e a vagina formatados com tamanha
interadequação anatômica, e os pássaros incumbidos de portar
o pólen entre as plantas por serem tão belos e por isso
mesmo menos suscetíveis à predação pelo homem, e foram
adicionadas baratas para que às vezes pensemos, por que
existem certas coisas neste mundo?, e assim matutemos e
assim nos inquietemos e assim lutemos por melhorar,
melhorar, sempre cada vez mais, até nos convencermos
da naturalidade do mundo e concluirmos que tudo
é perfeito porque tudo é exatamente assim como é.
Mas, olha, está tudo errado.


***


Pai

De todas as conversas que nunca tivemos e
as opiniões sobre políticos e economia que nunca
manifestamos um ao outro e olhares cúmplices ou não
de reprovação contra um intruso que tenha entrado
inconvenientemente na sala ou quarto onde estávamos
que nunca trocamos, só agora pude compreender o que você
queria dizer. Só agora que você está morto.


***


Literatura

Literatura é o que você escreve para você
mesmo, para seus filhos, sua
mulher, seu cachorro. Literatura não
é quando você desafia o ponto de vista de
alguém, o modo de vida de alguém.
Literatura não é as tramas que
você engendra deliberadamente.
Literatura é quando você olha em seus
olhos, em sua mente e se pergunta:
Por quê?


***


Peguei o nenezinho no colo, indizível
inquantificável fragilidade, massinha branca
de creme tenuemente sustentando os
ossinhos em minhas mãos gigantes. E se
lhe torcesse o pescoço num só golpe?
Quanta dor poderia poupar a uma criatura.


***


Descruzo as pernas.
Recruzo ao contrário.
Remexo os quadris.
Tento uma posição mais confortável na poltrona.
Descruzo as pernas.
Recruzo.
Relaxo os ombros.
Flexiono os pés.
Penso nela.
Penso em você.
Não penso.
Levanto.
Vou à janela.
Abro uma fresta entre as cortinas.
Volto à poltrona.
Sento.
Levanto.
Vou à janela.
Fecho a fresta das cortinas.
Volto.
Sento.
Cruzo as pernas.


***


Sabe aquela sensação quando você mecanicamente põe a mão no mouse para clicar alguma coisa na tela e o mouse não está lá e você por um segundo sente um pavor quase letal? Pois é.


***


Dois irmãos atravessavam aquela a rua, distraídos que nem eles só.
Veio um carro em altíssima velocidade e os atropelou, cortando-os ao meio.
A partir daí passaram a ser apenas meio-irmãos.


***


Bem-te-vi: o guarda que apita quando estou vivendo na contramão.


***


Dependente poético

É noite. Ele está ali sentado na mureta. Não sabe se olha o movimento na rua. Não sabe muitas outras coisas. De repente desce do céu um fio. Na ponta do fio há uma agulha intravenosa. Mesmo sem saber, ele sabe. Apanha a agulha e espeta no braço. Precisa se conectar com as estrelas.


***


No dia 28 de novembro de 1969 a terra parou.
Parou uns segundos.
Uns minutos
Umas horas.
Um dia inteiro.
Parou, deveras
Ninguém percebeu.
Só eu.
O dia em que te perdi.


***


Cada verso daquele poeta
romântico exudava da página
feito uma gota de sangue tipo B


***


Nasceu
Foi-lhe aplicado o supositório
da felicidade
Começou a inchar
Inchar
Inchar
Até que estourou


***


Chega da garoa de carícias
que me deste até agora.
Preciso duma chuva de amor
dum raio de gozo


***


Vou cavar um buraco, meio metro
mergulhar a perna até o joelho
esperar
até
deitar raízes
e ficar ligado ao meu planeta


***


Os pingos da chuva ditam o ritmo das asas dos pássaros que,
se existissem e das borboletas, anjos, vampiros
aviões que, se existissem
e soubessem escutar, voariam


***


No fogão a água ferve na caneca
como se fosse minha música


***

Aquele poeta era mais confuso que o testamenteiro de Fernando Pessoa


***


Quando a polícia chegou, ele estava caído no
carpete da sala, boca arreganhada, olhos opacos
estatelados, ao lado um bilhete suicida em
letra serena: “Cansei desta vida amarga. Adeus!”
Em volta do cadáver, dezenas de dúzias de
caixas de sorvete, embalagens de chocolate,
tudo devorado docemente


***


Mesmo o mais conformista dos homens, que
sequer se espante que nasçam anencéfalos ou
que existam estações no ano, que jamais se
interrogou sobre os estapafúrdios gafanhotos
haverá de concordar:
há algo de estranho em nós


***


O livro daquele escritor,
depois de tanto esforço
para ser escrito,
agora está esgotado


***


O forasteiro chega à cidade
se aproxima dele e pergunta:
é você que age como se
não tivesse nascido?


***


A teus pés me prosto, Serena Besta da
Solidão, para participar que está formada
a rede dos solitários, em cada canto da
cidade um facínora de si mesmo

Tua luz, efulgente, explode e nos cega
e assim nos conduz dóceis por
tua própria escuridão


***


No fundo, no fundo, não dá pé


***

Paciente: enfermo ciente da espera


***

Mal abriu os olhos de manhã viu que aquele não ia ser um dia fácil. Sentiu a boca seca – seca como nunca estivera antes.
“Água”, pensou automaticamente, chacoalhando a cabeça para espantar os pesadelos da noite maldormida. Estalou a língua áspera, procurando um pouco de conforto. “Preciso dum copo d’água”.
Se levantou, se vestiu, foi ao banheiro, comeu um pãozinho com margarina e acabou se esquecendo da sequidão na boca.
Quando saiu de casa os lábios abriam e fechavam espontaneamente, suplicando por algo líquido. Mas na correria para apanhar o ônibus, se espremendo entre os passageiros em pé no corredor do ônibus, suando frio, maldizendo a lentidão do trânsito, torcendo para que seu ponto chegasse logo, tornou a se esquecer da sede atroz.
E assim prosseguiu durante todo o resto do dia. Mal a sede dava sinais de que ainda não fora saciada, ele se via subjugado por uma das centenas de pequenas injunções que nos acometem no dia a dia e acabava por deixar de lado a secura da boca.
Ao voltar para casa à noitinha, tateando penosamente os bolsos em busca da chave, abrindo a porta, indo para a cozinha, sentando-se numa cadeira diante da mesa, esfregava a garganta, atormentado sob as lembranças daquele dia. “Puxa”, pensou, espantado, “não acredito que atravessei toda essa via-crúcis sem me lembrar de matar a sede.”
Nisso percebeu que diante dele, na mesa, havia um copo d’água. Sentiu um espasmo na garganta, um espasmo doloroso. O copo parecia apresentar um ultimato: ou aproveitava aquela chance ou caía morto de fulminante sede.
“Pois então é agora!” Sentiu os olhos marejarem de ansiedade.
Começou a estender o braço em direção ao copo quando viu algo estranho surgir de algum lugar debaixo da mesa, voando em sua direção. Recolheu o braço, acautelado. Que troço era aquele? Quando a coisa suspeita se aproximou, deslizando suave e silenciosa, até parar exatamente sobre o copo, viu que era uma nuvenzinha.
Confuso, ele pôs a mão espalmada sobre os lábios ressequidos, tentando apaziguar a ânsia de beber. Esticou o pescoço rumo à nuvenzinha para examiná-la mais de perto. Era escura e, apesar de ínfima, de aparência ameaçadora.
De repente, para sobressalto dele, um relampejo escapou de dentro da coisa e um raio atingiu o copo. A fulguração iluminou a penumbra em torno da mesa por um átimo. Assim que o brilho desapareceu, um pequeno estrondo assemelhado a um trovão ribombou distante. Então a superfície do copo se agitou e ondas se formaram, encrespando ominosamente a superfície da água.
Alguns segundos se passaram. De repente, um novo raio cintilou do âmago da nuvenzinha, seguido dum novo trovão, seguido de uma saraivada de outros raios e trovões. A nuvenzinha começou a rodopiar, girando furiosamente em torno do copo, como se fustigada por formidável ventania. O copo estremecia sobre a mesa, parecendo prestes a tombar sob o impacto das ondas que se agigantavam indômitas. Às vezes alguns pingos se desgarravam do interior do copo para serem absorvidos pela toalha da mesa.
Entre maravilhado e perplexo, ele ficou inerme, se limitando a observar o insólito espetáculo. De súbito, tão inesperadamente quanto como surgira, a agitação começou amainar e a nuvenzinha se afastou, voando de volta até desaparecer por sob a mesa.
Assim que tudo voltou ao que era antes, a sede tornou a dar sinais de que ainda estava lá. A língua recomeçou a estalar, a secura dentro da boca voltou a incomodar. Ele estendeu novamente o braço em direção ao copo, agora rápido, antes que a nuvenzinha pudesse ressurgir mais uma vez. Levou o copo aos lábios e o entornou boca adentro, sôfrego.


* * *

Somos todos passíveis duma recaída concretista

n
un
cadi
ganun
canunca
digasempre
semprediganun
ca sempre diga sem
sempre nunca sempre
nunca nunca sempre sempre
sempre nunca nunca nunca nunca sempre
sempre sempre nunca sempre nunca sempre diga
diga nunca nunca sempre sempre diga nunpre semga dica
nunca dipre sempre nunga nunca semca sempre diga nunca diga diga
cloaca


* * *


– Alô! Bom dia. Faculdade de Arquitetura. Jorge falando.
– Bom dia, seu Jorge. Por gentileza... olha, sei que não vai ser fácil... não queria incomodar...  mas eu precisava falar com o Jair.
– Que Jair, minha senhora? Temos mil e duzentos alunos nesta faculdade. Como vou saber que Jair é esse?
– Ele faz engenharia elétrica. Está no segundo ano...
– Não há como localizar alguém aqui dentro só com essas informações. Como já disse, mil e duzentos alunos...
– É um primeiros da classe. Tem até bolsa de estudos...
– Nem se fosse o diretor, minha senhora. Mil e duzentos. Francamente, agulha no palheiro seria mais fácil.
– Seu Jorge, pelo amor de Deus, é caso de vida ou morte. Preciso falar com ele de qualquer jeito! A mãe dele, coitadinha...
– Bom, posso tentar. De que cor ele é? Negro, loiro...
– Branco. Cabelos castanhos. Estatura mediana.
– Usa alguma roupa diferente.?
– Jeans, tênis e boné.
– Ummm, tá difícil. Anda em algum grupo especial? A senhora conhece o namorado...?
– Como assim, namorado? Ele é hétero.
– A! O Hétero. Por que não disse logo? O Hétero, todo mundo conhece...
 

* * *

Se você
chacoalhasse
desde os bigodes ralos à ponta
do rabo imaginário
feito cachorro arguto
reverberando
as orelhas
flamulando do lombo
pulgas e pêlos
revezando as patas
vibrando as bolas
até
se livrar dos males
e deitar a cabeça-fantasma
sem medo
de ficar
zonzo de cinzas

sob liberdade condicional
na ínfima cela do eu
cujas paredes se
colam à
pele
coçaria a
barriga, atrás
da cabeça, o
joelho uma
coceira inventada
e pelo focinho
escuro e seco
exalaria um
terrível suspiro
para comprovar
mais uma vez
que está vivo
esta manhã
como sempre
esteve

suplicando
“tremor essencial
desencarna de mim
esta urna empilhada
no monte dos assombros
me dissemina e
reincorpora nas sombras
reinantes”


* * *


Houve formidável explosão
ao nascer do dia
pombas não bateram asas
rumo ao céu plúmbeo
sabiás não trancaram os
bicos ressabiados
bebês não caíram no choro
instintivamente certos de
que o fim estava próximo
nem um grão de poeira
mudou de lugar
tampouco alguém ergueu-se
na cama tampando os ouvidos
em indistinto desespero
ante iminente desabamento
do teto
quando, sob formidável explosão,
o dia nasceu


* * *


Prece

Senhor, sei que meu cartaz
conTigo está em baixa.
De fato, não rezo há... bem,
o Senhor certamente sabe há quanto
tempo
não rezo. E naqueles
distantes dias idos
da infância, quando rezava,
rezava sem convicção, mexendo
mecanimente – ai, Senhor, quão
mecanimente era! – os lábios,
os impolutos pensamentos fixos nas
tenras tetinhas da Sílvia ou no
rechonchudo bundão da
Regininha.
Ai de mim, ó Deus, sou um caso perdido, o
pecado é minha vocação, o inferno,
meu fado, sim, não mereço
Vossa trela ou atenção.
Entretanto, ó glorioso Javé, ciente de
que Vossos desígnios são insondáveis, Vossa
paciência, infinita, Vossa misericórdia,
infalível, venho hoje humildemente
a Vossos pés implorar.
ó Grande, ó Ser que reinais soberano
sobre tudo que há neste vasto
universo, eu Vos peço: agora que os
astrônomos
estão finalmente determinando
com razoável certeza a existência
de outros corpos celetes semelhantes à
nossa Terrinha, seria pedir demais
que o Senhor nos desse um
tempo
e fosse azucrinar a vida
de algum outro planeta por
esse mundão afora?


* * *

Era trabalhador. Disciplinado. Metódico e diligente. Às vezes quase taciturno.
Um dia, concentrado no trabalho, de repente, sem saber por que,
SORRIU.
Depois, um risinho
gemido manso, frouxo
a princípio, logo virou
risada, depois
gargalhada
visceral, descontrolada, debochada
besta.
O sujeito que era
trabalhador
disciplinado,
metódico
e
diligente
às vezes quase taciturno
procurou se conter, mas a graça brotava
crua
brava
escrachada
mais brado
que alívio
trava
destrancada
cravo
esvaziante do
cofre sem chave
arrancada
 de dentro com poder infernal.
E logo lhe
sacudia
o
 peito
depois ele todo.
Dos olhinhos estreitos e risonhos nasciam lágrimas doloridas,
da boca escancarada, prestes a esgarçar, pendia a língua
inchada, escorria a baba mole.
O sujeito que era trabalha-
dor, discipli-
nado, metó-
dico e dilig-
ente,
às vezes quase taciturno,
morreu assim
vítima dum risinho bobo.


* * *

O último lançamento daquele badalado escritor é
um imenso erro de digitação


 * * *

Intelectual petista:
sujeito que pensa que nós
não pensamos que pensamos
que um intelectual petista
é capaz de pensar
qualquer coisa


* * *


Aquele econômico autor inicia
assim seu último romance:
“Prezado leitor, os fatos que
descreverei a seguir são
indescritíveis.
por isso, encerro esta
obra neste próprio ato”.


* * *

Ele vem
Incolor
Insípido
Tomara!
Inodoro
Graças aos céus!
Inaudível


* * *


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* * *


Aquele suicida era
tão cauteloso,
tão prudente,
tão precavido,
tão consciencioso,
que vivia tentando se matar
cuma arma de brinquedo


* * *


O Brasil é um país
inacreditavelmente
inacreditável.
Povoado duma gente
incrivelmente
crente