A especulação


Melindrosa um dia anunciou assim sem mais nem menos bem no meio do rebanho:
– Queria tanto conhecer o açougue...
As outras vacas continuaram a pastar como se não tivessem escutado.
Melindrosa insistiu:
– Eu mugi que queria conhecer o açougue!
Janete, a quadrúpede mais próxima, resolveu se dar o trabalho de perguntar:
– Pra quê? Pra que você quer conhecer o açougue, Me?
– Ai, sei lá. Mugem que é um lugar lindo.
Mimosa também decidiu tomar tino da conversa:
– Será, Me? Quem mugiu?
– Bom, não me lembro exatamente quem. Mas que alguém mugiu, isso tenho certeza.
– E onde fica o tal açougue? – foi a vez da bovina Baldáquia imiscuir-se no diálogo.
– Isso também não sei. Onde será?
– Fica lá depois do monte da Última Curva – intrometeu-se Amarildo, um boi recém-capado que ainda guardava alguns resquícios de touro, apontando com os chifres numa direção.
– Tão longe assim? – Melindrosa olhou entre desapontada e sonhadora na direção indicada pelo boi recém-capado.
– Ouvi mugir que o açougue tem um homem chamado Açougueiro – opinou Cácia, outra que se interessou em participar da especulação.
– Mugem que é um homem boníssimo.
– E o que será que tem nesse tal de açougue? – devaneou Mimosa com seus grandes e aguados olhos bovinos.
– Pelo que fiquei sabendo – adiantou-se Baldáquia, abrochando os beiços como se mascasse chiclé –, o açougue é como um curral, só que limpinho e bem arrumado. Mugem até que tem alfafa importada!
– Muuuuuu! – mugiram em uníssono todos no rebanho, sonhando excitados com as supostas delícias daquele lugar misterioso.
– Belinha foi levada para lá semana passada – Amarildo abananou os orelhões envoltos numa chusma de mosquitos.
– Por que será que ela não voltou mais? –  Mimosa arregalou os olhões inquiridores para o recém-capado.
– Pelo que ouvi mugir, Belinha foi vendida pelo patrão ao dono do tal açougue para ficar em exposição num estande que chamam de balcão-frigorífero.
– Não me muja que ela virou miss! – estremeceu Cácia com indisfarçável dor de joelho.
– Ora, dona Cácia! – Mimosa franziu o cenho e meneou a cabeçorra em reprovação. – Afinal ela é mais bonita de todas nós.
– Ah, se eu não fosse capado... –  Amarildo babou uma densa espuma de desejo lamentoso.
Nisso, um vaqueiro abriu a porteira, açulando aos brados o rebanho para fora do curral.
– Será que é a minha vez de conhecer o açougue? – mugiu baixinho Mimosa, lambendo a queixada de excitação.


Sanatório revisitado


Volto ao sanatório depois de trinta anos. Finalmente, diria. Não ouso. Trinta anos fantasiando a chegada, parando, olhando em volta, quem sabe olhando o céu, quem sabe olhando o chão, quem sabe fantasiando retroativo em infinitos ricochetes com as fantasias dissipadas sob a luz cegante da realidade vigente.
Naquelas, de outros tempos, me via aqui parado e brincava, me aconselhando, olhe as pessoas que estão passando, e respondia a mim mesmo, não, não vou olhar ninguém, mas, me ludibriando, olhava, e quando as fantasias eram mesmo desvairadas, até puxava conversa com um transeunte, com licença, amigo, antigamente havia um sanatório aqui, será que ainda existe? Existe, sim. O senhor está bem diante dele.
Nas fantasias a esmo, sempre inesperadas, me assediando sem dia nem hora, estou atento ao meu próprio assombro. Nas fantasias procuro aquilatar as emoções que dentro de mim se movem formidavelmente pesadas. Nas fantasias as emoções são montanhas compostas de cada torrão de pensamento e dor. Quando fantasiando chego e me coloco diante do prédio do sanatório, as montanhas começam a soçobrar. Primeiro, o pico em que estou (onde estou agora, nas fantasias). O pico do presente, eu aqui parado, olhando para o portão como se do outro lado ele escondesse uma revelação mística. Depois que o pico do presente onde estou desliza, levantando em sua queda pesadas e sombrias e estrondosas placas do ontem, é a vez dos demais picos. Que seriam? Me dá uma preguiça insuperável. Não quero especular. 
Paro diante do portão do sanatório. Olho a calçada, as paredes, as janelas, um olhar curioso, enfadado, sôfrego e decepcionado. Nas minhas fantasias pensava, nesta hora, você vai se lembrar graficamente de cada detalhe. Tudo parece igual, só que um igual diferente. Não sei se já estive aqui, ao fato, de certo. A sensação usual que sim, que não. Sede sôfrega dum copo d’água seco. Familiaridade incômoda.
Aperto a campainha.
Mil vezes antecipei meu braço se estendendo à frente, indicador da mão direita se desdobrando vagaroso assumindo autônomo a forma duma seta rumo a um mundo que só existe dentro de mim.
O zumbido anestesiante e ao mesmo tempo estridente da campainha me joga de volta diante do portão na calçada. Recolho o indicador, a mão, o braço. Queria me recolher um milímetro mais, virar do avesso. Me derramar pra dentro.
Terá sido um erro? Nas fantasias a possibilidade nunca me passou pela cabeça. Retornar ao sanatório jamais poderia ser um erro. Temeridade, risco que só um imprudente seria tolo a ponto de correr, talvez. Erro, não.
Estão demorando para abrir o portão. Refaço o gesto com que apertei a campainha a primeira vez, agora me preparo para o alarme. Sei que vou me assombrar. Me assombro.
Quem vai abrir o portão? Redesenho mentalmente o rosto dele, que tenho guardado em placa de chumbo esculpida na chama azul do acetileno. Por que “dele”? E se for mulher? É claro que não será mulher. Não fantasio mulher. Não haverá de ser.
Será, sei, um negro de meia idade, grisalho, bigodinho grisalho, expressão sofrida de escravo resignado à dor tamanha do mundo. Será um nordestino franzino de pele escura e olhinhos claros nervosos, hostis e severos que viram o que ninguém toleraria ver. Será um rapazinho, novo no emprego, hesitante, tão intimidado por dentro quanto eu com sombras inchadas convulsas de luzes falsas.
– Pois não? – Ouço uma voz e me ligo. Olho prestando atenção no universo e esqueço de confirmar o rosto.
– O doutor Jeferson está? Tenho hora marcada.
– Um momento.
Tornam a bater e trancar o portão. Espero. Alguns minutos depois ouço a fechadura sendo novamente aberta.
– Pode entrar – diz um homem.
Lembro de olhar. Ele é baixinho e calvo. Não tem cara de brasileiro. Por essa eu não esperava. Se põe de lado para eu passar.
– É ali. – Ele aponta uma das várias portas no prédio, distante uns dez metros da entrada.
Começo a rumar para a porta. Dou dois passos, paro. Entorto os olhos para o pátio. Tal como esperava nas fantasias. Quase nada mudou. Uma ou outra árvore desaparecida, uma ou outra crescida onde antes não havia nenhuma. Os mesmos bancos de madeira em que eu e todos os demais internos passávamos os dias olhando para nada. Ali naquele canto ficava a moça barriguda de grandes tetas caídas que gostava de vir olhar quem entrava. Cada um ela se erguia, caminhava, arregalava os olhos, dizia, sem mudar nada na expressão do rosto: “Coitadinho!” Na minha vez também fui acolhido assim.
Agora os bancos estão vazios. Vai ver fizeram outro pátio na área dos fundos.
Chego à porta indicada, paro, leio a plaqueta: “Dr. Jeferson”.
Dou três batidinhas.
– Pode entrar! – alguém diz do lado de dentro.
Empunho a maçaneta de alavanca e comprimo para baixo.
Entro e fecho a porta.
Me vejo numa saleta.
No meio dela há uma mesa.
Atrás da mesa, um homem de branco.
– Seu Edgar? – ele pergunta.
– Sim.
– Sou o doutor Jeferson. Faz favor de sentar. – Ele indica uma cadeira defronte a mesa.
Sento obediente, fico inerme.
– O senhor telefonou dizendo que desejava ver seu prontuário, não foi? Passou por tratamento neste sanatório. Há trinta anos.
– Foi.
Ele estende o braço para um canto da mesa e apanha uma pasta velha encardida.
– Deixei preparado para quando o senhor viesse.
Ele abre a pasta e retira algumas folhas.
– Antes de liberar o acesso a seu prontuário – ele me olha tranquilamente –, preciso me certificar da sua identidade. O senhor sabe, é o regulamento.
– Claro. – Enfio os dedos da mão direita no bolso da camisa e tiro o erregê. Estendo para ele.
Ele apanha meu erregê, apanha uma prancheta plástica coberta por uma folha, apanha uma esferográfica, anota meus dados.
– Qual é seu endereço, seu Edgar?
Digo meu endereço, ele anota na mesma folha. Me devolve o erregê.
Estende as folhas do meu prontuário na minha direção.
Ergo ligeiramente os quadris da cadeira, me inclino para a frente, pego. O dr. Jeferson só observa.
Na primeira linha da primeira folha está escrito “Paciente:”, seguido do meu nome. “Ano: 1969”. “Idade: 22 anos e cinco meses”. Sexo, cor, sinais característicos. Vou passando os olhos, tentando pedir ajuda às fantasias, de repente lembrando, não imagino por que, de uma família de espanhóis nossos vizinhos quando meu pai era vivo e eu tinha uns sete anos, quando eu crescer, sonhava naquela época, vou ser um homem bom, vou ser educado e simpático e gentil e sorridente e todos vão me amar, não vou ser ranzinza como meu pai nem neurastênico como minha mãe, nunca vou subir no alto dum prédio no centro e me jogar lá pra baixo como meu irmão, vou ser um homem bom, nunca vou querer dar o cu como dizem que alguns homens fazem, vou ser artista, escritor, pintor, pensador, vou fazer música, vou cantar com a voz mais doce e amável que já se escutou no mundo.
Segunda folha. “Terapia eletroconvulsiva”. “Pré-anestesia: succinilcolina”. Continuou lendo. Nenhuma novidade. Está tudo lá tal como nas fantasias.
Vou passando as folhas, fingindo que estou interessado, para não dar na vista.
É fácil acabar com os males do mundo. Tão fácil, que me admiro não haver mais pessoas como eu. Naquela época, pensava, basta pensar. Simples assim. Pensa e pronto. Os males são cometidos pelas pessoas que não pensam.
Quando acho que já examinei o prontuário tempo suficiente, dou uma tossinha, endireito as folhas no colo e devolvo ao dr. Jeferson. Ele pega e repõe na pasta velha encardida. Depois me olha interrogando.
– Bom – digo, sem jeito. – Era só isso.
– Estamos às ordens – ele diz querendo se mostrar solícito. Estende a mão.
Me ergo da cadeira, aperto a mão estendida.
– Obrigado pela atenção.
Dou meia volta, rumo para a porta. Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós. Empunho a maçaneta.
Nesse momento ouço a voz do dr. Jeferson.
– Espera aí. Aqui diz que o senhor morreu sob tratamento.
Comprimo a mão na maçaneta. Fico estático.
Continuo, abro a porta. 
Me volto para ele.
– Veja. Há um atestado de óbito. – Ainda atrás da mesa, ele ergue uma das folhas e mostra na minha direção.
Tiro a mão da maçaneta.
Dou nova meia volta, retorno à mesa. Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, dai-nos a paz.
– O corpo foi enterrado? – escuto minha própria voz perguntar.
– Sim. Veja. No Cemitério dos Remédios.
– Deve haver algum engano. Tive alta há trinta anos. E vivi uma vida normal. Acho. Sim, vivi. Casei. Tive filhos.
– Quantos?
– Três. O... – De repente os nomes dos meus filhos somem no escuro dentro da minha cabeça. Constrangido, olho o médico. Ele fica esperando. Aflito, invento. – Tive duas meninas e um menino: Graziela, Odete e Júnior. Tive empregos. Vários. Conheci pessoas. Fiz amigos. Não pode ser.
– Seu Edgar, aqui diz que o senhor morreu quando estava internado. 
– Impossível. Estou vivo, não estou?
– Parece que sim.
– Posso levar uma cópia do prontuário comigo?
– Se puder comprovar que o senhor é mesmo quem diz ser. Tem um documento?
Tiro meu erregê. Sem olhar para o dr. Jeferson, estendo. Ele examina, coteja com o prontuário.
– É o mesmo número. Estranho. Não entendo. Se o senhor morreu há trinta anos, como está aqui diante de mim? Bem, há mistérios que estão além da nossa compreensão, não é mesmo? 
Dou um risinho evasivo, faço que sim.
Não sei se há mistérios.
Agradeço, me despeço novamente, saio da saleta. Passo pelo pátio sem coragem de olhar o banco onde a moça barriguda de grandes tetas caídas ficava à espera para recepcionar os novos internos. O homem baixinho calvo abre o portão para eu sair. Saio.
De volta à calçada, paro, me volto. Olho o sanatório. As paredes, as janelas, o portão. Tudo parece exatamente como vi nas minhas fantasias durante trinta anos.
Queria chorar. A última vez que chorei foi ali dentro, na sessão de eletrochoque.
Eletrochoque é assim. Você é um rato triste de esgoto. O raio vem. Deus te dá um tapinha nas costa. Você ri um riso gostoso e volta pro esgoto.
Encolho os ombros, reteso alguns segundos, queria ficar assim para sempre, solto os ombros. Tudo igual a sempre. Olho o sanatório, olhar último amplo, desinteressado dos detalhes. Minha frieza diante da revisita me decepciona. Nas fantasias me enxergava, em cores, gestos em velocidade humana, aqui nesta calçada onde estou agora, sendo dominado por libertação inelutável angustiante.
Nestes trinta anos, não sou outra coisa senão indeciso e vazio.
Olho rua acima.
Olho rua abaixo.
No centro da calçada faço a mais perfeita meia volta de que já fui capaz. Dou as costas, atento ao que se passa, ao sanatório, dentro de mim. Nada. Decepção. Terá se passado um segundo desde que me vi incapaz de dar as costas para ele?
Estou livre?
Bá. Vejo um dos meus braços se lançar no ar num gesto de desdém. Não importa. E se não importa, é porque sim. Sei, não queria usar finalmente. 
Olho rua acima. Rua abaixo. Hora de ir embora. Foi mais fácil do que pensava.
Rua acima. Rua abaixo. 
Minha testa está úmida de suor.
Que estou fazendo aqui?
Dou meia perfeitíssima volta. Vejo um grande prédio velho e feio e sujo, três, quatro andares. Seu aspecto me causa um sentimento repugnante e franzo o nariz.
Parece abandonado. Toca algo dentro de mim. Não identifico exatamente o quê.
Na minha frente há um grande portão de ferro desgastado pelo pela ferrugem do tempo. Notando que não está trancado, dou três passos adiante, paro. Uma fresta. Tento espiar. Empurro uma das grandes folhas de ferro. A fresta se abre o suficiente. Enfio a cabeça através dela.
Há lixo espalhado por todo o pátio, garrafas plásticas, latas de refrigerante, de cerveja, sacos de supermercado, montículos simétricos de entulho. O que um dia foi um jardim de galhos podados e flores reprimidas agora é um matagal de virgindade reconquistada. Os interstícios dos ladrilhos estão ocupados por ervas indomadas. Os paus dos bancos se amotinaram em podridão. Alguns bancos tombaram. Pichações multicores imitando rodopios insubmissos recobrem as paredes. Um abandono de décadas escorre das paredes do passado, lavando o chão que olho agora.
A deterioração me revigora. Retiro a cabeça da fresta, dou um suspiro fundo que me limpa os olhos.
Tenho duas opções: ir para cima, ir para baixo.
Olho a esquina mais próxima. Se chegar ali, terei quatro opções. Se escolher uma, terei abdicado de três. A cada nova esquina, outras três. Três. E mais três.


A moça que foi roubada pelo ladrão

Esta é a história da moça que foi roubada pelo ladrão numa cidade do interior.
Cidade que era um pequeno paraíso na Terra. Os moradores porém não faziam ideia de que habitavam um paraíso e levavam a vidinha aceitando estoicamente a cruz que lhes coubera.
– Será que essa nossa cruz existe de fato? – um morador mais angustiado tinha ímpetos de perguntar a outro.
– Não sei – poderia responder vagamente o inquirido. – Agora estou ocupado escutando o pintassilgo cantar.
Naquela cidade do interior havia uma espécie de acordo tácito no ar. O narrador sabe que esta frase tem um quê de inglês… mas que se pode fazer? Os moradores viviam bem mesmo assim. Antonios, marias, joões, anas, chicos e josefas, com nenhuma pressa e apenas raros tormentos de consciência, bem lá no fundo – fundo que hoje em dia só tais pessoas possuem, pois nos grandes centros urbanos só vemos gente sem dimensão alguma – agradeciam-se e aos outros e aos céus e a tudo o que pudesse ser agradecido pelo medíocre, insosso, suportavelmente pesado fardo que a loteria do Big Bang lhes atribuíra e por nada trocariam a vidinha penosa mas segura por, digamos, uma chance de falarem com deus ou o diabo uma vez por semana que fosse. A máxima pela qual se orientavam era: um orgasmo não vale o trabalho de ter de lidar com a falta de prazer o resto da vida. Quando tomou conhecimento desta história, o narrador decidiu duma vez por todas que a conduta monástica tem lá suas vantagens. 
Mas voltemos ao roubo.
No momento do roubo, a moça roubada estava não perto de casa, mas nas cercanias, o que é muito diferente, sobretudo naquela cidade do interior àquela época. A moça – que, a bem da verdade, não era tão moça assim, já habitando havia algum tempo a casa dos trinta ou, para alguns moradores mais cínicos, mesmo a dos quarenta! –, bem, a moça se chamava Eulália, talvez. Ou Eunice. Não, Eunice não parece de moça do interior. Quem sabe Ivani. Também não; Ivani era de outra cidade. Bem, Eulália ou Ivani estava de saia bege chegando pouco abaixo dos joelhos, blusa marrom de malha e sapatos pretos, tudo bem discreto. Tal como usualmente se vestia Teresa, sua colega de magistério. Ambas eram professoras no ginásio da cidade: uma, de matemática, a outra, de EMC – por isso, a última sempre atentava especialmente para a colocação lógica das vírgulas, que, já aos seis anos de idade, resolvera seria sua grande – senão única – missão na vida. A de trabalhos manuais não cultivava missão secreta alguma, pois esse negócio de missão é coisa de protestante e estamos em país essencialmente católico. Ela, a Deise, sabia bem como essas regras de espírito funcionavam. Mas continha só para si esse conhecimento, que não era boba. Para quem havia de revelá-lo? Seus alunos?
Logo quem!
“Que rebanho de asnos!”, gostaria de classificá-los a todos, mas jamais tirava conclusões tão peremptórias. Não que tirar conclusões peremptórias fosse contra seus princípios – princípios, aliás, que sabia ter, embora desconhecesse quais e quantos fossem –, mas em geral não gostava de ser muito assertive em relação às pessoas. “Afinal”, pensava, “todos somos filhos de Deus”. Além disso, em vez de ser peremptória, o que curtia mesmo era ficar matutando sobre qual seria a melhor tradução para assertive. “Que bonitinha essa palavrinha inglesa. Tão expressiva, tão amarradinha... pena que não tenha equivalente em português. Se tivesse, bem que eu usava!”
(O leitor certamente estranhará a afirmação de que assertive não comporta tradução. Pois não comporta mesmo, caro leitor. Podes crer.)
Mas, embora não chegassem a ser um rebanho de asnos – “ou manada viria mais a calhar?” –, seus alunos não se destacavam pelo brilho intelectual ou pela vontade de vencer ou pela disciplina ou pela vocação a presidente da república. Viviam em permanente estado letárgico. (O que, dependendo da cidade em que se more, pode ser positivo, mas não naquela cidade do interior.) “Esses meninos parecem não ter chama!”, costumava refletir Paulina, sentada à sua mesa na sala de aula, gasping, olhar perdido na turma catatônica à sua frente. “Pra falar a verdade, são todos uns bananas!”, pensou, despertando do seu daydreaming. “Todos, menos o Gustavo Henrique, claro. Esse vai longe!”
De fato, não se podia negar que Gerson Eduardo fosse diferente dos demais. Notava-se à primeira vista. Tinha na expressão do rosto aguda vivacidade, no olhar brilho intenso de quem não deixava a peteca cair nem o cérebro dormir. Olhava a tudo e a todos com atenção. Quem o olhava olhando a tudo e a todos via que, mais do que um mero olhar, era um legítimo exame, chegando às vezes a inspeção técnica. Ficava claro que a ele nada passava em brancas nuvens. Ao contrário dos demais, a quem se podia xingar a mãe e o pai ou até dar uma porretada no meio da orelha, que continuariam impassíveis em seu permanente sono mental, ele, Celso António, ao invés de ingerir e deglutir o input do mundo até expeli-lo sem aproveitar uma só molécula, introjetava cada situação e confronto interrelacional, interiorizando em sua brilhante cabecinha fatos e fotos para posterior processamento.
“Esse Jaime Felipe vai longe. Se vai!”, pensou novamente Ângela Clara, lembrando-se então – e só então – de fechar as pernas, percebendo que os marmanjos que sentavam no fundo da sala tinham o olhar grudado em algum ponto onde, segundo seus cálculos, achava-se seu grelho sob a mesa (que não tinha proteção frontal e quem quer que se sentasse a ela, mesa, de pernas abertas fatalmente exibiria a todos os alunos a calcinha. (Ou cueca, caso fosse homem e usasse saia.)
Não que suas pernas fossem de fechar o comércio ou paralisar a indústria. Segundo Marcelo Fernando e seu olhar escrutinador, eram “razoavelmente roliças e ao mesmo tempo esguias e bem-torneadas. Mas as batatas da perna fariam a delícia de qualquer um dos meus melancólicos coleguinhas. E até a minha, se eu fosse dado a essas coisas...” (Com o que o narrador não pode discordar, ainda mais por ter sido ele mesmo vítima de testemunhos similares em sua própria infância.)
Por falar nisso, talvez convenha discorrer um pouco sobre o pobre narrador, que vive a narrar a vida alheia mas cuja vida ninguém se lhe digna a narrar. (Se o leitor lhe permite um inocente castelhanismo.) Não vamos narrá-la toda, obviamente, pois que se trata de sujeito que já meteu o pé na estrada mas logo encontrou um atalho e hoje leva calmamente a vida a contemplar o horizonte. 
Em resumo, os fatos mais notáveis na vida do dito são os seguintes:
a) É duro como a maioria dos brasileiros.
b) Sua mãe e tias dizem que, quando bebê, quase foi roubado da maternidade, só tendo escapado porque, quando a ladra cruzava a porta da dita para ganhar a rua e dar no pé, o vigia da dita, de cigarro na boca, apalpando os bolsos e vendo que não tinha fósforos e muito menos isqueiro, pois jamais usava isqueiros, perguntou-lhe se por acaso dispunha de fogo, ao que ela disse que sim e soltou o bebê – ou seja, o narrador ainda em estado infantil – para apanhar os fósforos na bolsa, deixando o infeliz despencar de cabeça no piso de granito da dita (queda que aparentemente não lhe causou – a ele, narrador – maiores transtornos na vida, salvo por uma ligeira chatice no cocuruto). O fato é que a cretina da ladra, além de se limitar a assistir impassível o tombo, sequer tentando acudir o recém-nascido, ainda, tomando-se de fúria, fez menção de lascar um pontapé no pobre infante enquanto lhe dirigia pesados apodos, ao que o vigia, treinado que era em identificar ladras de bebês, sobretudo as que deixavam os ditos capotarem de cabeça no chão, deu-lhe imediatamente voz de prisão e restituiu a criança à legítima mãe. Segundo o próprio narrador e algumas pessoas que conhecem a mãe e as tias do dito, não se sabe se foi a melhor atitude que o vigia poderia ter tomado.
c) Às vezes delira com uma cena em que ata algumas bananas de dinamite no corpo de certos indivíduos – entre os quais destacam-se políticos, juízes e membros da elite – e tem nas mãos um aparelho de controle remoto com um botão sob o qual está escrito “Detonar”.
d) Como a maioria dos seres humanos, pisca em média 23 vezes por minuto.
e) Quando está perdido em bairros desconhecidos, não gosta de pedir informações. Apenas para o carro e fica olhando para baixo e para cima com ar de desamparo, até que alguém se digne a perguntar-lhe se está perdido.
f) Já requereu seguro-desemprego ao governo, mas ao que parece narradores não têm esse direito.
g) As mulheres em geral, independentemente da idade, dirige-se a todas por “Senhorita”.
h) Não sabe lidar direito com imprevistos.
i) Almoça todos os dias à mesma hora e no mesmo lugar.
j) Não pensa no que falam dele na sua ausência.
l) Não pensa em muitas outras coisas.
Mas voltemos mais uma vez à história da moça que foi roubada pelo ladrão. Antes de sermos tão deselegantemente interrompidos, falávamos de Carla Amélia e sua colega, a também balconista Gilda. Como também já dissemos, Anita tinha verdadeira obsessão pela língua e não tolerava que se destratasse o vernáculo em sua presença. Quando lia um período mal construído ou uma locução adjetiva no lugar dum substantivo adjetivado comprimia os punhos com tamanha força, que os dedos ficavam exangues, as veias se lhe inchavam horrendas no pescoço e o rosto corava de verde-salmão. Perto dela, o corcovado Aldrovando, personagem a que Monteiro Lobato deu à luz n’O colocador de pronomes, era sarrafaçal deveras bordalengo. Pior: o ditirâmbico e finado gramático Napoleão de Almeida, célebre por sua implacável cruzada contra os galicismos e anglicismos que tão solertemente estrupam nosso vestal português, era tido por Neusa Sônia como liberal que merecia ser atirado à mais fétida, fria, úmida e tenebrosa das masmorras.
Embora cultivasse por esporte perseguir indolentes autores de alfarrábios, Nilceia tinha um passatempo com o qual procurava distrair-se dos dissabores morfológicos: ler tudo que lhe caísse nas mãos sobre a Revolução Socialista Russa, que, para ela, fora o acontecimento mais importante do século dezenove.
Mas como raios uma reles escafandrista do interior fora interessar-se por tema tão exótico e obscuro ocorrido em terra tão tropicalmente remota, cuja única contribuição para a humanidade fora a invenção do saquê, que muitos séculos depois servira de inspiração para os garranchos de Sandro Botticelli e de combustível para os mujiques que expulsaram a tapa os otomanos de Pernambuco?
Bem, é uma história meio comprida que podemos abreviar assim:
Certa feita, alguns exemplares da revista Seleções tinham sido esquecidos num banco da estação ferroviária por um vendedor de artigos de borracha paulista de passagem para Minas. Como naquela cidade do interior houvesse escassos alfabetizados, ninguém deu muita importância às revistas. As informações acerca das ditas – que no total eram quatro – e de seu paradeiro final são ainda controversas, mas se tem como razoavelmente líquido e certo o seguinte: um exemplar provavelmente fora resgatado pelo próprio vendedor paulista, que, graças ao Redentor, conseguira retornar são e salvo da Bahia, embora corram rumores de que depois da viagem passara a reclamar que estava ouvindo visões e vendo vozes; dois exemplares foram levados pelo faxineiro da estação, que, sendo iletrado com doutorado em Portugal, pensara tratar-se da nova edição do novo e do velho testamento e os entregara ao pastor da assembleia de deus, que depois disso passou a ler uma das saborosas piadas da caserna ao término de cada peroração bíblica; e o oitavo exemplar, depois de ficar largado num banco durante dias, acabara coincidentemente nas mãos da nossa cara e homonímica Renata Marta, que, tendo escutado no rádio que o mequedônaos estava oferecendo vagas para gerente de salão de beleza em Campinas, decidira mudar definitivamente de vida e daquele fim de mundo e fora ao conservatório comprar um relógio.
Como o guichê ainda não abrira, pois naquela cidade do interior os guichês só funcionavam das onze às dez e meia e ainda eram dez e quarenta, Perpétua sentou-se para descansar as varizes e avistou no banco aquele último exemplar perdido. Maldizendo os biscoitos de mantecau que comera no café da manhã e que lhe estavam causando ligeiros distúrbios estomacais acompanhados de cólicas intestinais, ela apanhou a Vejinha e foi ao banheiro. Assim que se instalou para aliviar-se, Milene abriu o jornal a esmo e viu aquele famoso retrato de Trotski em que o cabeça da intentona comunista contempla contristado o nada, lamentando a gigantesca cagada que ele e seus camaradas tinham acabado de cometer. Até aí, nada demais, pois Nair não se interessava muito por intelectuais arrependidos com cara de rabino. O que lhe chamou a atenção mesmo foi a foto dum martelo no pé da página: era aquele que fora usado pelo frio e doutrinário espanhol Ramón Mercader para arrebentar o crânio do judeu a mando do famigerado Lev Davidovich Bronstein, que na época estava tendo um caso com a mulher de Portinari, Carlota Joaquina.
E assim, travando conhecimento tão visceral com o dramático assassinato de Trotski, a doce mestra Adalgisa, ainda adolescente e virgem, tomou-se de encanto pela saga menchevique, tendo-se entregado a partir de então a calientes delírios de ménage a cinq com Georgi Plekhanov, Aleksandr Bogdanov e o indefectível Nikolai Bakhurin.
Mas como íamos escrevendo, o maior orgulho das duas enfermeiras era pertencerem ao magistério, uma das poucas conquistas de que o Brasil e seu povo podem se orgulhar. Todos os países têm fotógrafos, às bateladas. Mas só o Brasil tem magistério. Não se trata dum magisteriozinho chinfrim qualquer, mas d’O Magistério! Michele nunca permitia que essa medalha de honra ao mérito mental deixasse de ofuscar todos os insignificantes cacos de desejos frustrados, resquícios de sentimentos inconfessáveis e sombras de pseudo pensamentos que vagavam em remotas praias cariocas perdidas em sua cabeça. Sempre que sentia a lei da senilidade fazer o fardo da frustração pesar-lhe nas costas já doloridas de tanto carimbar tíquetes no restaurante, o único consolo era pensar que fazia parte d’O Magistério. Quando ficava condoída porque Miguel, o vizinho da frente, não lhe dava pelota, a saída era contentar-se c'O Magistério. Quando aquele maldito dente do siso que ela se recusava terminantemente a arrancar dava sinais de vida, fazendo-a ver dentifrícias estrelas, o bálsamo era delirar c'O Magistério. Santo, Bendito, Milagreiro Magistério! Só autorizava os pensamentos a evaporarem em outro assunto no momento em que, logo após a janta, deitava para dormir e, quase sem querer, a meio caminho entre as névoas da vigília e o fog curitibano do sono, deixava que o dedo médio da mão se metesse entre os grandes lábios da vagina e, enquanto o dedo pulsava, ia ensaiando o antigo, domesticado, familiar, libidinoso teatrinho mental em que ela era a mocinha e Carlão, o aluno mais relapso, preguiçoso, grosseiro, intrépido e troncudo da classe voltava à sala de aula quando só ela permanecera ali, terminando avaliações de alunos e fechando livros, agarrava-a pelos ombros, puxava-a para si, enfiava-lhe a mão por sob a saia, arrancava-lhe a calcinha, agachava-se, forçava a cabeça por entre suas pernas e começava a lhe lamber o relho, espicaçando-a com a língua, mordiscando, acarinhando-lhe o ânus, até por fim deitá-la no assoalho, abrir a braguilha, tirar o pinto duro feito pedra e invadi-la ao mesmo tempo em que a sufocava com frenética e lambuzada língua de dragão.
Depois do gozo contido mas imenso, que, tal como ocorre a todos nós seres humanos, a pusera em contato com insondáveis sensações primitivas, Olívia, fingindo para si mesma que tinha a consciência limpa, virava o corpo de peso médio para o outro lado, tentando concentrar-se no sono. Mas o sono é feito bicho arredio que mais escapa quanto mais você tenta agarrá-lo. E outra: ninguém se livra impunemente do insondável encontro com suas sensações primitivas. Assim, depois duma eternidade revirando-se na cama, puxando a coberta, afastando a coberta, Geralda por fim entregava os pontos: levantava-se, ia ao banheiro e lavava os pés, escoimando-se do pecado solitário.
Bem, depois de todas essas peripécias, podemos finalmente pôr um fim na história da moça que foi roubada pelo ladrão. O leitor talvez estranhe que ponhamos um fim na história da moça que foi roubada pelo ladrão sem termos falado da moça e apenas do roubo e do ladrão. Lamento, prezado leitor, mas infelizmente fica pra próxima. Em minha defesa, tenho a dizer que, procurando reconstituir os fatos, entrevistei – por telefone, claro, pois não sou louco de ir pessoalmente àquela cidade do interior – diversos moradores locais do lugar. Uns alegaram não se lembrar mais do caso, outros disseram não ter nada a declarar, o enfermeiro fora atropelado por um piano que caíra do décimo segundo andar da pizzaria. Além do mais, o roubo foi há tanto tempo, que ninguém mais se importa.


Revisita do sabiá laranjeira

A manhã vai nascendo. Posso pressenti-la, embora a luz ainda não tenha chegado. Abro os olhos. Não há nada mais inútil do que abrir os olhos no escuro. Nestes poucos minutos entre a madrugada e a alvorada eu, feito um peixe, poderia não ter pálpebras.
Tem horas em que muitas de nossas habilidades são imprestáveis. A de poder fechar os olhos é uma delas.
Pensando nisso, há quanto tempo não fecho os olhos? Digo, quando não estou me preparando para dormir. Há uns bons anos. Mais do que sou capaz de rememorar. Costumava fechá-los quando era moleque.
Já fui criança, incrivelmente criança. Lembro que gostava de experimentar. O objeto mais constante dos meus experimentos era eu mesmo. Fechava as pálpebras, me inundava de mim, enveredava por dentro como se explorasse um estranho. Me punha do avesso, passava horas... horas, não, dias, dias e noites, no meu imenso pavilhão escuro. Embora não enxergasse praticamente nada, lembro de que caminhava com desenvoltura aqui no meu eu-gruta. Ou seria “lá”?
Meu pavilhão parecia abafado e infinito ao mesmo tempo. Não tinha passagens, ruas ou caminhos. Apenas atalhos, atalhos incomodamente estreitos, apertados, como se não fossem feitos para o meu trânsito. E longos – longos demais para ser atalhos. Sem razão de ser. Na maior parte do tempo, lembro, ansiava angustiado pela dádiva de poder andar sem obstáculos. Mas aparentemente era impossível. Os intermináveis atalhos eram uma sina. Maldição. Eu estava condenado.
Dentro do pavilhão de mim me sentia o mais minúsculo dos insetos rastejantes. Minúsculo a ponto de não existir. Mais minúsculo do que o mais ínfimo dos vermes. Mesmo assim, me via gigante.
Às vezes, o pavilhão, embora infinito, não era suficiente para me conter. Nessas horas tinha de prender a respiração, relaxar dolorosamente os músculos, encolher a barriga, comprimir o peito, estreitar os ombros, recolher a cabeça, me espremer e, me esgueirando qual um colossal inseto incontível, bater em retirada. 
Havia outras situações em que era obrigado a suspender meus passeios pelo pavilhão. Quando não eram os atalhos labirínticos ou o verme corpulento ou o gigante apequenado, era a presença “dele”. Não tinha e nunca tive provas de que “ele” estava por perto. Jamais encontrei um rastro naquele chão que ora era de terra, ora, de pedra ou de areia ou ladrilho vermelho. Jamais senti algum cheiro incomum que denunciasse um intruso. Nunca constatei nenhum sinal factível da existência de alguém em meu imenso e solitário escuro supostamente vazio. Mas havia aquela desconfiança imorredoura. Desconfiava, cada dia mais aflito, da presença “dele”. A suspeita infundada mas irreprimível é a mais cruel das torturas. “Ele” me rondava, eu tinha quase certeza. E a incapacidade de estar plenamente convicto me angustiava ainda mais. Mesmo hoje ainda não sei ao certo se “ele” de fato estava ali. E de uns tempos para cá dei de cismar que não era “ele” e sim “ela”.
A manhã prossegue nascendo. Como podem ser demorados esses partos matinais. Alguns levam toda uma vida. Há, entre esses, uns que são mais tenebrosos que a mais negra das noites. Quase clamam, com perdão do gracejo sem graça, um aborto.
Meu olhar continua a averiguação do escuro. Seria um bom momento para a poesia, este. A alvorada e o crepúsculo sempre nos trazem, a nós românticos açucarados, alimento para a imaginação. Mas é claro que o poeta não carece de comida. Ou de vitaminas ou sais minerais. O poeta autêntico, digo. O que, é igualmente claro, não é meu caso. Não que eu não tenha sensibilidade, vocação, introspecção, desgosto com a vida, “gaucherie” – esses ingredientes sem os quais nenhum poeta digno do nome poderia passar – suficientes para a tarefa. (Ou “missão” ou “destino”, se preferirem.)
Pelo contrário, sou, modéstia à parte, bem dotado nesses quesitos. Sobretudo, como deve estar evidente, no item “desgosto com a vida”. Nesse sou craque. Se mágoa, padecimento, amargura e congêneres bastassem para fazer um bom poeta, eu teria ganho o Nobel um bom, bom tempo atrás.
Mas, pobre de mim, me faltam três elementos básicos.
Um é a coragem. Sou um dos homens mais covardes que conheço. Por exemplo, percebo hoje, já com uma bela carga de experiência de vida nas costas, que naquele pavilhão de que falei acima havia uma pera de luz bem ao lado da porta, pera cuja existência sempre me recusei a admitir. Tudo teria sido incalculavelmente mais simples se tivesse me dignado a iluminar aquela grande e sombria nave gótica. Mas também hoje me dou conta de que prefiro as sombras à claridade. Quem sabe eu seja mesmo aquele inseto rastejante com que fantasiava nos meus delírios autoexploratórios. Quem sabe não mereça senão uma bela pisada duma bota clemente que venha pôr um fim a esta vidinha miserável que tenho levado desde que nasci.
Se há algo que um poeta requer para se dizer poeta é bravura. O candidato a vate tem de ser valente para encarar sua “humanidade” de frente, sem desviar para o lado seus olhinhos assustadiços. Nossa “humanidade”, ou seja, nossa condição de homens e mulheres determinada por nossos sentimentos, estados de espírito, emoções, pensamentos e hereditariedade, entre outros, é o grande assunto da poesia, e talvez o único que interesse de fato. É, nada mais, nada menos, que o famoso “dedo na ferida”. Em maior ou menor extensão, todos nos achamos capazes de cutucar nossas próprias fraquezas. Mas poucos o somos de fato. E os verdadeiros poetas são os capazes. Escarafunchar os próprios sentimentos, pegá-los com mãos fortes e nuas, não é batatinha. Identificar o que realmente somos e não retroceder ante a dor que se torna cada vez mais lancinante à medida que avançamos é tarefa hercúlea. E expor o que jaz dentro de nós em estado bruto, intratável, refratário à nossa própria força de vontade, é a recompensa.
Desse primeiro elemento básico deriva o segundo: sinceridade. Não existe poeta mentiroso. A poesia é consequência da nossa veracidade. Mesmo o mais erudito e inteligente e loquaz e fecundo dos mortais, dotado do mais rico vocabulário e das mais prodigiosa imaginação, será um retumbante fiasco poético se não for capaz da sinceridade. A retórica por si só é balofa feito um imenso saco estufado de ar. É por isso que a grande maioria dos pretensos poetas deste mundo não passa dum bando de papagaios constrangedores recitando trovinhas sem graça. Versos falsificados, melados de lirismo planejado, respingando a sentimentalismo pisado e repisado, não têm nada a ver com poesia. O “fingidor” de Fernando Pessoa, para nos atermos a um poeta conhecido de todos e imitado à exaustão, é o mais “autêntico” dos personagens poéticos jamais inventados por um gênio literário. O que nos esclarece e arrebata em Psicografia é precisamente o grandioso confronto de fingimento, nosso estado quase que permanente, e revelação. O “insight” deflagrado por esse embate é de tirar o fôlego. E a simplicidade com que ele se desveste diante dos nossos olhos. Quase um direto no estômago. Uma “porrada”, como Pessoa gostava de dizer.
A facilidade com que Pessoa chega à verdade, o despojamento vocabular de seus versos, a naturalidade, a quase modéstia são todos enganosos. Com licença do chavão, é complicado ser simples. A engenhosidade da simplicidade de Pessoa é atordoante. Mesmo se não entendemos exatamente o que ele quer dizer, pelo menos nos reconhecemos atordoados. Para a maioria de nós, isso basta. E talvez, ao contrário do que dizem os acadêmicos que vivem às custas de “explicar” a obra alheia, isso seja tudo que interesse. Mas o que os imitadores de Pessoa não compreendem é que ele é quem é porque teve coragem de mergulhar nas trevas do oceano de si mesmo e, ao retornar à superfície, expor as preciosidades que descobriu em suas profundezas da forma espantosamente bela e competente como expôs. Pessoa não nos mostrou onde está a poesia – apenas indicou o “seu” caminho. Cabe a cada um de nós descobrir o nosso.
E o terceiro elemento básico que me falta para ser poeta é a disciplina. João Cabral, um dos maiores poetas brasileiros – e pouco lido e imitado, por ser avesso ao sentimentalismo desbragado e buscar o rigor formal acima de tudo –, era disciplinado não apenas na métrica exata de seus versos, mas também em seus métodos de trabalho e no empenho com que se dedicava a seu ofício. Muito mais do que um apaixonado, era um “operário” da poesia. Tal como, nesse sentido, Drummond. Não que o desregramento seja incomum entre poetas, evidentemente. O próprio Pessoa era chegado numa manguaça – a cirrose o levou, pobre –, o que certamente não o ajudava em nada neste terceiro quesito poético.
Outro que bebeu a vida inteira e morreu em estado etílico foi Dylan Thomas. E lembremos Robert Lowell, William Faulkner, Fitzgerald. Entre os brasileiros, Paulo Leminski, biriteiro e sorvedor de tudo que o tirasse do eixo da mesmice. E me parece que Pessoa era dado mais à inspiração que ao método. Segundo consta – e salvo engano (hehehe, “salvo engano” é ótimo, você pode escrever qualquer barbaridade e anexar essa expressãozinha-salvo-contudo para limpar sua barra), bem, segundo consta, Pessoa escreveu o primeiro rascunho d'O guardador de rebanhos num surto de minguadérrimos 40 minutos!
Mas quando falo em “elementos básicos da poesia” estou me dirigindo a mim mesmo e a você, mortais comuns, não a gênios indóceis que não nasceram para seguir regras.
A manhã vai brotando ainda. Ou melhor, acho que vai. Não tenho certeza absoluta de que o tempo de fato passa. Como poderia? No escuro – no meu escuro – as coisas não acontecem, o mundo não existe. Talvez nem eu mesmo exista.
Mas não adianta brincar de Deus – já há ao meu redor uma penumbra inefável em vez das trevas absolutas de um minuto atrás. “Um galo sozinho não tece uma manhã”, verso inaugural, contidamente apoteótico, dum dos maiores poemas da nossa língua. Qual. Há vinte anos não acordo com a aurora sob o anúncio trombeteiro dum galo. Não há mais galos, sei. Os frangos de hoje são reproduzidos por computador. Sobretudo, não há mais galos tecelões. Se os há, converteram-se em arautos mudos de cada dia.
A penumbra vai esbranquiçando, já é possível distinguir a silhueta dos móveis. Surgem uns riscos na janela – é a luz solar tentando devassar meu quarto pelas frestas desalinhadas da veneziana. 
Será cada manhã prova da renovação da vida?
Quando era moleque, não dava a mínima para manhãs, vida, renovação, poesia, Pessoa, essa tralha toda. Passei a infância e a adolescência compenetrado comigo mesmo, às voltas com meu pavilhão, “ele” e outros assuntos pessoais e intransferíveis. Hoje às vezes penso, repito, “ele” talvez fosse “ela”. Se essa possibilidade tivesse me ocorrido naquela época talvez minha permanente desconfiança tivesse sido certeza e agora tudo seria diferente. Ou nada. Nada seria diferente.
O Sol finalmente se levanta. The Sun Also Rises. “Não perguntai por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti.” 
A manhã vai... pronto, nasceu. E, miraculosamente, renasce, renasce, renasce sem parar, e desaparece para ceder lugar ao dia, que morre sob o manto da noite. Procuro renascer também, olhar minha escuridão com outros olhos, mas não há mais tempo.
O Sol não tem história. É praticamente o mesmo desde que foi criado com o Big Bang há 15 bilhões de anos. E continuará sendo ainda por outras centenas de milhões. Sou uma formiguinha absolutamente sem importância no infindável formigueiro que é este planeta, cada dia mais emporcalhado de fezes, graxa, cuspe, névoas químicas.
Esta semana recebi uma certidão da Itália atestando que meu avô Giocondo nasceu aos 18 de abril de 1873 num povoado chamado Crevalcore. Meu bisavô se chamava Giuseppe. Minha bisavó, Palma Strada. A certidão foi requisitada por minha irmã, que nos últimos tempos tem-se dedicado quase obsessivamente a levantar a árvore genealógica da família.
Palavrinha escabrosa, genealógica. Não entendo essa necessidade de buscar as raízes. Me cheira a medo de parecer zé-ninguém. Todos somos zé-ninguéns, uns mais, outros menos, mas zé-ninguéns.
O Sol vai iluminar esta e ainda outras bilhões de manhãs, outros bilhões de zés vão sonhar sob a mudança de estado mental que é a alvorada, o crepúsculo e fenômenos que tais da física.
Não passo dum efêmero, como efêmero foi o nascimento desta manhã. Quem sabe hoje ao longo do dia descubro que tenho câncer na próstata. Ou no esôfago. Ou um avião desabe sobre minha casa. E aniquile inelutavelmente alguns descendentes de Giuseppe e Alma, camponeses analfabetos que viveram no Norte da Itália no século XIX e cujo filho Giocondo, casado com Maria Olga, resolveu tentar a vida num país distante chamado Brasil. Costumo brincar que nono bem poderia ter dirigido seu volumoso nasone italiano rumo à “América”. Quem sabe teria me tornado um importante gângster em Chicago.
Mas não faria diferença. Provavelmente estaria olhando a luz entrar pelas frestas da veneziana, relutante em levantar, mal acordado e já exausto do dia e da vida. Com a única diferença, talvez, de ser acompanhado na solidão da madrugada pelo canto melífluo dum tordo, não deste meu inseparável sabiá-laranjeira que não se cansa de me convocar. Para que, não sei.


Anatomia duma intelectual profissional

Umpf!

Nota de junho de 2009: esta anatomia foi escrita após a descoberta da relação entre Zé Dirceu e Waldomiro e antes do mensalão.

Leio no Estadão entrevista c’uma senhora chamada Maria Victoria Benevides. Professora da USP, sabemo-lo todos que nos interessamos pelos rumos do Berção. (Caprichemos na norma culta da língua, que é pra ninguém depois querer tacar o apagador neste vosso pobre servo que não pôde concluir os estudos.)
Mais que professora, socióloga. Depois que Efeagá desfilou garbosamente de presidente do Brasil, sociólogos me deixam inquieto. Incomodado até.
A entrevista foi conduzida pela valente jornalista Laura Greenhalgh, que desde a primeira pergunta deixou claro à entrevistada que estava ali em nome de seus leitores. Extrairia da professora tudo que lhe permitisse a ética profissional. Naquela sala refrigerada a 23ºC, acarpetada em tons de marrom-glacê, paredes ornadas com obras de mestres modernistas brasileiros, ela, Laura Greenhalgh, seria a implacável porta-voz da nação, não se furtando a colocar as perguntas que tiram o sono de todos nós que, se me permitem uma autoparáfrase, nos interessamos pelos rumos do Berção. Por mais duras que pudessem parecer aos risonhos olhos acadêmicos da socióloga. Acrescente-se ainda que ambas bebericaram chá-mate com sutilérrimos tons de canela e limão durante a entrevista.
Mal começo a devorar a entrevista, bato o olho numa informação básica, bem na segunda linha: a professora tem 62 anos. Fico surpreso em ver que uma pessoa de tão provecta idade, certamente preocupada em como descolar soluções para as tragédias nacionais, possa colaborar com a administração peetista.
Seja como for, procuro enxergar a informação pelo lado positivo. Agora sei que a querida socióloga poderia ter sido duas vezes protagonista d’A idade da razão, de Sartre, e portanto trata-se, suponho, de pessoa com boa dose de bom-senso. Fico sabendo também que equivale a mais de duas balzaquianas. E que poderia ter tirado carta de motorista pelo menos três vezes. E que, do ponto de vista constitutivo, acha-se naquele período particularmente fértil em que acumulamos as mais significativas experiências biológicas e existenciais, mas ainda mantemos na memória resquícios daquela distante vitalidade com que reagíamos mais prontamente aos estímulos dos hormônios.
Mas ter 62 anos e ser professora da USP e socióloga não é tudo na vida de Maria Victoria Benevides: ela (cito textualmente da matéria) hoje integra a Comissão de Ética Pública, criada pelo presidente Lula pra avaliar a conduta de ministros e altos funcionários da administração federal.
Missão fácil? indaga a fera jornalista não a Benevides, mas ao leitor, como se o entrevistado fosse este e não aquela. Claro que não, responde a própria jornalista, antes que alguém tenha tempo de abrir a boca. Cito novamente: É trabalho voluntário, às vezes tem de ir ao Planalto para reuniões, chamar ministros às falas. E a intrépida entrevistadora tasca sem dó outra perspicaz pergunta: Quem gosta disso?
A entrevista, que ocupa toda uma página do Estadão, é ilustrada por uma grande foto colorida de Benevides. E já que esta é uma anatomia, façamos um exame mais detalhado da fotografia da socióloga, que é pra depois não dizerem que sou um anatomista superficial, que seria uma contradição segundo a boa prática bacharelesca.
Maria Victoria Benevides é fotogênica. Não fossem as 62 primaveras, até que valia um aplique. Não que eu me amarre apenas em brotos. É que ela jamais daria colher de chá pra quem nunca escreveu uma tese acadêmica nem passeou pela Europa às custas de indiozinhos kaiowás que se enforcam quando ficam ébrios.
Enquanto analiso a foto da simpática socióloga, vou saltando o olhar pelos parágrafos da entrevista. Como já esperava, Benevides não perde a oportunidade de enaltecer as virtudes passadas do peetê, a força de vontade dos peetistas, a determinação insuperável de Lulla em vencer os óbices que se lhe antepõem.
Benevides transpira um ar viçoso. A textura da pele não indica problemas nefríticos dignos de nota.
A certa altura Laura Greenhalgh tasca na bucha, como se adivinhasse meus pensamentos:
Professora, vê-se que o branco dos seus olhos não está... um... amarelo. Isso significa que a senhora não sofre de cirrose hepática. É verdade que nunca bebeu?
Nunca, Benevides estala a língua ao sorver um golinho de chá-mate.
Mas e o Waldomiro, professora?, insiste a incansável Laura Greenhalgh, passando a mão na testa como se a resposta a tivesse deixado mais que inquieta, constrangida. (É claro que quem a conhece sabe que nada, absolutamente nada a deixaria inquieta, muito menos incomodada.) Vai me dizer que não encheu a cara nem quando o jornacional passou o filme do Waldomiro extorquindo aquele bicheiro?
Hum, acho que pus muito adoçante, responde a socióloga.
Professora!, Laura Greenhalgh insiste, pondo-se de pé, olhos arregalados, voz estranhamente alterada. O braço direito do ministro Zé Dirceu! O homem estava instalado no coração do poder! A senhora não quis tomar sequer uma caipirinha de maracujá pra acalmar os nervos?
Nesse momento meus olhos fogem do texto da entrevista e retornam à fotografia. O cabelo de Benevides poderia ser mais bem tratado. Um profissional capilar competente talvez conseguisse pôr os fios algo rijos e encorpados em seu devido lugar.
Professora! Laura Greenhalgh se põe a caminhar pela sala, tropeçando aqui e ali no espesso tapete azul-ameixa que cobria o carpete verde-garrafa. O dinheiro se destinava ao financiamento de campanhas de peetistas para o governo de estados! Isso não é suficientemente grave?
Ah, o chá tá uma delícia, Benevides esfrega os lábios, saboreando.
Meu olhar volta para a foto. A socióloga tem nos lábios relativamente taludos e sensuais um meio-sorriso matreiro.
A indócil Laura Greenhalgh volta à carga:
E a CPI do Banestado, professora? O peetê ajudou a abortar a CPI! Mais uma vez os grandes ladrões da nação se safaram ilesos! Que é que a Comissão de Ética Pública tem a dizer a respeito? A senhora não sentiu ganas de arrancar os cabelos?
Desesperada, Laura Greenhalgh leva as duas mãos ao alto, agarra dois tufos de cabelos e começa a sacolejar violentamente a cabeça. Na foto, o meio-sorriso matreiro de Benevides se abre de todo, expondo os dentes bem cuidados, branqueados artificialmente.
Então algo me chama atenção no pé duma das colunas do texto da entrevista. São duas reles linhazinhas, pronunciadas no mais trivial tom blasé pela professora socióloga Maria Victoria Benevides:
Não tenho dúvidas sobre as boas intenções dos programas sociais do governo.
A indomável Laura Greenhalgh abre a vidraça e pula da janela. (Soube depois que a sala em que ambas estavam fica no terceiro andar e que a jornalista apenas quebrou as pernas, um braço e uma vértebra, sem sofrer nada mais grave, graças aos céus.)
Pô, Laura Greenhalgh, eu ainda queria saber se a socióloga guarda parentesco com o ínclito senador Mauro Benevides. Que saída mais impetuosa, seu.
Olho pela última vez a carinha meio galhofeira de Benevides na imensa foto colorida que ocupa toda a página do valoroso Estadão. Vê-se que é pessoa de bem: de bem com a vida, de bem consigo mesma.

Post escrito:
Relendo esta anatomia, vejo que ficou meio machista, sobretudo na arenga sobre a idade da Benevides, que desequilibrou o todo. Agora lembro que houve. Fiquei repentinamente cansado. Bem na hora em que estava para desenvolver outras partes da anatomia e tentar obter o dito equilíbrio. É isso que dá escrever demais. Mas não consigo conter minha verborragia. Já tentei imitar o Dalton, mas aquela economia lá dele poucos logram perpetrá-la. Agora relendo pela terceira vez, vejo que disse muita coisa que não queria dizer. E não disse muita coisa que queria. Me perdi, acho que na volta do banheiro. Sim, estou me lembrando. Tinha mil coisas na cabeça. Agora vou detonar aquela mulher, pensava. Os pensamentos fervilhavam feito vermes esfomeados atacando um naco de picanha esquecida há oito dias fora da geladeira. Aí sentei no computador e... puf! Sumiu tudo. É que escrevo demais, etc.