Sanatório revisitado


Volto ao sanatório depois de trinta anos. Finalmente, diria. Não ouso. Trinta anos fantasiando a chegada, parando, olhando em volta, quem sabe olhando o céu, quem sabe olhando o chão, quem sabe fantasiando retroativo em infinitos ricochetes com as fantasias dissipadas sob a luz cegante da realidade vigente.
Naquelas, de outros tempos, me via aqui parado e brincava, me aconselhando, olhe as pessoas que estão passando, e respondia a mim mesmo, não, não vou olhar ninguém, mas, me ludibriando, olhava, e quando as fantasias eram mesmo desvairadas, até puxava conversa com um transeunte, com licença, amigo, antigamente havia um sanatório aqui, será que ainda existe? Existe, sim. O senhor está bem diante dele.
Nas fantasias a esmo, sempre inesperadas, me assediando sem dia nem hora, estou atento ao meu próprio assombro. Nas fantasias procuro aquilatar as emoções que dentro de mim se movem formidavelmente pesadas. Nas fantasias as emoções são montanhas compostas de cada torrão de pensamento e dor. Quando fantasiando chego e me coloco diante do prédio do sanatório, as montanhas começam a soçobrar. Primeiro, o pico em que estou (onde estou agora, nas fantasias). O pico do presente, eu aqui parado, olhando para o portão como se do outro lado ele escondesse uma revelação mística. Depois que o pico do presente onde estou desliza, levantando em sua queda pesadas e sombrias e estrondosas placas do ontem, é a vez dos demais picos. Que seriam? Me dá uma preguiça insuperável. Não quero especular. 
Paro diante do portão do sanatório. Olho a calçada, as paredes, as janelas, um olhar curioso, enfadado, sôfrego e decepcionado. Nas minhas fantasias pensava, nesta hora, você vai se lembrar graficamente de cada detalhe. Tudo parece igual, só que um igual diferente. Não sei se já estive aqui, ao fato, de certo. A sensação usual que sim, que não. Sede sôfrega dum copo d’água seco. Familiaridade incômoda.
Aperto a campainha.
Mil vezes antecipei meu braço se estendendo à frente, indicador da mão direita se desdobrando vagaroso assumindo autônomo a forma duma seta rumo a um mundo que só existe dentro de mim.
O zumbido anestesiante e ao mesmo tempo estridente da campainha me joga de volta diante do portão na calçada. Recolho o indicador, a mão, o braço. Queria me recolher um milímetro mais, virar do avesso. Me derramar pra dentro.
Terá sido um erro? Nas fantasias a possibilidade nunca me passou pela cabeça. Retornar ao sanatório jamais poderia ser um erro. Temeridade, risco que só um imprudente seria tolo a ponto de correr, talvez. Erro, não.
Estão demorando para abrir o portão. Refaço o gesto com que apertei a campainha a primeira vez, agora me preparo para o alarme. Sei que vou me assombrar. Me assombro.
Quem vai abrir o portão? Redesenho mentalmente o rosto dele, que tenho guardado em placa de chumbo esculpida na chama azul do acetileno. Por que “dele”? E se for mulher? É claro que não será mulher. Não fantasio mulher. Não haverá de ser.
Será, sei, um negro de meia idade, grisalho, bigodinho grisalho, expressão sofrida de escravo resignado à dor tamanha do mundo. Será um nordestino franzino de pele escura e olhinhos claros nervosos, hostis e severos que viram o que ninguém toleraria ver. Será um rapazinho, novo no emprego, hesitante, tão intimidado por dentro quanto eu com sombras inchadas convulsas de luzes falsas.
– Pois não? – Ouço uma voz e me ligo. Olho prestando atenção no universo e esqueço de confirmar o rosto.
– O doutor Jeferson está? Tenho hora marcada.
– Um momento.
Tornam a bater e trancar o portão. Espero. Alguns minutos depois ouço a fechadura sendo novamente aberta.
– Pode entrar – diz um homem.
Lembro de olhar. Ele é baixinho e calvo. Não tem cara de brasileiro. Por essa eu não esperava. Se põe de lado para eu passar.
– É ali. – Ele aponta uma das várias portas no prédio, distante uns dez metros da entrada.
Começo a rumar para a porta. Dou dois passos, paro. Entorto os olhos para o pátio. Tal como esperava nas fantasias. Quase nada mudou. Uma ou outra árvore desaparecida, uma ou outra crescida onde antes não havia nenhuma. Os mesmos bancos de madeira em que eu e todos os demais internos passávamos os dias olhando para nada. Ali naquele canto ficava a moça barriguda de grandes tetas caídas que gostava de vir olhar quem entrava. Cada um ela se erguia, caminhava, arregalava os olhos, dizia, sem mudar nada na expressão do rosto: “Coitadinho!” Na minha vez também fui acolhido assim.
Agora os bancos estão vazios. Vai ver fizeram outro pátio na área dos fundos.
Chego à porta indicada, paro, leio a plaqueta: “Dr. Jeferson”.
Dou três batidinhas.
– Pode entrar! – alguém diz do lado de dentro.
Empunho a maçaneta de alavanca e comprimo para baixo.
Entro e fecho a porta.
Me vejo numa saleta.
No meio dela há uma mesa.
Atrás da mesa, um homem de branco.
– Seu Edgar? – ele pergunta.
– Sim.
– Sou o doutor Jeferson. Faz favor de sentar. – Ele indica uma cadeira defronte a mesa.
Sento obediente, fico inerme.
– O senhor telefonou dizendo que desejava ver seu prontuário, não foi? Passou por tratamento neste sanatório. Há trinta anos.
– Foi.
Ele estende o braço para um canto da mesa e apanha uma pasta velha encardida.
– Deixei preparado para quando o senhor viesse.
Ele abre a pasta e retira algumas folhas.
– Antes de liberar o acesso a seu prontuário – ele me olha tranquilamente –, preciso me certificar da sua identidade. O senhor sabe, é o regulamento.
– Claro. – Enfio os dedos da mão direita no bolso da camisa e tiro o erregê. Estendo para ele.
Ele apanha meu erregê, apanha uma prancheta plástica coberta por uma folha, apanha uma esferográfica, anota meus dados.
– Qual é seu endereço, seu Edgar?
Digo meu endereço, ele anota na mesma folha. Me devolve o erregê.
Estende as folhas do meu prontuário na minha direção.
Ergo ligeiramente os quadris da cadeira, me inclino para a frente, pego. O dr. Jeferson só observa.
Na primeira linha da primeira folha está escrito “Paciente:”, seguido do meu nome. “Ano: 1969”. “Idade: 22 anos e cinco meses”. Sexo, cor, sinais característicos. Vou passando os olhos, tentando pedir ajuda às fantasias, de repente lembrando, não imagino por que, de uma família de espanhóis nossos vizinhos quando meu pai era vivo e eu tinha uns sete anos, quando eu crescer, sonhava naquela época, vou ser um homem bom, vou ser educado e simpático e gentil e sorridente e todos vão me amar, não vou ser ranzinza como meu pai nem neurastênico como minha mãe, nunca vou subir no alto dum prédio no centro e me jogar lá pra baixo como meu irmão, vou ser um homem bom, nunca vou querer dar o cu como dizem que alguns homens fazem, vou ser artista, escritor, pintor, pensador, vou fazer música, vou cantar com a voz mais doce e amável que já se escutou no mundo.
Segunda folha. “Terapia eletroconvulsiva”. “Pré-anestesia: succinilcolina”. Continuou lendo. Nenhuma novidade. Está tudo lá tal como nas fantasias.
Vou passando as folhas, fingindo que estou interessado, para não dar na vista.
É fácil acabar com os males do mundo. Tão fácil, que me admiro não haver mais pessoas como eu. Naquela época, pensava, basta pensar. Simples assim. Pensa e pronto. Os males são cometidos pelas pessoas que não pensam.
Quando acho que já examinei o prontuário tempo suficiente, dou uma tossinha, endireito as folhas no colo e devolvo ao dr. Jeferson. Ele pega e repõe na pasta velha encardida. Depois me olha interrogando.
– Bom – digo, sem jeito. – Era só isso.
– Estamos às ordens – ele diz querendo se mostrar solícito. Estende a mão.
Me ergo da cadeira, aperto a mão estendida.
– Obrigado pela atenção.
Dou meia volta, rumo para a porta. Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, tende piedade de nós. Empunho a maçaneta.
Nesse momento ouço a voz do dr. Jeferson.
– Espera aí. Aqui diz que o senhor morreu sob tratamento.
Comprimo a mão na maçaneta. Fico estático.
Continuo, abro a porta. 
Me volto para ele.
– Veja. Há um atestado de óbito. – Ainda atrás da mesa, ele ergue uma das folhas e mostra na minha direção.
Tiro a mão da maçaneta.
Dou nova meia volta, retorno à mesa. Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, dai-nos a paz.
– O corpo foi enterrado? – escuto minha própria voz perguntar.
– Sim. Veja. No Cemitério dos Remédios.
– Deve haver algum engano. Tive alta há trinta anos. E vivi uma vida normal. Acho. Sim, vivi. Casei. Tive filhos.
– Quantos?
– Três. O... – De repente os nomes dos meus filhos somem no escuro dentro da minha cabeça. Constrangido, olho o médico. Ele fica esperando. Aflito, invento. – Tive duas meninas e um menino: Graziela, Odete e Júnior. Tive empregos. Vários. Conheci pessoas. Fiz amigos. Não pode ser.
– Seu Edgar, aqui diz que o senhor morreu quando estava internado. 
– Impossível. Estou vivo, não estou?
– Parece que sim.
– Posso levar uma cópia do prontuário comigo?
– Se puder comprovar que o senhor é mesmo quem diz ser. Tem um documento?
Tiro meu erregê. Sem olhar para o dr. Jeferson, estendo. Ele examina, coteja com o prontuário.
– É o mesmo número. Estranho. Não entendo. Se o senhor morreu há trinta anos, como está aqui diante de mim? Bem, há mistérios que estão além da nossa compreensão, não é mesmo? 
Dou um risinho evasivo, faço que sim.
Não sei se há mistérios.
Agradeço, me despeço novamente, saio da saleta. Passo pelo pátio sem coragem de olhar o banco onde a moça barriguda de grandes tetas caídas ficava à espera para recepcionar os novos internos. O homem baixinho calvo abre o portão para eu sair. Saio.
De volta à calçada, paro, me volto. Olho o sanatório. As paredes, as janelas, o portão. Tudo parece exatamente como vi nas minhas fantasias durante trinta anos.
Queria chorar. A última vez que chorei foi ali dentro, na sessão de eletrochoque.
Eletrochoque é assim. Você é um rato triste de esgoto. O raio vem. Deus te dá um tapinha nas costa. Você ri um riso gostoso e volta pro esgoto.
Encolho os ombros, reteso alguns segundos, queria ficar assim para sempre, solto os ombros. Tudo igual a sempre. Olho o sanatório, olhar último amplo, desinteressado dos detalhes. Minha frieza diante da revisita me decepciona. Nas fantasias me enxergava, em cores, gestos em velocidade humana, aqui nesta calçada onde estou agora, sendo dominado por libertação inelutável angustiante.
Nestes trinta anos, não sou outra coisa senão indeciso e vazio.
Olho rua acima.
Olho rua abaixo.
No centro da calçada faço a mais perfeita meia volta de que já fui capaz. Dou as costas, atento ao que se passa, ao sanatório, dentro de mim. Nada. Decepção. Terá se passado um segundo desde que me vi incapaz de dar as costas para ele?
Estou livre?
Bá. Vejo um dos meus braços se lançar no ar num gesto de desdém. Não importa. E se não importa, é porque sim. Sei, não queria usar finalmente. 
Olho rua acima. Rua abaixo. Hora de ir embora. Foi mais fácil do que pensava.
Rua acima. Rua abaixo. 
Minha testa está úmida de suor.
Que estou fazendo aqui?
Dou meia perfeitíssima volta. Vejo um grande prédio velho e feio e sujo, três, quatro andares. Seu aspecto me causa um sentimento repugnante e franzo o nariz.
Parece abandonado. Toca algo dentro de mim. Não identifico exatamente o quê.
Na minha frente há um grande portão de ferro desgastado pelo pela ferrugem do tempo. Notando que não está trancado, dou três passos adiante, paro. Uma fresta. Tento espiar. Empurro uma das grandes folhas de ferro. A fresta se abre o suficiente. Enfio a cabeça através dela.
Há lixo espalhado por todo o pátio, garrafas plásticas, latas de refrigerante, de cerveja, sacos de supermercado, montículos simétricos de entulho. O que um dia foi um jardim de galhos podados e flores reprimidas agora é um matagal de virgindade reconquistada. Os interstícios dos ladrilhos estão ocupados por ervas indomadas. Os paus dos bancos se amotinaram em podridão. Alguns bancos tombaram. Pichações multicores imitando rodopios insubmissos recobrem as paredes. Um abandono de décadas escorre das paredes do passado, lavando o chão que olho agora.
A deterioração me revigora. Retiro a cabeça da fresta, dou um suspiro fundo que me limpa os olhos.
Tenho duas opções: ir para cima, ir para baixo.
Olho a esquina mais próxima. Se chegar ali, terei quatro opções. Se escolher uma, terei abdicado de três. A cada nova esquina, outras três. Três. E mais três.


Um comentário:

  1. Olá, Wil!

    Considerando a exclamação, há breve entusiasmo em revisitá-lo por aqui. Não me atrevo a perguntar como estás, faz muito tempo desde que o li, bem como faz tempo que estive em meu próprio blog.
    De qualquer forma, estarei mais presente por aqui, mesmo que a correria da vida lá fora não me deixe debruçar-me por mais tempo sobre o que gostaria.

    Estarei por aqui.

    Abraço!

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