A moça que foi roubada pelo ladrão

Esta é a história da moça que foi roubada pelo ladrão numa cidade do interior.
Cidade que era um pequeno paraíso na Terra. Os moradores porém não faziam ideia de que habitavam um paraíso e levavam a vidinha aceitando estoicamente a cruz que lhes coubera.
– Será que essa nossa cruz existe de fato? – um morador mais angustiado tinha ímpetos de perguntar a outro.
– Não sei – poderia responder vagamente o inquirido. – Agora estou ocupado escutando o pintassilgo cantar.
Naquela cidade do interior havia uma espécie de acordo tácito no ar. O narrador sabe que esta frase tem um quê de inglês… mas que se pode fazer? Os moradores viviam bem mesmo assim. Antonios, marias, joões, anas, chicos e josefas, com nenhuma pressa e apenas raros tormentos de consciência, bem lá no fundo – fundo que hoje em dia só tais pessoas possuem, pois nos grandes centros urbanos só vemos gente sem dimensão alguma – agradeciam-se e aos outros e aos céus e a tudo o que pudesse ser agradecido pelo medíocre, insosso, suportavelmente pesado fardo que a loteria do Big Bang lhes atribuíra e por nada trocariam a vidinha penosa mas segura por, digamos, uma chance de falarem com deus ou o diabo uma vez por semana que fosse. A máxima pela qual se orientavam era: um orgasmo não vale o trabalho de ter de lidar com a falta de prazer o resto da vida. Quando tomou conhecimento desta história, o narrador decidiu duma vez por todas que a conduta monástica tem lá suas vantagens. 
Mas voltemos ao roubo.
No momento do roubo, a moça roubada estava não perto de casa, mas nas cercanias, o que é muito diferente, sobretudo naquela cidade do interior àquela época. A moça – que, a bem da verdade, não era tão moça assim, já habitando havia algum tempo a casa dos trinta ou, para alguns moradores mais cínicos, mesmo a dos quarenta! –, bem, a moça se chamava Eulália, talvez. Ou Eunice. Não, Eunice não parece de moça do interior. Quem sabe Ivani. Também não; Ivani era de outra cidade. Bem, Eulália ou Ivani estava de saia bege chegando pouco abaixo dos joelhos, blusa marrom de malha e sapatos pretos, tudo bem discreto. Tal como usualmente se vestia Teresa, sua colega de magistério. Ambas eram professoras no ginásio da cidade: uma, de matemática, a outra, de EMC – por isso, a última sempre atentava especialmente para a colocação lógica das vírgulas, que, já aos seis anos de idade, resolvera seria sua grande – senão única – missão na vida. A de trabalhos manuais não cultivava missão secreta alguma, pois esse negócio de missão é coisa de protestante e estamos em país essencialmente católico. Ela, a Deise, sabia bem como essas regras de espírito funcionavam. Mas continha só para si esse conhecimento, que não era boba. Para quem havia de revelá-lo? Seus alunos?
Logo quem!
“Que rebanho de asnos!”, gostaria de classificá-los a todos, mas jamais tirava conclusões tão peremptórias. Não que tirar conclusões peremptórias fosse contra seus princípios – princípios, aliás, que sabia ter, embora desconhecesse quais e quantos fossem –, mas em geral não gostava de ser muito assertive em relação às pessoas. “Afinal”, pensava, “todos somos filhos de Deus”. Além disso, em vez de ser peremptória, o que curtia mesmo era ficar matutando sobre qual seria a melhor tradução para assertive. “Que bonitinha essa palavrinha inglesa. Tão expressiva, tão amarradinha... pena que não tenha equivalente em português. Se tivesse, bem que eu usava!”
(O leitor certamente estranhará a afirmação de que assertive não comporta tradução. Pois não comporta mesmo, caro leitor. Podes crer.)
Mas, embora não chegassem a ser um rebanho de asnos – “ou manada viria mais a calhar?” –, seus alunos não se destacavam pelo brilho intelectual ou pela vontade de vencer ou pela disciplina ou pela vocação a presidente da república. Viviam em permanente estado letárgico. (O que, dependendo da cidade em que se more, pode ser positivo, mas não naquela cidade do interior.) “Esses meninos parecem não ter chama!”, costumava refletir Paulina, sentada à sua mesa na sala de aula, gasping, olhar perdido na turma catatônica à sua frente. “Pra falar a verdade, são todos uns bananas!”, pensou, despertando do seu daydreaming. “Todos, menos o Gustavo Henrique, claro. Esse vai longe!”
De fato, não se podia negar que Gerson Eduardo fosse diferente dos demais. Notava-se à primeira vista. Tinha na expressão do rosto aguda vivacidade, no olhar brilho intenso de quem não deixava a peteca cair nem o cérebro dormir. Olhava a tudo e a todos com atenção. Quem o olhava olhando a tudo e a todos via que, mais do que um mero olhar, era um legítimo exame, chegando às vezes a inspeção técnica. Ficava claro que a ele nada passava em brancas nuvens. Ao contrário dos demais, a quem se podia xingar a mãe e o pai ou até dar uma porretada no meio da orelha, que continuariam impassíveis em seu permanente sono mental, ele, Celso António, ao invés de ingerir e deglutir o input do mundo até expeli-lo sem aproveitar uma só molécula, introjetava cada situação e confronto interrelacional, interiorizando em sua brilhante cabecinha fatos e fotos para posterior processamento.
“Esse Jaime Felipe vai longe. Se vai!”, pensou novamente Ângela Clara, lembrando-se então – e só então – de fechar as pernas, percebendo que os marmanjos que sentavam no fundo da sala tinham o olhar grudado em algum ponto onde, segundo seus cálculos, achava-se seu grelho sob a mesa (que não tinha proteção frontal e quem quer que se sentasse a ela, mesa, de pernas abertas fatalmente exibiria a todos os alunos a calcinha. (Ou cueca, caso fosse homem e usasse saia.)
Não que suas pernas fossem de fechar o comércio ou paralisar a indústria. Segundo Marcelo Fernando e seu olhar escrutinador, eram “razoavelmente roliças e ao mesmo tempo esguias e bem-torneadas. Mas as batatas da perna fariam a delícia de qualquer um dos meus melancólicos coleguinhas. E até a minha, se eu fosse dado a essas coisas...” (Com o que o narrador não pode discordar, ainda mais por ter sido ele mesmo vítima de testemunhos similares em sua própria infância.)
Por falar nisso, talvez convenha discorrer um pouco sobre o pobre narrador, que vive a narrar a vida alheia mas cuja vida ninguém se lhe digna a narrar. (Se o leitor lhe permite um inocente castelhanismo.) Não vamos narrá-la toda, obviamente, pois que se trata de sujeito que já meteu o pé na estrada mas logo encontrou um atalho e hoje leva calmamente a vida a contemplar o horizonte. 
Em resumo, os fatos mais notáveis na vida do dito são os seguintes:
a) É duro como a maioria dos brasileiros.
b) Sua mãe e tias dizem que, quando bebê, quase foi roubado da maternidade, só tendo escapado porque, quando a ladra cruzava a porta da dita para ganhar a rua e dar no pé, o vigia da dita, de cigarro na boca, apalpando os bolsos e vendo que não tinha fósforos e muito menos isqueiro, pois jamais usava isqueiros, perguntou-lhe se por acaso dispunha de fogo, ao que ela disse que sim e soltou o bebê – ou seja, o narrador ainda em estado infantil – para apanhar os fósforos na bolsa, deixando o infeliz despencar de cabeça no piso de granito da dita (queda que aparentemente não lhe causou – a ele, narrador – maiores transtornos na vida, salvo por uma ligeira chatice no cocuruto). O fato é que a cretina da ladra, além de se limitar a assistir impassível o tombo, sequer tentando acudir o recém-nascido, ainda, tomando-se de fúria, fez menção de lascar um pontapé no pobre infante enquanto lhe dirigia pesados apodos, ao que o vigia, treinado que era em identificar ladras de bebês, sobretudo as que deixavam os ditos capotarem de cabeça no chão, deu-lhe imediatamente voz de prisão e restituiu a criança à legítima mãe. Segundo o próprio narrador e algumas pessoas que conhecem a mãe e as tias do dito, não se sabe se foi a melhor atitude que o vigia poderia ter tomado.
c) Às vezes delira com uma cena em que ata algumas bananas de dinamite no corpo de certos indivíduos – entre os quais destacam-se políticos, juízes e membros da elite – e tem nas mãos um aparelho de controle remoto com um botão sob o qual está escrito “Detonar”.
d) Como a maioria dos seres humanos, pisca em média 23 vezes por minuto.
e) Quando está perdido em bairros desconhecidos, não gosta de pedir informações. Apenas para o carro e fica olhando para baixo e para cima com ar de desamparo, até que alguém se digne a perguntar-lhe se está perdido.
f) Já requereu seguro-desemprego ao governo, mas ao que parece narradores não têm esse direito.
g) As mulheres em geral, independentemente da idade, dirige-se a todas por “Senhorita”.
h) Não sabe lidar direito com imprevistos.
i) Almoça todos os dias à mesma hora e no mesmo lugar.
j) Não pensa no que falam dele na sua ausência.
l) Não pensa em muitas outras coisas.
Mas voltemos mais uma vez à história da moça que foi roubada pelo ladrão. Antes de sermos tão deselegantemente interrompidos, falávamos de Carla Amélia e sua colega, a também balconista Gilda. Como também já dissemos, Anita tinha verdadeira obsessão pela língua e não tolerava que se destratasse o vernáculo em sua presença. Quando lia um período mal construído ou uma locução adjetiva no lugar dum substantivo adjetivado comprimia os punhos com tamanha força, que os dedos ficavam exangues, as veias se lhe inchavam horrendas no pescoço e o rosto corava de verde-salmão. Perto dela, o corcovado Aldrovando, personagem a que Monteiro Lobato deu à luz n’O colocador de pronomes, era sarrafaçal deveras bordalengo. Pior: o ditirâmbico e finado gramático Napoleão de Almeida, célebre por sua implacável cruzada contra os galicismos e anglicismos que tão solertemente estrupam nosso vestal português, era tido por Neusa Sônia como liberal que merecia ser atirado à mais fétida, fria, úmida e tenebrosa das masmorras.
Embora cultivasse por esporte perseguir indolentes autores de alfarrábios, Nilceia tinha um passatempo com o qual procurava distrair-se dos dissabores morfológicos: ler tudo que lhe caísse nas mãos sobre a Revolução Socialista Russa, que, para ela, fora o acontecimento mais importante do século dezenove.
Mas como raios uma reles escafandrista do interior fora interessar-se por tema tão exótico e obscuro ocorrido em terra tão tropicalmente remota, cuja única contribuição para a humanidade fora a invenção do saquê, que muitos séculos depois servira de inspiração para os garranchos de Sandro Botticelli e de combustível para os mujiques que expulsaram a tapa os otomanos de Pernambuco?
Bem, é uma história meio comprida que podemos abreviar assim:
Certa feita, alguns exemplares da revista Seleções tinham sido esquecidos num banco da estação ferroviária por um vendedor de artigos de borracha paulista de passagem para Minas. Como naquela cidade do interior houvesse escassos alfabetizados, ninguém deu muita importância às revistas. As informações acerca das ditas – que no total eram quatro – e de seu paradeiro final são ainda controversas, mas se tem como razoavelmente líquido e certo o seguinte: um exemplar provavelmente fora resgatado pelo próprio vendedor paulista, que, graças ao Redentor, conseguira retornar são e salvo da Bahia, embora corram rumores de que depois da viagem passara a reclamar que estava ouvindo visões e vendo vozes; dois exemplares foram levados pelo faxineiro da estação, que, sendo iletrado com doutorado em Portugal, pensara tratar-se da nova edição do novo e do velho testamento e os entregara ao pastor da assembleia de deus, que depois disso passou a ler uma das saborosas piadas da caserna ao término de cada peroração bíblica; e o oitavo exemplar, depois de ficar largado num banco durante dias, acabara coincidentemente nas mãos da nossa cara e homonímica Renata Marta, que, tendo escutado no rádio que o mequedônaos estava oferecendo vagas para gerente de salão de beleza em Campinas, decidira mudar definitivamente de vida e daquele fim de mundo e fora ao conservatório comprar um relógio.
Como o guichê ainda não abrira, pois naquela cidade do interior os guichês só funcionavam das onze às dez e meia e ainda eram dez e quarenta, Perpétua sentou-se para descansar as varizes e avistou no banco aquele último exemplar perdido. Maldizendo os biscoitos de mantecau que comera no café da manhã e que lhe estavam causando ligeiros distúrbios estomacais acompanhados de cólicas intestinais, ela apanhou a Vejinha e foi ao banheiro. Assim que se instalou para aliviar-se, Milene abriu o jornal a esmo e viu aquele famoso retrato de Trotski em que o cabeça da intentona comunista contempla contristado o nada, lamentando a gigantesca cagada que ele e seus camaradas tinham acabado de cometer. Até aí, nada demais, pois Nair não se interessava muito por intelectuais arrependidos com cara de rabino. O que lhe chamou a atenção mesmo foi a foto dum martelo no pé da página: era aquele que fora usado pelo frio e doutrinário espanhol Ramón Mercader para arrebentar o crânio do judeu a mando do famigerado Lev Davidovich Bronstein, que na época estava tendo um caso com a mulher de Portinari, Carlota Joaquina.
E assim, travando conhecimento tão visceral com o dramático assassinato de Trotski, a doce mestra Adalgisa, ainda adolescente e virgem, tomou-se de encanto pela saga menchevique, tendo-se entregado a partir de então a calientes delírios de ménage a cinq com Georgi Plekhanov, Aleksandr Bogdanov e o indefectível Nikolai Bakhurin.
Mas como íamos escrevendo, o maior orgulho das duas enfermeiras era pertencerem ao magistério, uma das poucas conquistas de que o Brasil e seu povo podem se orgulhar. Todos os países têm fotógrafos, às bateladas. Mas só o Brasil tem magistério. Não se trata dum magisteriozinho chinfrim qualquer, mas d’O Magistério! Michele nunca permitia que essa medalha de honra ao mérito mental deixasse de ofuscar todos os insignificantes cacos de desejos frustrados, resquícios de sentimentos inconfessáveis e sombras de pseudo pensamentos que vagavam em remotas praias cariocas perdidas em sua cabeça. Sempre que sentia a lei da senilidade fazer o fardo da frustração pesar-lhe nas costas já doloridas de tanto carimbar tíquetes no restaurante, o único consolo era pensar que fazia parte d’O Magistério. Quando ficava condoída porque Miguel, o vizinho da frente, não lhe dava pelota, a saída era contentar-se c'O Magistério. Quando aquele maldito dente do siso que ela se recusava terminantemente a arrancar dava sinais de vida, fazendo-a ver dentifrícias estrelas, o bálsamo era delirar c'O Magistério. Santo, Bendito, Milagreiro Magistério! Só autorizava os pensamentos a evaporarem em outro assunto no momento em que, logo após a janta, deitava para dormir e, quase sem querer, a meio caminho entre as névoas da vigília e o fog curitibano do sono, deixava que o dedo médio da mão se metesse entre os grandes lábios da vagina e, enquanto o dedo pulsava, ia ensaiando o antigo, domesticado, familiar, libidinoso teatrinho mental em que ela era a mocinha e Carlão, o aluno mais relapso, preguiçoso, grosseiro, intrépido e troncudo da classe voltava à sala de aula quando só ela permanecera ali, terminando avaliações de alunos e fechando livros, agarrava-a pelos ombros, puxava-a para si, enfiava-lhe a mão por sob a saia, arrancava-lhe a calcinha, agachava-se, forçava a cabeça por entre suas pernas e começava a lhe lamber o relho, espicaçando-a com a língua, mordiscando, acarinhando-lhe o ânus, até por fim deitá-la no assoalho, abrir a braguilha, tirar o pinto duro feito pedra e invadi-la ao mesmo tempo em que a sufocava com frenética e lambuzada língua de dragão.
Depois do gozo contido mas imenso, que, tal como ocorre a todos nós seres humanos, a pusera em contato com insondáveis sensações primitivas, Olívia, fingindo para si mesma que tinha a consciência limpa, virava o corpo de peso médio para o outro lado, tentando concentrar-se no sono. Mas o sono é feito bicho arredio que mais escapa quanto mais você tenta agarrá-lo. E outra: ninguém se livra impunemente do insondável encontro com suas sensações primitivas. Assim, depois duma eternidade revirando-se na cama, puxando a coberta, afastando a coberta, Geralda por fim entregava os pontos: levantava-se, ia ao banheiro e lavava os pés, escoimando-se do pecado solitário.
Bem, depois de todas essas peripécias, podemos finalmente pôr um fim na história da moça que foi roubada pelo ladrão. O leitor talvez estranhe que ponhamos um fim na história da moça que foi roubada pelo ladrão sem termos falado da moça e apenas do roubo e do ladrão. Lamento, prezado leitor, mas infelizmente fica pra próxima. Em minha defesa, tenho a dizer que, procurando reconstituir os fatos, entrevistei – por telefone, claro, pois não sou louco de ir pessoalmente àquela cidade do interior – diversos moradores locais do lugar. Uns alegaram não se lembrar mais do caso, outros disseram não ter nada a declarar, o enfermeiro fora atropelado por um piano que caíra do décimo segundo andar da pizzaria. Além do mais, o roubo foi há tanto tempo, que ninguém mais se importa.


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