A
manhã vai nascendo. Posso pressenti-la, embora a luz ainda não tenha chegado.
Abro os olhos. Não há nada mais inútil do que abrir os olhos no escuro. Nestes
poucos minutos entre a madrugada e a alvorada eu, feito um peixe, poderia não
ter pálpebras.
Tem
horas em que muitas de nossas habilidades são imprestáveis. A de poder fechar
os olhos é uma delas.
Pensando
nisso, há quanto tempo não fecho os olhos? Digo, quando não estou me preparando
para dormir. Há uns bons anos. Mais do que sou capaz de rememorar. Costumava
fechá-los quando era moleque.
Já
fui criança, incrivelmente criança. Lembro que gostava de experimentar. O
objeto mais constante dos meus experimentos era eu mesmo. Fechava as pálpebras,
me inundava de mim, enveredava por dentro como se explorasse um estranho. Me
punha do avesso, passava horas... horas, não, dias, dias e noites, no meu
imenso pavilhão escuro. Embora não enxergasse praticamente nada, lembro de que
caminhava com desenvoltura aqui no meu eu-gruta. Ou seria “lá”?
Meu
pavilhão parecia abafado e infinito ao mesmo tempo. Não tinha passagens, ruas
ou caminhos. Apenas atalhos, atalhos incomodamente estreitos, apertados, como
se não fossem feitos para o meu trânsito. E longos – longos demais para ser
atalhos. Sem razão de ser. Na maior parte do tempo, lembro, ansiava
angustiado pela dádiva de poder andar sem obstáculos. Mas aparentemente era
impossível. Os intermináveis atalhos eram uma sina. Maldição. Eu estava
condenado.
Dentro
do pavilhão de mim me sentia o mais minúsculo dos insetos rastejantes.
Minúsculo a ponto de não existir. Mais minúsculo do que o mais ínfimo dos
vermes. Mesmo assim, me via gigante.
Às
vezes, o pavilhão, embora infinito, não era suficiente para me conter. Nessas
horas tinha de prender a respiração, relaxar dolorosamente os músculos,
encolher a barriga, comprimir o peito, estreitar os ombros, recolher a cabeça,
me espremer e, me esgueirando qual um colossal inseto incontível, bater em
retirada.
Havia
outras situações em que era obrigado a suspender meus passeios pelo
pavilhão. Quando não eram os atalhos labirínticos ou o verme corpulento ou o
gigante apequenado, era a presença “dele”. Não tinha e nunca tive provas de
que “ele” estava por perto. Jamais encontrei um rastro naquele chão que ora era
de terra, ora, de pedra ou de areia ou ladrilho vermelho. Jamais senti algum
cheiro incomum que denunciasse um intruso. Nunca constatei nenhum sinal
factível da existência de alguém em meu imenso e solitário escuro supostamente
vazio. Mas havia aquela desconfiança imorredoura. Desconfiava, cada dia mais
aflito, da presença “dele”. A suspeita infundada mas irreprimível é a mais
cruel das torturas. “Ele” me rondava, eu tinha quase certeza. E a incapacidade
de estar plenamente convicto me angustiava ainda mais. Mesmo hoje ainda não sei
ao certo se “ele” de fato estava ali. E de uns tempos para cá dei de cismar que
não era “ele” e sim “ela”.
A
manhã prossegue nascendo. Como podem ser demorados esses partos matinais.
Alguns levam toda uma vida. Há, entre esses, uns que são mais tenebrosos que a
mais negra das noites. Quase clamam, com perdão do gracejo sem graça, um
aborto.
Meu
olhar continua a averiguação do escuro. Seria um bom momento para a poesia,
este. A alvorada e o crepúsculo sempre nos trazem, a nós românticos açucarados,
alimento para a imaginação. Mas é claro que o poeta não carece de comida. Ou de
vitaminas ou sais minerais. O poeta autêntico, digo. O que, é igualmente claro,
não é meu caso. Não que eu não tenha sensibilidade, vocação, introspecção, desgosto
com a vida, “gaucherie” – esses ingredientes sem os quais nenhum poeta digno do
nome poderia passar – suficientes para a tarefa. (Ou “missão” ou “destino”, se
preferirem.)
Pelo
contrário, sou, modéstia à parte, bem dotado nesses quesitos. Sobretudo, como
deve estar evidente, no item “desgosto com a vida”. Nesse sou craque. Se mágoa,
padecimento, amargura e congêneres bastassem para fazer um bom poeta, eu teria
ganho o Nobel um bom, bom tempo atrás.
Mas,
pobre de mim, me faltam três elementos básicos.
Um
é a coragem. Sou um dos homens mais covardes que conheço. Por exemplo, percebo
hoje, já com uma bela carga de experiência de vida nas costas, que naquele
pavilhão de que falei acima havia uma pera de luz bem ao lado da porta, pera
cuja existência sempre me recusei a admitir. Tudo teria sido incalculavelmente
mais simples se tivesse me dignado a iluminar aquela grande e sombria nave
gótica. Mas também hoje me dou conta de que prefiro as sombras à claridade.
Quem sabe eu seja mesmo aquele inseto rastejante com que fantasiava nos meus
delírios autoexploratórios. Quem sabe não mereça senão uma bela pisada duma
bota clemente que venha pôr um fim a esta vidinha miserável que tenho levado
desde que nasci.
Se
há algo que um poeta requer para se dizer poeta é bravura. O candidato a vate
tem de ser valente para encarar sua “humanidade” de frente, sem desviar para o
lado seus olhinhos assustadiços. Nossa “humanidade”, ou seja, nossa condição de
homens e mulheres determinada por nossos sentimentos, estados de espírito,
emoções, pensamentos e hereditariedade, entre outros, é o grande assunto da
poesia, e talvez o único que interesse de fato. É, nada mais, nada menos, que o
famoso “dedo na ferida”. Em maior ou menor extensão, todos nos achamos capazes
de cutucar nossas próprias fraquezas. Mas poucos o somos de fato. E os
verdadeiros poetas são os capazes. Escarafunchar os próprios sentimentos,
pegá-los com mãos fortes e nuas, não é batatinha. Identificar o que realmente
somos e não retroceder ante a dor que se torna cada vez mais lancinante à
medida que avançamos é tarefa hercúlea. E expor o que jaz dentro de nós em
estado bruto, intratável, refratário à nossa própria força de vontade, é a
recompensa.
Desse
primeiro elemento básico deriva o segundo: sinceridade. Não existe poeta
mentiroso. A poesia é consequência da nossa veracidade. Mesmo o mais erudito e
inteligente e loquaz e fecundo dos mortais, dotado do mais rico vocabulário e
das mais prodigiosa imaginação, será um retumbante fiasco poético se não for
capaz da sinceridade. A retórica por si só é balofa feito um imenso saco
estufado de ar. É por isso que a grande maioria dos pretensos poetas deste
mundo não passa dum bando de papagaios constrangedores recitando trovinhas sem
graça. Versos falsificados, melados de lirismo planejado, respingando a
sentimentalismo pisado e repisado, não têm nada a ver com poesia. O “fingidor”
de Fernando Pessoa, para nos atermos a um poeta conhecido de todos e imitado à
exaustão, é o mais “autêntico” dos personagens poéticos jamais inventados por
um gênio literário. O que nos esclarece e arrebata em Psicografia é
precisamente o grandioso confronto de fingimento, nosso estado quase que
permanente, e revelação. O “insight” deflagrado por esse embate é de tirar o
fôlego. E a simplicidade com que ele se desveste diante dos nossos olhos. Quase
um direto no estômago. Uma “porrada”, como Pessoa gostava de dizer.
A
facilidade com que Pessoa chega à verdade, o despojamento vocabular de seus
versos, a naturalidade, a quase modéstia são todos enganosos. Com licença do
chavão, é complicado ser simples. A engenhosidade da simplicidade de Pessoa é
atordoante. Mesmo se não entendemos exatamente o que ele quer dizer, pelo menos
nos reconhecemos atordoados. Para a maioria de nós, isso basta. E talvez, ao
contrário do que dizem os acadêmicos que vivem às custas de “explicar” a obra
alheia, isso seja tudo que interesse. Mas o que os imitadores de Pessoa não
compreendem é que ele é quem é porque teve coragem de mergulhar nas trevas do
oceano de si mesmo e, ao retornar à superfície, expor as preciosidades que
descobriu em suas profundezas da forma espantosamente bela e competente como
expôs. Pessoa não nos mostrou onde está a poesia – apenas indicou o “seu”
caminho. Cabe a cada um de nós descobrir o nosso.
E
o terceiro elemento básico que me falta para ser poeta é a disciplina. João
Cabral, um dos maiores poetas brasileiros – e pouco lido e imitado, por ser
avesso ao sentimentalismo desbragado e buscar o rigor formal acima de tudo –,
era disciplinado não apenas na métrica exata de seus versos, mas também em seus
métodos de trabalho e no empenho com que se dedicava a seu ofício. Muito mais
do que um apaixonado, era um “operário” da poesia. Tal como, nesse sentido,
Drummond. Não que o desregramento seja incomum entre poetas, evidentemente. O
próprio Pessoa era chegado numa manguaça – a cirrose o levou, pobre –, o que
certamente não o ajudava em nada neste terceiro quesito poético.
Outro
que bebeu a vida inteira e morreu em estado etílico foi Dylan Thomas. E
lembremos Robert Lowell, William Faulkner, Fitzgerald. Entre os brasileiros,
Paulo Leminski, biriteiro e sorvedor de tudo que o tirasse do eixo da mesmice.
E me parece que Pessoa era dado mais à inspiração que ao método. Segundo consta
– e salvo engano (hehehe, “salvo engano” é ótimo, você pode escrever qualquer
barbaridade e anexar essa expressãozinha-salvo-contudo para limpar sua barra),
bem, segundo consta, Pessoa escreveu o primeiro rascunho d'O guardador de
rebanhos num surto de minguadérrimos 40 minutos!
Mas
quando falo em “elementos básicos da poesia” estou me dirigindo a mim mesmo e a
você, mortais comuns, não a gênios indóceis que não nasceram para seguir
regras.
A
manhã vai brotando ainda. Ou melhor, acho que vai. Não tenho certeza absoluta
de que o tempo de fato passa. Como poderia? No escuro – no meu escuro – as
coisas não acontecem, o mundo não existe. Talvez nem eu mesmo exista.
Mas
não adianta brincar de Deus – já há ao meu redor uma penumbra inefável em vez
das trevas absolutas de um minuto atrás. “Um galo sozinho não tece uma manhã”,
verso inaugural, contidamente apoteótico, dum dos maiores poemas da nossa
língua. Qual. Há vinte anos não acordo com a aurora sob o anúncio trombeteiro
dum galo. Não há mais galos, sei. Os frangos de hoje são reproduzidos por
computador. Sobretudo, não há mais galos tecelões. Se os há, converteram-se em
arautos mudos de cada dia.
A
penumbra vai esbranquiçando, já é possível distinguir a silhueta dos móveis.
Surgem uns riscos na janela – é a luz solar tentando devassar meu quarto pelas
frestas desalinhadas da veneziana.
Será
cada manhã prova da renovação da vida?
Quando
era moleque, não dava a mínima para manhãs, vida, renovação, poesia, Pessoa,
essa tralha toda. Passei a infância e a adolescência compenetrado comigo mesmo,
às voltas com meu pavilhão, “ele” e outros assuntos pessoais e intransferíveis.
Hoje às vezes penso, repito, “ele” talvez fosse “ela”. Se essa possibilidade
tivesse me ocorrido naquela época talvez minha permanente desconfiança tivesse sido
certeza e agora tudo seria diferente. Ou nada. Nada seria diferente.
O
Sol finalmente se levanta. The Sun Also Rises. “Não perguntai por quem os sinos
dobram. Eles dobram por ti.”
A
manhã vai... pronto, nasceu. E, miraculosamente, renasce, renasce, renasce sem
parar, e desaparece para ceder lugar ao dia, que morre sob o manto da noite.
Procuro renascer também, olhar minha escuridão com outros olhos, mas não há
mais tempo.
O
Sol não tem história. É praticamente o mesmo desde que foi criado com o Big
Bang há 15 bilhões de anos. E continuará sendo ainda por outras centenas de
milhões. Sou uma formiguinha absolutamente sem importância no infindável
formigueiro que é este planeta, cada dia mais emporcalhado de fezes, graxa,
cuspe, névoas químicas.
Esta
semana recebi uma certidão da Itália atestando que meu avô Giocondo nasceu aos
18 de abril de 1873 num povoado chamado Crevalcore. Meu bisavô se chamava
Giuseppe. Minha bisavó, Palma Strada. A certidão foi requisitada por minha
irmã, que nos últimos tempos tem-se dedicado quase obsessivamente a levantar a
árvore genealógica da família.
Palavrinha
escabrosa, genealógica. Não entendo essa necessidade de buscar as raízes. Me
cheira a medo de parecer zé-ninguém. Todos somos zé-ninguéns, uns mais, outros
menos, mas zé-ninguéns.
O
Sol vai iluminar esta e ainda outras bilhões de manhãs, outros bilhões de zés
vão sonhar sob a mudança de estado mental que é a alvorada, o crepúsculo e
fenômenos que tais da física.
Não
passo dum efêmero, como efêmero foi o nascimento desta manhã. Quem sabe hoje ao
longo do dia descubro que tenho câncer na próstata. Ou no esôfago. Ou um avião
desabe sobre minha casa. E aniquile inelutavelmente alguns descendentes de
Giuseppe e Alma, camponeses analfabetos que viveram no Norte da Itália no
século XIX e cujo filho Giocondo, casado com Maria Olga, resolveu tentar a vida
num país distante chamado Brasil. Costumo brincar que nono bem poderia ter
dirigido seu volumoso nasone italiano rumo à “América”. Quem sabe teria me
tornado um importante gângster em Chicago.
Mas
não faria diferença. Provavelmente estaria olhando a luz entrar pelas frestas
da veneziana, relutante em levantar, mal acordado e já exausto do dia e da
vida. Com a única diferença, talvez, de ser acompanhado na solidão da madrugada
pelo canto melífluo dum tordo, não deste meu inseparável sabiá-laranjeira que
não se cansa de me convocar. Para que, não sei.
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