Umpf!
Nota de
junho de 2009: esta anatomia foi escrita após a descoberta da relação entre Zé
Dirceu e Waldomiro e antes do mensalão.
Leio no
Estadão entrevista c’uma senhora chamada Maria Victoria Benevides. Professora
da USP, sabemo-lo todos que nos interessamos pelos rumos do Berção.
(Caprichemos na norma culta da língua, que é pra ninguém depois querer tacar o
apagador neste vosso pobre servo que não pôde concluir os estudos.)
Mais que
professora, socióloga. Depois que Efeagá desfilou garbosamente de presidente do
Brasil, sociólogos me deixam inquieto. Incomodado até.
A
entrevista foi conduzida pela valente jornalista Laura Greenhalgh, que desde a
primeira pergunta deixou claro à entrevistada que estava ali em nome de seus
leitores. Extrairia da professora tudo que lhe permitisse a ética profissional.
Naquela sala refrigerada a 23ºC, acarpetada em tons de marrom-glacê, paredes ornadas
com obras de mestres modernistas brasileiros, ela, Laura Greenhalgh, seria a
implacável porta-voz da nação, não se furtando a colocar as perguntas que tiram
o sono de todos nós que, se me permitem uma autoparáfrase, nos interessamos
pelos rumos do Berção. Por mais duras que pudessem parecer aos risonhos olhos
acadêmicos da socióloga. Acrescente-se ainda que ambas bebericaram chá-mate com
sutilérrimos tons de canela e limão durante a entrevista.
Mal
começo a devorar a entrevista, bato o olho numa informação básica, bem na
segunda linha: a professora tem 62 anos. Fico surpreso em ver que uma pessoa de
tão provecta idade, certamente preocupada em como descolar soluções para as
tragédias nacionais, possa colaborar com a administração peetista.
Seja como
for, procuro enxergar a informação pelo lado positivo. Agora sei que a querida
socióloga poderia ter sido duas vezes protagonista d’A idade da razão, de Sartre, e portanto trata-se, suponho, de
pessoa com boa dose de bom-senso. Fico sabendo também que equivale a mais de
duas balzaquianas. E que poderia ter tirado carta de motorista pelo menos três
vezes. E que, do ponto de vista constitutivo, acha-se naquele período
particularmente fértil em que acumulamos as mais significativas experiências
biológicas e existenciais, mas ainda mantemos na memória resquícios daquela
distante vitalidade com que reagíamos mais prontamente aos estímulos dos
hormônios.
Mas ter
62 anos e ser professora da USP e socióloga não é tudo na vida de Maria
Victoria Benevides: ela (cito textualmente da matéria) hoje integra a Comissão
de Ética Pública, criada pelo presidente Lula pra avaliar a conduta de
ministros e altos funcionários da administração federal.
Missão
fácil? indaga a fera jornalista não a Benevides, mas ao leitor, como se o
entrevistado fosse este e não aquela. Claro que não, responde a própria
jornalista, antes que alguém tenha tempo de abrir a boca. Cito novamente: É
trabalho voluntário, às vezes tem de ir ao Planalto para reuniões, chamar
ministros às falas. E a intrépida entrevistadora tasca sem dó outra perspicaz
pergunta: Quem gosta disso?
A
entrevista, que ocupa toda uma página do Estadão, é ilustrada por uma grande
foto colorida de Benevides. E já que esta é uma anatomia, façamos um exame mais
detalhado da fotografia da socióloga, que é pra depois não dizerem que sou um
anatomista superficial, que seria uma contradição segundo a boa prática
bacharelesca.
Maria
Victoria Benevides é fotogênica. Não fossem as 62 primaveras, até que valia um
aplique. Não que eu me amarre apenas em brotos. É que ela jamais daria colher
de chá pra quem nunca escreveu uma tese acadêmica nem passeou pela Europa às
custas de indiozinhos kaiowás que se enforcam quando ficam ébrios.
Enquanto
analiso a foto da simpática socióloga, vou saltando o olhar pelos parágrafos da
entrevista. Como já esperava, Benevides não perde a oportunidade de enaltecer
as virtudes passadas do peetê, a força de vontade dos peetistas, a determinação
insuperável de Lulla em vencer os óbices que se lhe antepõem.
Benevides
transpira um ar viçoso. A textura da pele não indica problemas nefríticos
dignos de nota.
A certa
altura Laura Greenhalgh tasca na bucha, como se adivinhasse meus pensamentos:
Professora,
vê-se que o branco dos seus olhos não está... um... amarelo. Isso significa que
a senhora não sofre de cirrose hepática. É verdade que nunca bebeu?
Nunca,
Benevides estala a língua ao sorver um golinho de chá-mate.
Mas e o
Waldomiro, professora?, insiste a incansável Laura Greenhalgh, passando a mão
na testa como se a resposta a tivesse deixado mais que inquieta, constrangida.
(É claro que quem a conhece sabe que nada, absolutamente nada a deixaria
inquieta, muito menos incomodada.) Vai me dizer que não encheu a cara nem
quando o jornacional passou o filme do Waldomiro extorquindo aquele bicheiro?
Hum, acho
que pus muito adoçante, responde a socióloga.
Professora!,
Laura Greenhalgh insiste, pondo-se de pé, olhos arregalados, voz estranhamente
alterada. O braço direito do ministro Zé Dirceu! O homem estava instalado no coração
do poder! A senhora não quis tomar sequer uma caipirinha de maracujá pra
acalmar os nervos?
Nesse
momento meus olhos fogem do texto da entrevista e retornam à fotografia. O
cabelo de Benevides poderia ser mais bem tratado. Um profissional capilar competente
talvez conseguisse pôr os fios algo rijos e encorpados em seu devido lugar.
Professora!
Laura Greenhalgh se põe a caminhar pela sala, tropeçando aqui e ali no espesso
tapete azul-ameixa que cobria o carpete verde-garrafa. O dinheiro se destinava
ao financiamento de campanhas de peetistas para o governo de estados! Isso não
é suficientemente grave?
Ah, o chá
tá uma delícia, Benevides esfrega os lábios, saboreando.
Meu olhar
volta para a foto. A socióloga tem nos lábios relativamente taludos e sensuais
um meio-sorriso matreiro.
A indócil
Laura Greenhalgh volta à carga:
E a CPI
do Banestado, professora? O peetê ajudou a abortar a CPI! Mais uma vez os
grandes ladrões da nação se safaram ilesos! Que é que a Comissão de Ética
Pública tem a dizer a respeito? A senhora não sentiu ganas de arrancar os
cabelos?
Desesperada,
Laura Greenhalgh leva as duas mãos ao alto, agarra dois tufos de cabelos e
começa a sacolejar violentamente a cabeça. Na foto, o meio-sorriso matreiro de
Benevides se abre de todo, expondo os dentes bem cuidados, branqueados
artificialmente.
Então
algo me chama atenção no pé duma das colunas do texto da entrevista. São duas
reles linhazinhas, pronunciadas no mais trivial tom blasé pela professora
socióloga Maria Victoria Benevides:
Não tenho
dúvidas sobre as boas intenções dos programas sociais do governo.
A
indomável Laura Greenhalgh abre a vidraça e pula da janela. (Soube depois que a
sala em que ambas estavam fica no terceiro andar e que a jornalista apenas
quebrou as pernas, um braço e uma vértebra, sem sofrer nada mais grave, graças
aos céus.)
Pô, Laura
Greenhalgh, eu ainda queria saber se a socióloga guarda parentesco com o
ínclito senador Mauro Benevides. Que saída mais impetuosa, seu.
Olho pela
última vez a carinha meio galhofeira de Benevides na imensa foto colorida que
ocupa toda a página do valoroso Estadão. Vê-se que é pessoa de bem: de bem com
a vida, de bem consigo mesma.
Post
escrito:
Relendo
esta anatomia, vejo que ficou meio machista, sobretudo na arenga sobre a idade
da Benevides, que desequilibrou o todo. Agora lembro que houve. Fiquei
repentinamente cansado. Bem na hora em que estava para desenvolver outras
partes da anatomia e tentar obter o dito equilíbrio. É isso que dá escrever
demais. Mas não consigo conter minha verborragia. Já tentei imitar o Dalton,
mas aquela economia lá dele poucos logram perpetrá-la. Agora relendo pela
terceira vez, vejo que disse muita coisa que não queria dizer. E não disse
muita coisa que queria. Me perdi, acho que na volta do banheiro. Sim, estou me
lembrando. Tinha mil coisas na cabeça. Agora vou detonar aquela mulher,
pensava. Os pensamentos fervilhavam feito vermes esfomeados atacando um naco de
picanha esquecida há oito dias fora da geladeira. Aí sentei no computador e...
puf! Sumiu tudo. É que escrevo demais, etc.
Nenhum comentário:
Postar um comentário