Enquanto planto bananeira

Se DEUS puder me olhar bem nos olhos 

E não engolir em seco como venho engolindo desde que tenho ciência das coisas

E de Seus lábios escapar uma prece de consolo ou esperança

Enquanto retorno cabisbaixo e indiferente da mais negra das noites

Sim, ainda é domingo à noite

Vou fazer uma estátua

Vou fazer uma estátua sem cara nem busto

Sem bronze nem imponência ou granito

Vou fazer uma estátua morta como todas as estátuas que deus ordenou que os homens fizessem

Sem voz nem brilho nos olhos

Uma estátua de ecos apropriada aos movimentos titubeantes das minhas mãos

Que não pare de pé, mamãe, ou deitada

Enquanto olho o cãozinho em porcelana

Sim, tive alguns momentos de predestinado. Não, nunca achei que um dia me tornaria presidente ou capitão dos bombeiros ou comandante de boeing.

Meus momentos de predestinado quem mos deu foi a música. Depois da adolescência, a poesia e depois a música. E, depois da adolescência, a mulher que me ama até hoje e que amo até hoje.

Embora escassos, meus momentos de predestinado são inúmeros e estou cansado demais para enumerá-los e portanto vou falar só de um, o mais importante.

Meu mais importante momento de predestinado foi quando escutei In my life, de John Lennon, a primeira vez.

Odeio detalhes e vou pulá-los. Nunca me dei bem com Balzac.

Digo apenas que estava voltando.

Estava voltando da praia.

E era noitinha, noitinha como só existe numa praia brasileira.

E o ano era, sim, 1965.

Você que já teve momentos de predestinado — e todos já tiveram, porco dio — sabe que um bom momento de predestinado, um momento decente de predestinado dá ao freguês uma boa noção de que a vida é a areia do tempo a nos escorrer pelos dedos.

E domingo à noite não termina


Seria a vida um liquidificador?

E se fosse?

Que mistura faria ela de nós?

Porque continua sendo domingo à noite


A lua não é monstruosa

A lua é a lua?

Talvez só ela saiba

Nasci alucinado?

Talvez só ela saiba

Porque ainda é domingo à noite


Veja

Há uma luz acesa na sala vazia

E a luz é dourada

Como iluminando algo que ainda não morreu

Ou prenunciando uma vida sagrada

Que não se extingue

Tenho por minha esta luz

E a ofereço a ninguém

Porque é domingo à noite de novo

Ninguém tem equilíbrio mais perfeito do que o manco.

Lembra quando olhou algo (uma cidade, uma rua, uma árvore, uma calçada) como se fosse a primeira vez mesmo depois de anos ou dácadas e todos seus olhares passados pareceram tão envelhecidos?

Não deixe de se prevenir. Minhas palavras carregam um veneninho mortal difícil de sentir

Burro

Grieg, como levei tantas décadas pra te entender?

Enquanto tanto quanto Grieg

Sabe tudo que sei?

Tudo que sei é que precisamos nos distrair.

Passear, viajar, conhecer novas pessoas, embarcar num desses transatlânticos que têm cassinos e shows do Roberto Carlos.

Se possível, evitar subir ao convés para olhar as ondas surdas do mar a dançar por sob a regência da lua.

Enquanto Kaufmann à toa entoa In fernem Land



Poesia, amo e odeio
Idolatro e estupro
É minha puta privada
Meu passaporte para a luz do universo
Meu gozo e minha ejaculação em seu colo sublime
Meu sêmen que por ela mina inesgotável e pegajoso
Licor aglutinante das palavras com que a seduzo
E que ela ecoa para me sodomizar meus olhos
Me fertilizando de sua prole miraculosa e redentora
A poesia é minha puta
Eu sou seu cafetão

Enquanto rego as azulzinhas

Crença em deus ou deuses é para mim a maior piada que se possa inventar.

Reencarnação, cuspe.

Nunca me dei, nunca me dou o trabalho de pensar nessas bobagens.

E não é por falta de tempo — o tempo é, para mim, interminável.

Mas bem que gostaria de nascer de novo, quem sabe ter uma segunda chance.

Pois nesta e desta vida não entendi lhufas. 




Escrevo como escrevo


Não tenho carimbo de aprovação da ABL
Selo de homologação do INMETRO
Diploma de poeta

Não escrevo como Clarice, Quintana, Caio F. Abreu
Não escrevo como alguém
Ninguém escreve como escrevo

Querem que eu escreva como Pessoa?
Não quero escrever como Pessoa
Nem Pessoa quer que eu escreva igual a ele


Que vontade de reticências

Minha vida é outro dia.

Enquanto me olham


Dizem que sonhei e sonhei.
Sim, sonhei.
Como não haveria de sonhar?

Tudo já vi, tudo já li. 
Nem tudo cheirei
Nem todos fiquei olhando a caminhar pela calçada.

Então sonhei.
Com todo direito.

Não te fiz um poema?
Não faço poemas ao léu
Só faço poemas ao céu.

Já não existem noites de bingo


A maioria lê não para entender, esclarecer, conhecer.
Lê para escapar.
A maioria procura em seus escritores “preferidos” um álibi para justificar os problemas que tem – ou pensa ter.
Aí está o problema: se tens um problema, teu escritor “preferido” vai apenas te ajudar a te conformar com teu problema.
Quando encontras teu escritor “preferido”, encontras também, no mesmo instante, a grande desculpa de que precisavas para ser o que és.
Pois não existem escritores preferidos para quem lê buscando esclarecimento.
Um bom escritor deve ser teu inimigo. Teu verdugo. Teu torturador. O traidor das verdades que pensas serem tuas.
Deve te negar a água quando estás com sede, o repouso quando estás fatigado, o bálsamo quando estás agoniado.
Bom escritor é aquele que expõe teus nervos à voracidade do mundo para que o mundo te ensine a contento o que é a realidade e bota sal e vinagre em tuas dores para que aprendas a ser homem e adulto e suportes tuas dores feito homem e adulto e te recusa te estender a mão quando tropeças e gritas ansiando por socorro.
Vejo todo mundo e sua prima citando Pessoa mas o que citam de Pessoa é apenas o que Pessoa tem de mais palatável e sentimental. O verdadeiro Pessoa, aquele que está submerso longe das vistas dos buscadores de aforismos e pérolas de sabedoria, é o Pessoa que se recusa o papel de ídolo.
García Marques, Guimarães Rosa, Clarice Lispector são grandes escritores. Mas cada um deles escapista à sua maneira. Embevecem seu leitor e, em embevecendo seu leitor, o aprisionam numa sub-realidade que nada mais é que um consolo para o mundo real de que esse leitor vive fugindo.
Escritor mesmo é Nelson Rodrigues.
Nelson Rodrigues é chato. Ranzinza. Cruel. Sujo. Impertinente. Inconveniente.
Se cochilas, te cospe na cara.
Não te dá arrego.
Te esfrega na fuça a merda que é viver.

Ode aos bananíssimos


Me deu há pouco
essa necessidade insaciável
de voltar a ser o que já
fui e então me lembrei
de que

o banho-maria vem recozendo o prato-feito há 290 mil anos em suas "atividades diárias" sempre fazendo questão de chover sem molhar.

Ontem tomei banho. Fui a uma cigana. Leu ela minha mão.

Disse que viu na minha linha da vida que vou morrer do enfrentamento a cloacas qual (,,,) e outros antros mais.

Previu ainda: "Escritor que é escritor morre do coração ou se mata. Morre de qualquer coisa menos velhice".

Quer dizer que não fica construindo (...)? — perguntei só pra confirmar o que já sabia.

Foi então que vi um livro de poemas de Poe atrás da cortina de tiras plásticas no guarda-comida ao lado da mesa na cozinha e entendi.

Reciclagem

Quero 
uma nova casa
uma rua nova
uma nova cidade
um país novo

Estou em trânsito
Pelos caminhos da mudança
Rumo à transição

Meus olhos precisam de novas caras, meus passos, de novas calçadas, meu nariz, de novos ares, minha guia, dum novo cão.

E esta língua!
Minha língua não quer mais falar esta língua, meus ouvidos não querem mais escutar esta língua, meus dedos não querem mais digitar esta língua.

Quero tomar um banho, esfregar meus ranços, me lavar de mim
E depois de enxugar meu novo cabelo, meu novo corpo, minha nova cara
Me olhar no espelho, enxergar o velho eu.

Enquanto arquejo


Hoje preciso confessar que tudo que sempre quis era uma casinha, das simples, caiada de branco ou uma cor pastel qualquer, com telhado cor de telhado, porta com alguns adereços singelos e, isto não poderia faltar, uma floreira bem defronte, provavelmente com uma costela-de-adão mais ou menos volumosa, imponente até, rodeada de marias-sem-vergonha multicores.

Se pudesse escolher, gostaria que essa minha casinha ficasse em Ribeirão Pires. Pois, se morasse em Ribeirão Pires, não ia ficar por aí querendo morar em Ribeirão Pires.

Blogando no espaço

Resolvi escutar um samba não sei por que cargas d'água e saí correndo vomitando e só sei que tudo que via na minha frente era o carão do de Niro e seu dedão de bonachão benemérito me assegurando "You're good! Noooo! Nooo! You're good!"

Enquanto enlouqueço

Façamos assim

Estou montado num foguete

Rumo ao zênite

Te olhando desta janelinha envidraçada e redonda

Com cara de quem está montado num foguete rumo ao zênite

Enquanto você faz cara de quem me olha

Montado num foguete rumo ao zênite

Façamos assim

Enquanto me coço

Olhando a fachada do manicômio

Me lembro de ter me ocorrido

Não sei se em pensamento

(Não sei ainda, não saberei jamais)

Se era uma pena

um pecado ou uma judiação

um desperdício

ou alucinação

Que os internos não soubessem

Que o mais louco de todos

Estava do lado de fora


Enquanto desisto

Recebi uma proposta.

Formal. Papel timbrado. Perfume inindentificável. Quase solene. 

Entregue por estafeta siderado em perfeito domínio de suas atribuições e aletas pespegadas nos tênis duma dessas marcas da moda.

Abri, não lá muito sôfrego. Ah, há tantos, tantos anos deixei de ser sôfrego. Quisera de todo coração que o proponente ou a proponente soubesse desde o início.

Haverá coisas neste mundo que ainda têm início?

Mas me distraio e tegiverso. Eia! A lição ainda está aqui, fresquinha feito um ovo de gansa do sertão de Minas.

E, pulando o cabeçalho e a introdução de espírito comercial, fui lendo.

Pedem que eu seja o representante dos que escarafuncham.

Sim. Assim. Como se fora verbo intransitivo.

Lá trás, lá encima, ao abrir o envelope, estava, confesso (!), inclinado a deitar a coisa toda ao lixo, no dizer dum contador lusitano baseado defronte ao Tejo.

E neste ponto tive por bem hesitar.

Eis-me aqui agora a reconsiderar.

Enquanto me embebedo de saudade metodicamente.


Enquanto mato a saudade a facadas

Pode odiar à vontade e durante teu ódio te entregar a tudo que é tipo de ataque de raiva e de cólera e de ira e outros sinônimos possíveis e impossíveis durante um ataque de tal natureza.

Pode xingar de tudo que é nome, ângulo, teor, temperatura e cheiro. 

Pode afirmar, asseverar, declarar, vociferar, ganir, bradar, gemer que só te dará por contente quando tingir tuas mãos do sangue carmesim.

Tudo isso é perdoável.

Só não decepciona.

Ninguém, absolutamente ninguém lida legal com a decepção.

E é aí que a porca torce o rabo, te deixando num mato sem cachorro sem saber onde o galo canta, sem sequer o consolo dum dito popular ou um clichezão para fazer de conta que tudo está como antes no quartel de Abrantes.

Quando

Me lembro, quando quero paz.

Quando quero paz, me recolho.

Me recolho em mim onde já não há espaço.

Quando quero paz, escuto Rachmaninoff, embora poucos homens tenham sido tão atormentados quanto Rachmaninoff.

Quando quero paz, ó mãe, é quando sei que se há algo em mim que não poderei encontrar é paz.

Lá fora passeiam de mãos dadas palavras estranhíssimas como paradisíaco, ecos, sombras, brilhos, estátuas, universo e imobilidades.

São elas que me vêm dar a mão quando quero paz?

Me peço neste instante desculpas por ser o que fui, ter sido o que sou.

Eu podia ser da Vinci

De braços erguidos.
Me entrego.
Faz de mim o que nunca quis que fizessem de mim.
Me maltrata. Me machuca. Me fura.
Esquece teus escrúpulos.
Teus escrúpulos são bobos. 
Podem sair pela culatra.
Poetas não estão entre as categorias mais confiáveis, segundo as pesquisas de opinião.
Fosse bombeiro ou marceneiro, até mesmo bancário...
LADRÃO!
E se fosse ladrão?
Assaltante com cara de bafo-de-onça, daqueles que não deixam dúvida de que estão dispostos a tudo...
E tacam na lata: A vida ou a bolsa!
Como poeta, sou pior.
Posso roubar tua alma.
Pior!
Posso me apoderar da tua paz de espírito!
Não diz que não a tem! Não acreditaria.
Não sob as bençãos dos deuses egípcios...
Não sob a perspectiva dum meio sorriso...
...ou essa parcimônia emotiva carregada do comedimento duma foto preto e branco em que a guardiã nutre o pudor de exibir a exuberância da própria beleza...
Estou de braços erguidos. Me entrego. Faz de mim o que sempre sonhaste em fazer do piadista que sou.
Tão ingenuamente tentado a te amedrontar com meus pífios poderes de sub-herói.
Quando a vítima aqui sou eu.

Durante um instante

Não gosto da palavra bizarro. Fico meio enojado de quem usa a palavra bizarro.

Em francês e em inglês, bizarro significa simplesmente "estranho".

Em português, "bizarro".

Todo dia vejo por aí um monte de gente usando a palavra bizarro com a maior facilidade.

De pronto me digo: poucas coisas merecem ser chamadas de bizarras.

(Cá pra nós: NADA merece ser chamado de bizarro.)

Pois nada no meu mundo é bizarro.

E se Aristótoles estava certo e se sou humano e se nada no meu mundo é bizarro, podemos concluir que nada para os humanos é bizarro.

Mas admitamos que haja alguma coisa bizarra ou algumas coisas bizarras neste nosso mundo.

Se houver, são raras, certo?

Na verdade, rariíííííssimas.

O que me enoja quando vejo essa palavra abusada a torto e direito é perceber instantaneamente que quem a usa tá é a fim de chocar.

Muita gente por aí se acha capaz de chocar.

Muita gente por aí não quer outra coisa senão chocar.

Então chegam logo botando um "bizarro" num texto e se dão por satisfeitas.

Então fico chocado.

Com tamanha ingenuidade.

Nesta era de abundância infernal de palavras...

Nesta era de abundância infernal de palavras ocas...

Elas, palavras ocas, são... ocas.

Imagine uma palavra oca.

Imaginou?

99,99 por cento, ocas.

Há por aí quem nunca se tenha dado conta dessa terrível realidade.

O que, para mim, é simplesmente bizarro.

Corrigindo Sartre, o inferno são as palavras.

Jesus, é muito palavrório.

Muito palavreado.

Falatório demais.

A era da informação total e absoluta logrou seu intento: acabar com a palavra, dizimar o significado.

Nos meteram numa câmara de tortura recheada de letrinhas.

Letrinhas de todas as cores, letrinhas de todos os tamanhos, letrinhas de todas as fontes.

Todas elas, cada uma delas insossa.

Insípida.

Inodora.

Bizarramente antibizarra.