Mergulhado no chumbo

Comecei a mentir muito cedo.
O dia em que comecei a mentir está aquém do alcance da minha memória.
Nem sei se foi num dia específico. Terá havido um Dia da Minha Primeira Mentira? Desconheço. E também desconheço se inventei uma mentira já acabada e pronta para dar a largada na minha saga de mentiroso, num instante definido, ou se ela, Minha Primeira Mentira, teve gestação paulatina qual a dum feto maligno, se desenvolvendo ao longo de dias ou de semanas ou meses dentro da minha cabeça, em silêncio, até que, chegada a hora, a liberei para o mundo contando que este se encarregasse de desmascará-la (ou não).
(E ainda hoje não firmei jurisprudência quanto à capacidade, ou volição, ou mero interesse, do mundo em desmascarar as mentiras de cada mentiroso do mundo.)
Hoje me pergunto: aquela minha primeira mentira, a terei obrado para mim mesmo ou será que a criei especialmente para alguém por um motivo igualmente especial?
Ah, como queria visualizar aqui dentro de mim a gênese desta minha gravidez de lorotas.
E, não sei se mais importante:
Quem terá sido a Primeira Vítima da minha longa carreira de mentiroso?
Certo, depois de Freud, Melanie Klein e outros bambas do inconsciente, a resposta não requer lá grande reflexão. Vamos parar com frescura: minha primeira vítima fui eu mesmo. A quem dirigimos todos os atos malignos e perversos que praticamos a cada segundo, afinal?
Quanto ao tema da mentira propriamente dito, esse nem imagino. Fico aqui sozinho matutando: pelo que poderia valer a pena ter mentido lá naquele dia perdido em algum ponto depois do meado do século 20? Terá tudo se resumido a fazer mais um papel de bobo, dentre tantos que fiz até hoje, para iludir meu pai? Me daria o imenso trabalho de mentir só por isso? Não, pensando bem nesta tarde gélida de julho em que chego a temer virar estátua de sal até o fim da tarde, não, nunca menti para fingir a meu pai que amava minha mãe muito, mas muito mais que ele. Pelo que posso me lembrar, procurei ser bem claro a respeito desde o início. E nem precisava fazer lá grande teatro. Duvido que meu pai tenha amado minha mãe. Naquela época – nem em nenhuma outra – as pessoas não se amavam. E terá sido verdadeira a recíproca? Não tenho ideia. Tudo que sei é que minha mãe era muito, mas muito mais afetuosa que meu pai. Seja como for, nada disso garante o que quer que seja. Não há garantia alguma na minha vida, salvo a de saber que ambos apenas se toleravam (durante o dia), mal se suportando o resto do tempo. Sexo, o faziam mudos feito duas portas. Jamais escutei um gemido ou uma declaração de amor ou um resfolegar mais entusiasmado. Pensando bem, não há nada mais distante da minha família que entusiasmo. Mesmo assim, sei hoje que amava minha mãe desesperadamente e amei meu pai igualmente.
O que me encafifa ainda hoje – o que me encafifa cada dia mais e mais e mais –, depois de tantas décadas tão vagarosamente, tão tempestuosamente passadas desde minha primeira mentira, é a facilidade com que me acostumei a mentir. Me lembro de que até a adolescência imaginei que minhas mentiras passariam mais ou menos naturalmente com o tempo, assim como desapareceram minhas espinhas de moleque. (O medo de escuro, não – esse tenho até hoje.) Tal como ocorria com outros sentimentos e outras situações, pensava que a vida dispunha dum mecanismo próprio que se encarregaria automaticamente de dar cabo naquela terrível necessidade de mentir.
E passou a adolescência e entrei na idade adulta e fui amadurecendo (bem, fui é força de expressão) só para me dar conta, ora anestesiado pela constância com que minto, ora temendo ser acometido por um estado de total terror por ser tão indefeso e inerme ante minhas mentiras, de que venho mentido cada dia mais, cada instante mais, para mim mesmo e para quem quer que esteja por perto, em pensamento e diante do espelho, venho mentindo mentirosamente essas minhas mentiras que há milênios deixei de ver como mentiras, mentiras que se criam e recriam por geração espontânea, à minha completa revelia, sem que eu saiba para que nem por que, mentiras quentinhas, mentiras deliciosas, mentiras fresquinhas de Piracicaba, de São Paulo, dos vilarejos ao sul cujos céus jamais foram riscados por foguetes rumo a Marte nem por estrelas cadentes.
Não sou como a maioria que mente para obter uma vantagem, emocional ou material, real ou imaginária – minto porque preciso me iludir. Minto porque gosto de me iludir. Minto porque meu esporte predileto – não, meu único esporte – é me iludir. Não sei, nunca soube e tenho raiva de quem sabe aceitar as coisas como as coisas são. Disso estou plenamente certo. Desde aquele meu primeiro dia. Desde aquele fatídico instante em que aquele maldito espermatozoide de papai, que não amava mamãe, deu de cara com aquele nefasto óvulo de mamãe, que não amava papai. E minhas razões para mentir nem são tão sérias assim. Às vezes me pego com vontade de inventar uma mentira meramente por ver alguém andando na rua totalmente alheio ao que se passa no céu acima de sua cabeça, céu desprovido de foguetes em direção a nada, céu que seria céu mesmo se fosse rosa-choque.
Isto posto, fico cá no meu canto matutando, será que existe gente sincera neste mundo?
(Tenho a ligeira impressão de que deitei tudo a perder colocando essa questão. É cristalinamente claro que existe gente sincera neste mundo. Quer prova? Vá lá fora, dê alguns passos pela calçada e você cruzará com inúmeras pessoas, olhadoras do céu ou do chão, para quem o mundo é toda a verdade de que elas precisam.)
Minto porque o único instante em que me sinto razoavelmente bem é quando estou me equilibrando na linha fina entre a paz e a calamidade, cego de euforia, surdo de agonia, o peito prestes a arrebentar da gana de êxtase, o coração paralisado de dor e alegria.
Minto porque a vida é uma mentira.
Não, isso não me basta.
Nada me basta e por isso minto e hei de mentir até a vinda da minha verdade.


Enquanto antes

Por que um passeio num domingo ensolarado não é mais só um passeio num domingo ensolarado e um almoço num restaurante à beira da estrada não é mais só um almoço num restaurante à beira da estrada e um bate-papo regado a uísque, vinho e cerveja não é mais só um bate-papo regado a uísque, vinho e cerveja e alguns momentos de sorrisos, troca de afeto e de recordações não são mais só alguns momentos de sorrisos, troca de afeto e de recordações e a volta para casa sentindo aquele cansaço gostoso que sentimos no fim dum dia que, de tão prazeroso, nem vimos passar não é mais só a volta para casa sentindo aquele cansaço gostoso que sentimos no fim dum dia que, de tão prazeroso, nem vimos passar e sentar no sofá da sala enquanto os pensamentos se sucedem a esmo pela cabeça e a conversa vai varando indolente as horas não é mais só sentar no sofá da sala enquanto os pensamentos se sucedem a esmo pela cabeça e a conversa vai varando indolente as horas e abrir uma gaveta, retirar um álbum de fotografias e revisitar as alegrias e as tristezas do passado não é mais só abrir uma gaveta, retirar um álbum de fotografias e revisitar as alegrias e as tristezas do passado e sentir um aperto no estômago causado por uma ou outra lembrança mais dolorosa não é mais só sentir um aperto no estômago causado por uma ou outra lembrança mais dolorosa e se olhar no espelho do quarto e ver que a idade está avançando e dar displicentemente de ombros não é mais só se olhar no espelho do quarto e ver que a idade está avançando e dar displicentemente de ombros e deitar na cama e apagar a luz e se esforçar para fechar os olhos que teimam em permanecer estatelados não é mais só deitar na cama e apagar a luz e se esforçar para fechar os olhos que teimam em permanecer estatelados?


Desfaçatez

Ah, se apenas por uma noite o Diabo liberasse a Hebe e permitisse que ela se ausentasse algumas horas do Inferno e viesse me visitar...
Estou absolutamente certo de que a Hebe estranharia algumas coisas neste meu quarto desorganizado, senão o quarto inteiro.
Sem dúvida, sua primeira pergunta seria: “Mas para que tantos livros afinal?”
Ao que, acanhado como sempre fui e seguramente intimidado pela imensa loirice da entrevistadora, eu me limitaria a corar e, olhando servilmente o chão e, cabisbaixo, abriria um desses meus meio-sorrisos evasivos.
E, estou igualmente certo, sua segunda pergunta teria algo a ver com minha formação acadêmica ou, talvez, para qual time de futebol torço ou, quem sabe, em quem votei para presidente nas últimas eleições.
E a cada pergunta, com esta minha voz tímida, de timbre soturno e escuro qual a dum Plácido Domingo desprovido de talento, eu responderia nestes meus malditos monossílabos que desde criança me impedem de sonhar sequer c’um laivo de felicidade.
“Por falar em criança”, a Hebe exclamaria com toda sua pujante animação, os olhos rutilantes daquela peculiar faiscação de que só os cúmplices da alegria têm o luxo de desfrutar, “por falar em criança, do que é que você mais sente falta da infância?”
“A senhora quer dizer, qual é a minha mais vívida lembrança dos meus tempos de menino?”
“Isso!”, ela se entusiasmaria. “E não me chame de senhora, gracinha. Afinal não sou tão velha assim, hehehe...”
“Bem, Hebe”, eu começaria, erguendo com certo custo o olhar do chão, “o que mais sinto falta da infância é o cheiro da minha tia...”
De repente o rosto da Hebe ficaria completamente sóbrio e ela me fitaria com toda a seriedade de que fosse capaz e me encorajaria, “hãhã...”, assentindo repetidas vezes com a cabeça de vovó viquingue.
“Por que você sente tanta falta do cheiro da sua tia?”
“Bem, Hebe, acho que não sei explicar direito...”
“Faz uma forcinha, vá! Diga ao menos que cheiro era esse.”
“Ah sim, é verdade, posso tentar uma associação. Bem, minha tia tinha cheiro de coisa guardada...”
“E...?”
“E não era só o cheiro dela pessoalmente, não. Tinha também o cheiro da casa...”
“E...?” A Hebe ia acentuando cada vez mais os gestos afirmativos com a cabeça, procurando estimular minha memória, tentando me deixar à vontade.
“E o cheiro que exalava dela e da casa dela era de coisa guardada...” Neste ponto, não pude me conter. “Me desculpe, Hebe, é que nunca usei tantas reticências em minha vida...”
“Não faz mal, gracinha. Continue. Então sua tia cheirava a interior de guarda-roupa...”
“Isso mesmo, Hebe! Sim, era esse cheiro que as coisas pegam quando ficam muito tempo trancadas, entende? E a casa dela tinha muitos guarda-roupas, muitos armários, e cada um deles guardava uma enormidade de roupas e badulaques, entende? E quando eu e meus irmãos entrávamos na casa, aquele cheiro meio de mofo, meio de naftalina que impregnava fortemente o ar em cada cômodo entrava dentro da gente, pegava na nossa roupa, na nossa pele, e ficava grudado na gente um tempão, até o dia seguinte...”
“E...?”
“E, bem, minha tia também vivia guardada...”
Os olhos da Hebe lampejariam.
“Vivia guardada? Como assim?”
“Morreu solteira, entende, Hebe?”
“Hãhã.”
“Provavelmente virgem, entende?”
Hebe, obviamente, arregalaria os olhos.
“Será?”, franziria a testa.
“Tenho quase certeza que sim! Minha tia não se socializava, como se diz nos filmes de Hollywood. E era muito reservada. Quase arredia, pra dizer a verdade. E ranzinza. Nunca conheci ninguém tão ranzinza...”
“Por isso, você acha que ela não se casou e morreu virgem.”
“Hum-hum.”
“E...?”
“E é isso, Hebe...”
“Hã-hã...”
Então eu abaixaria a cabeça, meio constrangido por não ter mais o que dizer.
Mas alguns segundos depois me ocorreria acrescentar:
“O cheiro de roupa guardada da minha tia era mais ou menos como o desse seu casaco, Hebe...”
Hebe ergueria o braço que não estava segurando o microfone e farejaria o punho de seu casaco de camurça marrom.
“É mesmo!”, reconheceria naquele seu tom divertido em que tudo é motivo de riso. “Deu pra sentir daí o cheiro?”
“Assim que você entrou no quarto...”
“Hahaha!”, esbugalhando os olhos para a câmara, ela soltaria uma das suas tremendas gargalhadas, ainda estilo pré-facebook kkkkkkkk. “E eu que pensava que as labaredas do Inferno dariam um fim neste fedor de mofo!”
“Pois é, Hebe...”
“Gracinha!”


Incessantemente não

Não me pergunte por quê.
Pois é a mais cafona pergunta que se pode fazer neste mundo e nesta vida e nasci alérgico a cafonices.
É o maior lugar-comum que existe nesta e em todas as outras línguas e nasci com anticorpos para clichês.
Não me pergunte por que porque esta é a pergunta que todo infante faz logo ao nascer, mesmo sem ainda conhecer as palavras. Porque é a pergunta que todo velho, já exausto das palavras, refaz pela bilionésima vez um segundo antes de seu coração perpetrar o derradeiro batimento depois de tê-la feito ao longo de toda a vida a cada nova pulsação. Porque é a pergunta que se forma em nossa mente já ao nascermos feito um pecado capital, é a pergunta que herdamos de nossos predecessores, a pergunta que legamos aos nossos descendentes.
É a pergunta que o mundo inteiro se faz o tempo todo, a pergunta que atormenta o poeta enquanto estuda as estrelas, a pergunta que inquieta o gênio que calcula equações do quarto grau, a pergunta que martiriza o idiota perplexo ante a imponderável injustiça de ter nascido idiota.
Não me pergunte por que de manhã, pois, se o fizer, essas duas sílabas infernais haverão de martelar em minha cabeça até o fim da minha jornada, se perpetuando em ecos a ricochetear nas paredes do meu cérebro ao desvario. E, obviamente, não me pergunte por que à noite se não quiser assistir ao lamentável espetáculo dum sujeito a se banhar de suor enquanto se revira por sob os lençóis a gemer choramingos patéticos, a grasnar xingamentos insanos, enfastiado ao delírio com a mortal dança das sombras ante seus olhos esbugalhados.
Não, não me pergunte por que durante uma caminhada pelas ruas tomadas de gás irrespirável, pois hoje e sempre não tenho destino, não me pergunte por que dentro desta casa entulhada de recordações impossíveis que nunca me dão um segundo de trégua, não me pergunte por que aqui ou ali nem durante o café-da-manhã ou depois da janta, não me pergunte quando estiver sóbrio ou ébrio, triste ou alegre, lúcido ou atordoado.

Não me pergunte por quê. Pois, se perguntar, sou bem capaz de responder.

Haroldo

A cada dia vou-me vendo sem onde navegar na internet, que incalculável imensidão de nada tenho aqui nas  pontas dos dedos.

Gargo nauta

Parado no meio do oceano, vou desmontando meu barco, despregando uma a uma as tábuas das paredes e do piso, desfazendo as armações, desatando os encaixes, enquanto vou reparando que não há uma lufada de vento e a superfície da água, sem nenhuma onda, lembra uma pista de gelo, de tão lisa. Na minha mente nenhum pensamento se demora por mais de meio segundo, não me dando tempo de formar ideia alguma nem formular ou reformular as incontáveis opiniões sobre todas as coisas que me estofavam o espírito até o momento em que zarpei. A memória parece ir se desintegrando em fragmentos cada vez menores que vão se esfarelando numa areia finíssima e sumindo dentro dum buraco que por sua vez vai diminuindo até finalmente sumir também. O céu está sem nenhuma nuvem, o dia está ensolarado e límpido. Cobrindo meu corpo há uma camisa e calças escuras que não sei bem se pertencem a mim ou a outro ou outra. No bolso da camisa há um maço de cigarros. Passo a mão no alto da cabeça, sinto os cabelos finos e relativamente longos. Passo a mão no rosto, percebo uma penugem rala no queixo e sobre o lábio superior. Olho para minha barriga e noto que sou magro. Removo mais alguns caibros do piso enquanto tento me lembrar do meu nome. Não consigo e sinto a minha boca se abrir num meio sorriso. Quantos anos terei? A pergunta instantaneamente esvanece numa réstia de luz no fundo da minha cabeça e meu peito exala o ar, aliviado. Desprego a última tábua do barco, olho em volta, vejo apenas o horizonte, meu último retalho de pensamento tenta se agarrar a algo que lembra remotamente uma âncora.

Coração de sal

Todos aqueles anos

carregando debaixo

do braço todos aqueles 

livros cheios de ciência,

inconsciente de que

toda minha ciência

era você?

Oh good lord.

Não precisa mais ter cuidado

Quando tinha uns seis, sete anos, perguntei a meu pai, pai, para onde vão todos nossos pesadelos?

Sem sombra de dúvida, ele disse, sem sombra de dúvida eles vão para as sombras do meu coração.

É mentira — não fiz essa pergunta a meu pai. Nunca perguntei nada a meu pai.

A verdade é que todos nossos pesadelos vão para as sombras do meu coração.

O quase gênio brasileiro

Descobri por que paramos em Machado.

Nossos xarás lusitanos têm Camões, nossos xarás lusitanos têm Pessoa.

Estamos perdendo por dois a um. E sabe-se lá quantos séculos precisaremos esperar para nascer um brasileiro à altura.

Tivemos vários candidatos bons no século passado. Euclides foi um fabuloso meio-termo. Mario de Andrade criou a saga da raça mas lhe faltou a gota divina. Guimarães Rosa quase emulou Joyce mas no fim se revelou mais chato que revolucionário.

Vou escutando Joana Francesa, do Chico, enquanto caço estas mal batidas tecladas.

Tem algo de genial num sujeito que faz um verso como O mar me arrebateaux num país de semianalfabetos como o Brasil.

Mas o gênio do Chico instaneamente vira pó quando pensamos que ele foi incapaz de superar o banzo stalinista, se deixando engolir tão caradepaumente pela cafajestice do lulopetismo, insuperável pecado moral.

Há no gênio defeitos não compensados pela genialidade do dono. 

Atestado de loucura

Caí mais ou menos sem querer em Paranoid, Black Sabbath, no YouTube. Não é aterrissagem fácil. Assisti querendo sair. Certo Shakespeare também é assim.

Comprei o "LP" quando lançado nos anos 1970, moleque imberbe. Mudei pacas dum lado, não mudei nada do outro. Sei.

Paranoid é uma peça definitiva. Tanto quanto a Sonata ao luar, de Beethoven. "Ilustra" uma época. Representa uma cultura, sintetiza o modo de vida duma geração, ou várias.

O coitado que canta, de cujo nome não me lembro, é, visivelmente, doente. O move a imensa grana que ganha por cada show. Está se lixando para o paradoxo entre os versos que grunhe feito um lince enjaulado e a figura mercadológica que atrai milhões de deserdados e órfãos culturais e afetivos a cada apresentação. Eles, todos, precisam berrar a plenos pulmões e mais à surdez para não escutarem a própria mentira que vivem e propalam e que nunca cansa de latejar dolorida dentro de seus coraçõeszinhos fadados à infelicidade. Se proclamam revoltados contra o sistema mas fingem não saber que a única revolta lógica seria contra a vida. Não se atrevem a tamanha temeridade. O protagonista tem de faturar, seu público tem de curtir. Não será a vida que haverá de impedi-los.

O YouTube é colossal. Assustador. Nos diz em trilhões de clips o que qualquer grande escritor, o que qualquer grande poeta já nos disse mas, teimosos que somos, nos recusamos a escutar e aprender. Nunca houve tão devastadora ameaça contra a palavra. E, você sabe, you know, se nos desfizermos da palavra, nos restará o quê? Sei.

O rock parece ser tudo que Kafka temia e não encontrou palavras nem parábolas para nos ensinar.

O mundo é um hospício.

Há algo de rebanho no Face


Faz uns dias não esculhambo o Facebook e eis que a natureza me reclama. Fazer o que (sem acento no e), é essa a natureza que chamo minha.
Sei que um ou dois dos meus quase três leitores, se pudesse a mim dirigir uma palavra amiga, perguntaria “Mas por que atacar o FB afinal?  Aquela gente não está fazendo mal a ninguém, só querem ficar lá clicando aquele botãozinho “Curtir”. Deixa de ser chato!” (Estou certo de que haveria o indefectível ponto de exclamação. O pessoal é tão espantadiço hoje em dia.)
Então não posso me furtar a responder.
Defacto, os facebookianos não estão fazendo mal algum a alguém, tanto quanto a ninguém fazem mal minhas camisetas de alça guardadas na primeira gaveta da cômoda no meu quarto ou a meia-dúzia de ovos caipira há meses a apodrecer numa prateleira no refrigerador, ao lado das minhas garrafas de smirrnoff.
(Falando nisso, puxei, não imagino como, a sequidão etílica dos ingleses e o irracionalismo criativo dos russos, igualmente paus-d’água. Lamento pacas não ter sido vice-versa. Meus heróis literários continuam sendo os dylans thomas britânicos que invariavelmente deixam que uma cirrose lhes bote a cereja no alto do bolo da existência. Quanto aos russos, pobrezitos, quando a vodka acabou durante a campanha pela tomada de Berlim na Segunda Guerra, 30 graus abaixo de zero, muitos apelaram para os tambores de óleo de motor, agonizando três ou quatro dias até a morte. Outro dia, no próprio Face, um conhecido comentava que só não toma querosene porque estraga o esmalte dos dentes. Olha, não é declaração que se faça de público, coisa feia.)
Você talvez saiba que o poeta Arthur Rimbaud (não confundir com aquele senhor que filmou o Rambo) passou boa temporada da  juventude no inferno, estadia que, aos tenros 19 anos, viria a, como gostam de dramatizar os cronistas jornalísticos, "imortalizar" em verso. Rimbaud escreveu seu grande poema depois de viajar pela Bélgica e Inglaterra ao lado do amante, o também poeta Paul Verlaine, e pela zona rural da França. Verlaine trocara a esposa pelo enfant terrible de terríveis olhos cor de anil, que, dizem, derretiam corações à primeira vista.  O inferno a que Rimbaud se refere é a França, que chamava de horror, o que, visto estarem os campos franceses entre os mais bucólicos do planeta, deve ser surpreendente para os redatores da revista Cláudia. (Será que estou me referindo a Loyola Brandão?) Dizem que os franceses eram um bando de gente atrasada até o meado do século 19. Não posso garantir.
Facebook é outro nome pelo qual atende o inferno atual.
Como expliquei alhures, também acabei cedendo à tentação de abrir uma conta no Hades hodierno. E não se frequenta o Inferno, sobretudo um digital, sem maiores traumas, na pitoresca expressão dos atendentes dos pronto-socorros.
O quase imberbe Arthur escreveu seu Saison en Enfer sob o nada lírico tri-efeito do absinto, do haxixe e do ópio. Como não sou tão radical quanto Thomas nem tão suicida quanto Maiakovski, optei por viajar pelo Face – no familiar, singelo dizer da boa gente que lá se hospeda –, segurando um copo de boa altura munido do mais puro Balla 12 anos. Fazer o quê? A cada era seus poetas. (Até uns anos atrás sabia dizer essa frase em latim, os efeitos etílicos não são batatinha.) E nunca teria caso c’um poeta, qualquer que fosse seu sexo, mesmo que do porte dum Verlaine, bien sûr.
Querem saber o pior de tudo?
O pior de tudo é que o Face não é propriamente um inferno. Eu o chamaria de jardim de infância infernal, se me faço entender a contento. Um jardim de infância infernal e narcísico.
Mas, tendo já conhecido a moradia do diabo em outros carnavais, que é que fui lá fazer, afinal de contas?
Acontece que sou meio avoado. Não estou entre aqueles grandes e perspicazes escritores que prestam atenção em suas próprias experiências. Pode rir, sei que este comentário não é lá muito autolisonjeiro. Tudo bem. A franqueza sempre será mantida no alto da minha lista de prioridades literárias, custe o que custar.
Avoado que sou, tinha me esquecido de como essas redes de "relacionamento" podem se tornar, para corações sensíveis e frágeis feito o meu, um cavernoso pavilhão dum manicômio soft. Um manicômio onde a loucura raia níveis de desespero, pois, ao contrário dos hospícios do mundo concreto, ali se faz tudo de modo dissimulado. É um fazer que não ficamos sabendo direito como se faz.
(Me permitam uma reformulação, antes que seja irremediavelmente tarde. A referida casa de loucos é apenas a primeira impressão. Depois dum certo período de aclimatação você se dá conta de que foi jogado num gigantesco palco onde minúsculos personagens em forma de fotinhos encenam uma peça sem enredo. Peça sem enredo mas que tem um tema: os próprios personagens. Ainda não firmei convicção quanto à natureza artística de tal entidade. Não sei se a classificaria como experimentalismo do avant-garde ou imensa bobagem do que os críticos da segunda metade do século passado batizaram pomposamente de metalinguagem, glorificada à bestiologia pelos concretistas e outros deslumbrados. Também não sei se finalmente realizamos o projeto do teatro da vida real iniciado por Augusto Boal em seu exílio na Europa.)
Mas de que tema essa peça involuntária trata? Que fazem, de que falam, movidos por qual mote atuam os personagens?
O que sei dizer com alguma segurança por enquanto é que por trás desses portais de relacionamento corre um tipo de eletricidade surda que aparentemente deixa todo mundo em estado de excitação constante. Os personagens do grande teatro online simplesmente não conseguem ficar quietos e, assim, não  deixam ninguém mais quieto. Passam o tempo todo atulhando a tela dos “amigos” com reclames, "partilhas", "curtidas", piadinhas com que deparam enquanto navegam alhures, notícias que acham por bem trazer à atenção de seus parceiros e por aí vai. Jogam na frente do freguês anúncios de shows de seres obscuros, celebridades televisivas que flanam pelo depauperado showbiz brasileiro há séculos sem que alguém sequer se lembre de seus nomes, máscaras e fuças de quem você nunca ouviu falar, de quem você está cansado de ouvir falar, de quem você pensava e torcia para que já tivesse morrido no século 15. Quando não estão ressuscitando mortos-vivos, providenciam um desfile assoberbante, infindável, angustiante de citações de pensadores e escritores e poetas que, se fossem consultados quanto a ver seus pensamentos e versos expostos sem parcimônia naquela vitrina sinistra, certamente obrariam outros versos e pensamentos condenando ou zombando da arbitrariedade com que são ali citados, e aí sim teríamos um happening verdadeiramente metalinguístico.
O inferno facebookiano consiste dum interminável manancial de exibicionistas.
Exibicionistas a disseminar freneticamente o mais fantástico arsenal de irrelevâncias jamais visto deste lado da Via Láctea.
Você tem a impressão de estar vivendo dentro duma propaganda de Kolynos. Dentaduras reluzentes se abrem em esgares por todos os lados para fazer parte de máscaras grotescas dessa alegria fingida destes novos tempos desta gente infeliz e solitária e frustrada incapaz de mexer um dedo pra lutar contra a opressão da FRIVOLIDADE que nos massacra a todos, o PODER TECNOLÓGICO que nos usa como graxa para que suas rodas girem mais rápido e nos triturem ao nível de farelo, robôs obstinados em partilhar com amigos, centenas de amigos, milhões de amigos bobagens postadas por outros bilhões de amigos, personagens sem história nem rosto a largar comentários inócuos e ingênuos num quadradinho suplicando (de joelhos!) que você tenha piedade e clique no mágico botãozinho CURTIR e assim alivie por uns minutos o interminável enfado que suas vidinhas offline e sua intolerável solidão online lhes impingem.
O que mais me assusta nessas redes de relacionamento é a uniformidade. Todo mudo parece ter a mesma cara, a mesma ideologia, a mesma personalidade. Parece que ninguém dá uma opinião mesmo quando pensa estar dando uma opinião. Todo mundo concorda do mesmo jeito, todo mundo discorda do mesmo assunto. E, porco dio, dá-lhe o famigerado CURTIR! E como é patético o casalzinho que namora online e só “transa” online. E como são patéticos os amigos de infância que agora só se veem online. E como são tristes os irmãos que só se frequentam online.
Tenho esta horripilante impressão de ter mergulhado num angu existencial, de ter sido sequestrado por homenzinhos verdes que me enfiaram num mercado cibernético de almas frouxas em busca desesperada por uma conexão humana. Fiquei no Face alguns dias, esquecido de que sou incapaz de tolerar circos de espantalhos sorridentes, quaisquer que sejam, por meia hora. (Ei você aí que não sorri, você está a salvo do meu libelo, baby!) Daqui uns meses tornarei a me esquecer pela enésima vez e lá estarei novamente naquela rede de RELACIONAMENTOS com mais badulaques e mais "recursos" e mais "aplicativos" e muito mais propagandas de óculos e cremes antirrugas e lançamentos de paraísos imobiliários com 15 banheiros e 30 vagas na garagem e terraço gourmet ali pertinho do metrô que os gênios da era da informação certamente inventarão para manter a população mundial sob a mais extensiva, a mais profunda hipnose universal. Sabe o que é especialmente insuportável? Não? Então não se angustie mais, pois lhe digo agora mesmo. O que para mim é absolutamente intolerável é que milhões de pessoas se submetam tão bovinamente a um meio que as iguala a todas, passando por cima de suas individualidades e seus sonhos particulares e suas aspirações específicas E SEUS SENTIMENTOS ÍNTIMOS DE SI MESMAS qual o mastodôntico trator de um bilhão de cavalos e quinhentas mil rodas de aço do armagedão. Ou você pensa mesmo que uma citação de Nietzsche fará alguma diferença perdida neste fantasmagórico liquidificador das pessoalidades do mundo? E COMO SE AINDA FOSSE POUCO, esse medonho processo de DESPERSONIFICAÇÃO se dá sob o patrocínio do maravilhoso Ray Ban Aviador em vários modelos e em várias cores com 67% OFF e frete grátis!
Não pensem que esta diatribe tem algo de pessoal. NÃO TEM. O que tem é o que tenho em mim e que ninguém é capaz de tirar: minha independência. Certo, fica mais fácil quando você não tem patrão e não precisa fazer média com os vizinhos e não precisa pedir votos ou a simpatia de terceiros ou não precisa abaixar as orelhas para sei lá quem pense que você é isso ou aquilo e ficar negociando seus sentimentos para preservar sua reputação, seu bom nome na praça, essa sua imagem que você hoje confunde com uma marca de cigarros ou de refrigerante. Que esporro, né? Catártico, você diria? Será que deveria consultar meu analista antes de postar tamanha barbaridade? É o que você faria, de certo. Pois o Facebook e seus afins é o antro dos que não dão, NUNCA, ponto sem nó. Meus olhos veem aqui nesta tela -- e não acredito no que vejo -- milhões de diligentes aranhazinhas a tricotar suas teiazinhas para tecer a teiazona mundial que por fim haverá de enredá-las pateticamente.
Outro dia perguntei a um camarada que vive no Face “Que é que você faz tanto lá?” e ele me explicou que o barato, depois de postar comentários (que na novilíngua do tarado digital Zuckerberg os habitantes da Oceania facebookiana chamam de status) e imagens, é ficar esperando os amigos “curtirem”. Fiquei impressionado (pra não dizer em estado de choque), não tanto pela ingenuidade desse ato, atividade, operação ou sei lá que nome posso dar a isso, mas pela candura com que o rapaz abriu o jogo. (Não, para ele não se trata dum jogo, muito pelo contrário.) Uma bobagem que me deixaria envergonhado é, para ele, atitude corriqueira. O que a mim me leva a temer que no futuro a humanidade seja destituída de toda capacidade crítica, para o novo ser digital parece tão natural quando dar bom-dia aos vizinhos.
Participar do Face me dá vergonha, really. Me ver perdido no meio de milhões de rostinhos anônimos, ó Maria Imaculada, me deixa constrangido. Ser um a mais, servir de massa de manobra a contribuir para a trilionária fortuna dum sujeito que sequer é brasileiro me dá um nó no estômago. Me sentir idiota me dá falta de ar, a impotência de servir a um superdeus tecnológico me dá essa sensação de que eu e o mundo que conheci estamos chegando ao fim.
Não sei se você sabe, Arthur Rimbaud um dia deixou de ser poeta e virou traficante de armas. Não sei se você sabe, enquanto poeta, Rimbaud não só fazia poemas escatológicos mas era um escatologista avant la lettre, no vocabulário e também na feitura, tendo escrito alguns versos com as próprias fezes. Não, não estou preconizando a metodologia escatológica como salvação para o oceano de pseudopoesia sem água nem açúcar, sal ou gordura, sangue ou suor que abunda na rede.
Rimbaud é considerado um dos grandes poetas do mundo ocidental, embora um ou outro revisionista teime em desafiar a qualidade de seu trabalho. Como criador que sou, não estou entre tais revisionistas. Me aferro ao (péssimo) conceito que Rilke tinha de críticos literários.
Que é que Rimbaud tem a ver com o Facebook? Graças ao mau deus, absolutamente nada. Ou, se preferir, tem a ver por exclusão. Rimbaud está tão ligado ao Face quanto os bilhões de blogs que pululam pela internet se associam à literatura. Tal como no Face, blogueiros pretendentes a vates estão interessados é na teia que os une a todos num só Grande Movimento Criativo, essa imensa teia impessoal de escreventes que se afagam, que trocam entre si loas, beijinhos, incentivos (Go! Fulano! Go!), bilhões de pequenas máquinas de fazedura de verso e prosa narcísica em que a literatura deixa de ter qualquer importância para ceder todo seu lugar – que, para os que dela necessitam tanto quanto o oxigênio, é, e não poderia deixar de ser, sagrado – a um faz-de-conta pseudo, falso, infantilizado.
Pobre geração facebookiana. A meninada não tem ideia do que seja vida privada. A intimidade virou pó, soprada rumo ao cosmos pelo vento tecnológico. Um novo ser está sendo forjado sob a teia de assanhados morbidamente solitários e autocentrados. A moçada acha perfeitamente natural a autoexibição cibernética e a fuçação no que é alheio de direito. Sofrem de inédito mal em que necessitam estar continuamente interligados por um cordão umbílico-digital e temem morrer de falta de ar se ficarem meia hora longe desse estranho rebanho cibernético. É um mal letárgico, preguiçoso, acrítico, em que os novos robôs devoram e se deixam devorar pela obsessão tecnológica que, para Heidegger, é a perdição. Estamos testemunhando o nascimento da geração da individualidade despedaçada.
Será que será cada vez pior daqui em diante?
Ei Mark Zuckerberg! Ei publicitários do Mark Zuckerberg! Se quiserem comprar este meu texto para usar na promoção do seu negócio, é só entrar em contato.


Antes de esquecer

E a fera me continha entre seus braços, seus braços musculosos, seus braços díspares, que ora intensificavam, ora diminuíam a pressão só para tornar a me comprimir com suavidade, eternizando um movimento cíclico que no início me levou a temer e logo me induziu a esperar um tipo de exercício afetivo. Então a certa altura senti que algo no bestial corpo aos poucos ia cedendo a tremores que pareciam nascer duma profundeza insondável, a brotar em forma de contrações involuntárias que se iam aflorando a contragosto, confrontadas por um fatigante, e tíbio, esforço de dissimulação. E focava a fera no meu um olhar dúbio, olhar confuso, olhar que só olhos cegos podem emitir e que por momentos de primitivo calafrio delirei brotasse, qual flor inodora e tímida, da mais estapafúrdia das ternuras, imaginando, ao mesmo tempo, vislumbrar no focinho de múltiplos e disformes furos, de que por vezes se insuflavam bolhas diáfanas, multicores que num átimo me remeteram a uma infância que não era minha, arreganhos espasmódicos entre os familiares, incertos, hesitantes impulsos de seus instintos de predadora à beira dum arrependimento tão mais pernicioso quanto pudesse delatar que algures em seu interior imenso talvez houvesse restos apodrecidos de humanidade e o sangue a escorrer por entre os grotescos dedos de suas patas pegajosas, invocar a mais inédita possibilidade de amor e clemência.  

Enquanto te espero

Que mal há em viver nas nuvens?
Me diga.
Não é pergunta retórica.
Preciso, ó como preciso, saber.

Talvez, sabendo, me decida
que nuvens me fazem mal.

Sei.

Ontem sonhei que ela não precisava mais de mim.
Que enxerguei um sonho em seus olhos.
Que eram meu túmulo.

Antes que a bolha estoure

Há um segundo
Voltei pros meus parênteses de sempre
Ó útero perdido, em breve
Haveremos de nos reencontrar

(Pelo menos neste segundo
não interrogarei a validade
do brilho das estrelas.)

Aqui te aguardo
Até que te ergas
E, espantalho da minha dor,
Prometo:

Saberei te 
Confortar

Antes de desistir duma vez por todas

Então o menino descobriu uma saída.

Toda manhã antes de sair de casa para a escola, enchia a boca de ar (não muito, para não dar na vista), semicerrava os olhos e partia.

E com a boca semicheia de ar velejava pela vida até a hora em que a campainha anunciava o término do período e então voltava para casa.

E corria para o cantinho que guardava no fundo do quintal e, se vendo salvo, esvaziava as bochechas, ufffff....

Antes de te abraçar

Veja, ando com essa suspeita de que posso ter uma saída
Ouço aqui no fundo uma mágica
(que posso dizer? sou ainda dos tempos das mágicas)

Um vagalhão de Grieg
deslancha do horizonte
se funde à tempestade
de Beethoven

Antes de afundar

Vou registrar o segredo:

ingressar
passear
explorando
a loucura
sem enlouquecer.

Sorry, veredito só depois de findo o processo.
É que a noite passada tornei a sonhar com minha mãe e suas irmãs e seus irmãos e seus sobrinhos (meus primos).
Bastaria para desamarrar meu barco e singrar pela correnteza?
Não sei.
Estou tão cansado de fingir ter todas as respostas.
Só me deixe aqui sozinho no meu canto
em paz

VIngança

A dor passou?
Espero que não.
Você tem dor que nunca passa?
Eu tenho.
Dor de garganta, dor de consciência, dor de cotovelo, sou o zé das dores.
Nunca fiquei um minuto que seja sem algum tipo de dor.
Não sei viver sem dor.
Não sei compreender quem vive sem dor.
Pra você aí que se proclama feliz, maluquete da silva, né?
Sendo tão sagaz, sacou de cara.
Sempre acontece.
Todo mundo, tão sagaz.
Essa capacidade extra de detectar malucos.
Só outros malucos da minha laia me aceitam mais ou menos como sou.
Os felizes, os limpos, os sãos, os íntegros fogem como se eu tivesse lepra.
Um dia escrevi uma história.
Zezinho lasca uma machadada no cocuruto de Mariazinha.
Assim do nada. Foi lá e pkatcjakha!
Dia seguinte vieram perguntar que loucura era aquela.
E se foram, emburrados.
Minha historiazinha se baseava em “fatos verídicos”, como dizem nos filmes.
Numa escola perto aqui de casa, um garoto chamado David levou o revólver do pai à escola, atirou na professora e em seguida se matou.
Eu queria perguntar aos íntegros, aos sãos, aos limpos, aos felizes se agora eles entenderam.
Entenderam o que é ficção, entenderam o que é realidade, seus porras?
Me senti meio profeta.
O mais infame na história é que nenhum íntegro, nenhum são, nenhum limpo, nenhum feliz foi capaz de sacar que David estava desesperado àquele ponto.
É na mão desses íntegros, desses sãos, desses limpos, desses felizes que está a "sociedade".
Os sensatos, os de bem com a vida, os normais.
Sabe minha gana nessas horas?
Minha gana nessas horas é meter uma marreta em minha própria cabeça
Entoar meu cântico do pêndulo.
Ói, ói o pêndulo.
Pêndulo, me canta tua dor.
Ói, ói o pêndulo.
Acho que é o que o pêndulo quer.
"Eu estava com uma baita dor".
Querendo puxar conversa de novo, né, seu pêndulo?
Entendo. Acontece com muita gente que se julga autossuficiente e pensa poder prescindir dum poeta.
Um dia alguém me disse que não sei usar minha "sensibilidade de poeta" ou algo assim.
Fiquei impressionado. (Tudo bem, estou sempre impressionado.)
Será que minha sensibilidade é especial? pensei.
Ou apenas mórbida?
Mas valeu, não valeu?
Digo, você pelo menos viu que se meter com poeta é barra.
Uma vez escrevi um textículo chamado "Barraco metafísico na noitinha..."
É um manifesto dum poeta (eu) a uma mulher (ela) que está deixando ele.
Exatamente por ser poeta.
Mas quem quer um poeta?
Todos procuram é um guru.
A  quem possam consultar como se fosse o Oráculo de Delfos, esperando que de sua boca espirrem pérolas da sabedoria.
Hoje sei que ela (você) entendeu.
Me recusei a servir de sabonete (ou qualquer outra porcaria que se compra no mercado).
Quando entendi fiquei indeciso se caía na gargalhada.
Me limitei a ficar estupefato.
Certas perguntas não se fazem a um desconhecido.
Não se perguntam a ninguém.
Somos todos vítimas.
A mulher deixou o poeta sem deixar escapar uma gota de sentimento.
Perplexo de novo (SERÁ QUE NUNCA DEIXAREI DE SER PERPLEXO, PORCO DIO?), me espantei de já não ser dono de todas as respostas.
A mulher que deixou o poeta é tão peculiar.
A mulher que deixou o poeta é tão singular.
Única no mundo.
E se um dia tiver um filho poeta? agora quem pergunta sou eu.
Vou querer ver a barriga.
Rechonchuda, tetas intumescidas, ar bonachão-protetor-ensimesmado próprio das prenhas.
Lá se vai ela com sua cara de enjoada.
E seu semblante imperscrutável.
Altaneira, ar nobre, distante, desapaixonada, sentimentos sem adjetivos e perguntas sem resposta.
Acho que sim.
Vale a pena ter um filho poeta mesmo sendo mulher sem paixão.
Vale a pena qualquer coisa.


Momento Cultura Trash

O que vou dizer a seguir não é digno de dez palavras, really. Mas deve me distrair um pouco da passagem do tempo no chove-não-molha deste feriadão chuviscoso.

Ontem, domingo, RESSACA virgílica após bebedeira homérica na noite anterior, sábado. Como nos velhos tempos. Dia inteiro jogado no sofá, procurei um filminho merreca pra desopilar, acabei botando no DVD a “comédia romântica” Sexo sem compromisso.

Ficaria melhor se fosse apenas “Sem compromisso”, como o original, “No strings attached”. Pra variar os brasileiros encarregados de intitular o lixo estrangeiro resolveram inovar e botaram “sexo” no meio, encafonando tudo e quebrando parte do barato.

Barato que não se cumpre, obviamente. 

A dupla “romântica” é formada pela bela Natalie Portman e pelo belo, ugh, Ashton Kutcher.

Ela, aquela gracinha sem-graça saída de tempos em tempos das forjarias de Hollywood para alimentar o formidável apetite do planeta por escapismo. Quando fez o filme, Portman vinha dum Oscar por uma chatice estetizante e pseudo chamada “Cisne negro” que não aguentei assistir dez minutos. Portman é bonitinha, ponto, parágrafo. Abre sorrisos, franze o cenho e estreita os olhos nas horas certas na medida certa. Mas o roteiro e a direção desse divertissement meia-boca são tão ruins, que Portman quase sobra.

Quanto a ele, quanto menos disser, melhor. Seria chato e covarde esculhambar tão atroz incompetência que ameaça escorrer da tela e empoçar no chão da sala. Kutcher é o típico galã hollywoodiano: alto, bonitão, insípido e cara de bobo, sonho de certas mulheres de gosto estragado. Espero que Hollywood nunca nos mande o rapaz para protagonizar novelas da Globo em represália por termos mandado Rodrigo Santoro para Hollywood.

No filme o casal busca um prato-feito à moda do politicamente correto – ter um relacionamento afetivo com muito sexo, pouco afeto e nenhum amor. Sem compromissos. Tá na cara que não vai dar certo, por mais que a rapaziada de hoje “saiba o que quer” tal como num antigo comercial de Minister. E o que todos os que curtimos comédias românticas queremos é exatamente que não dê certo. Sabemos que uma CR é antes de tudo farsesca.

No fim, Portman se casa com Kutcher. Quer dizer, é de imaginar. Não devo ter assistido mais de vinte minutos.

Pra resumir a significância da trama numa linha, foi legal não terem retratado a mulher em busca de prazer na cama como puta. Não é pouca porcaria. Mas o problema parece estar exatamente aí. A cara de Portman ao longo das cenas a que assisti não parece a duma mulher a fim. Um grau a mais de frieza e poderia classificá-la de assexuada. Não sei se é a atriz ou a personagem, mas o resultado é uma sensualidade que nunca se resolve. Deve ser dureza transar c’uma mulher nesse estado.

O rapagão parece ir na mesma linha. Você fica lá olhando aquele carinha tesudo que passa cinco anos no filme sem atacar a presa até que começa a se perguntar, qual é? Vai pra cima ou não vai? Até que a incapacidade do ator em não extravasar no personagem põe tudo a perder. Kutcher é ele mesmo em todo filme que faz. Um baita tesão a quem pediríamos que não pensasse em nada a sério nem abrisse a boca. Que saudade me deu de Rock Hudson, homossexual dos maiores galãs héteros de Hollywood.

Aliás, a presa aqui não é a mocinha. É ele, o mocinho.

E eis que a minha segunda-feira sanduíche de feriadão que não chovia nem molhava acaba de entornar de vez por um filminho que prometia tempestades mas não choveu nem molhou.

Foi assim que voltei rapidinho pro meu caro poeta mexicano José Emilio Pacheco. Podem ler, que vale a pena. Pacheco, sim, molha que dá gosto.

Enquanto tento acordar

É feriadão e todos abandonaram a cidade.

Não há viv'alma nas ruas, na língua antiga de que padeço de saudade. Às margens das vias, carros jazem adormecidos. Ônibus e caminhões não emporcalham o ar da fumaça negra da morte nem fazem vibrar meus frágeis tímpanos à frequência do desespero.

Nas calçadas, ninguém, indo ou voltando, perdido ou a se procurar, zanzando ou com o rumo certo do compromisso assumido. Estou só, estou livre dos entregadores, das manicures, das secretárias, das cozinheiras que até poucas horas atrás faziam pares com os garçons, das donas de casas ávidas por ir ter com seus malditos quitandeiros para a confecção do almoço de maridos e filhos quase prontos para a escola.

Estou tão só, que me ocorre dar um giro pela Paulista.

E ao chegar à Paulista, me lembro dos fatos ocorridos recentemente e... por que não? 

Me ocorre fazer uma manifestação.

Olho em volta. Ah, ali está uma papelaria. Para lá caminho. Como esperava — não há ninguém. O feriadão é de fato eficaz em enxugar as gentes da face do mundo.

Entro na papelaria, acho uma cartolina branca. Depois, um pincel atômico (que de atômico deve ter só o nome).

Na cartolina escrevo em minha letra de aluno relapso: PROTESTO! E, com um barbante, penduro a cartolina, agora convertida em cartaz, no pescoço.

Saio para a avenida. (Você não faz ideia de como andar absolutamente só pela Paulista é estranho. E inspirador.)

Passo em frente ao MASP, logo cogito me pôr tête-à-tête com um Picasso, talvez um Renoir, olhar um Klimt como o primeiro Klimt foi olhado a primeira vez. Talvez tome "O retrato de Suzanne Bloch" e faça dele picadinho. Desde criança sonho em fazer picadinho dum Picasso.

Mas a ideia de entrar no museu de pronto me aborrece. Vim para fazer minha manifestação, não destruir o mercado de arte.

Ajeito o cartaz no peito.

PROTESTO!

Ergo um braço, ensaio um grito.

PROTESTO!

Faço uma careta não de raiva, mas de determinação.

PROTESTO!

Não tem ninguém por perto, muito menos equipes de televisão. Mas imagino minha triste figura nas telas de tevê em milhões de salas em milhões de lares.

PROTESTO!

Protesto contra o governo, contra o mundo, contra a vida, contra meu passado e meu futuro, protesto contra meus pensamentos, meus sentimentos, protesto contra mim mesmo.