Gargo nauta

Parado no meio do oceano, vou desmontando meu barco, despregando uma a uma as tábuas das paredes e do piso, desfazendo as armações, desatando os encaixes, enquanto vou reparando que não há uma lufada de vento e a superfície da água, sem nenhuma onda, lembra uma pista de gelo, de tão lisa. Na minha mente nenhum pensamento se demora por mais de meio segundo, não me dando tempo de formar ideia alguma nem formular ou reformular as incontáveis opiniões sobre todas as coisas que me estofavam o espírito até o momento em que zarpei. A memória parece ir se desintegrando em fragmentos cada vez menores que vão se esfarelando numa areia finíssima e sumindo dentro dum buraco que por sua vez vai diminuindo até finalmente sumir também. O céu está sem nenhuma nuvem, o dia está ensolarado e límpido. Cobrindo meu corpo há uma camisa e calças escuras que não sei bem se pertencem a mim ou a outro ou outra. No bolso da camisa há um maço de cigarros. Passo a mão no alto da cabeça, sinto os cabelos finos e relativamente longos. Passo a mão no rosto, percebo uma penugem rala no queixo e sobre o lábio superior. Olho para minha barriga e noto que sou magro. Removo mais alguns caibros do piso enquanto tento me lembrar do meu nome. Não consigo e sinto a minha boca se abrir num meio sorriso. Quantos anos terei? A pergunta instantaneamente esvanece numa réstia de luz no fundo da minha cabeça e meu peito exala o ar, aliviado. Desprego a última tábua do barco, olho em volta, vejo apenas o horizonte, meu último retalho de pensamento tenta se agarrar a algo que lembra remotamente uma âncora.