Ah,
se apenas por uma noite o Diabo liberasse a Hebe e permitisse que ela se
ausentasse algumas horas do Inferno e viesse me visitar...
Estou
absolutamente certo de que a Hebe estranharia algumas coisas neste meu quarto
desorganizado, senão o quarto inteiro.
Sem
dúvida, sua primeira pergunta seria: “Mas para que tantos livros afinal?”
Ao
que, acanhado como sempre fui e seguramente intimidado pela imensa
loirice da entrevistadora, eu me limitaria a corar e, olhando servilmente o chão e,
cabisbaixo, abriria um desses meus meio-sorrisos evasivos.
E,
estou igualmente certo, sua segunda pergunta teria algo a ver com minha formação
acadêmica ou, talvez, para qual time de futebol torço ou, quem sabe, em quem
votei para presidente nas últimas eleições.
E
a cada pergunta, com esta minha voz tímida, de timbre soturno e escuro qual a
dum Plácido Domingo desprovido de talento, eu responderia nestes meus malditos
monossílabos que desde criança me impedem de sonhar sequer c’um laivo de
felicidade.
“Por
falar em criança”, a Hebe exclamaria com toda sua pujante animação, os olhos rutilantes
daquela peculiar faiscação de que só os cúmplices da
alegria têm o luxo de desfrutar, “por falar em criança, do que é que você mais sente falta da infância?”
“A
senhora quer dizer, qual é a minha mais vívida lembrança dos meus tempos de
menino?”
“Isso!”,
ela se entusiasmaria. “E não me chame de senhora, gracinha. Afinal não sou tão
velha assim, hehehe...”
“Bem,
Hebe”, eu começaria, erguendo com certo custo o olhar do chão, “o que mais sinto
falta da infância é o cheiro da minha tia...”
De
repente o rosto da Hebe ficaria completamente sóbrio e ela me fitaria com toda
a seriedade de que fosse capaz e me encorajaria, “hãhã...”, assentindo
repetidas vezes com a cabeça de vovó viquingue.
“Por
que você sente tanta falta do cheiro da sua tia?”
“Bem,
Hebe, acho que não sei explicar direito...”
“Faz
uma forcinha, vá! Diga ao menos que cheiro era esse.”
“Ah
sim, é verdade, posso tentar uma associação. Bem, minha tia tinha cheiro de
coisa guardada...”
“E...?”
“E
não era só o cheiro dela pessoalmente, não. Tinha também o cheiro da casa...”
“E...?”
A Hebe ia acentuando cada vez mais os gestos afirmativos com a cabeça,
procurando estimular minha memória, tentando me deixar à vontade.
“E
o cheiro que exalava dela e da casa dela era de coisa guardada...” Neste ponto,
não pude me conter. “Me desculpe, Hebe, é que nunca usei tantas reticências em
minha vida...”
“Não
faz mal, gracinha. Continue. Então sua tia cheirava a interior de guarda-roupa...”
“Isso mesmo,
Hebe! Sim, era esse cheiro que as coisas pegam quando ficam muito
tempo trancadas, entende? E a casa dela tinha muitos guarda-roupas, muitos
armários, e cada um deles guardava uma enormidade de roupas e badulaques,
entende? E quando eu e meus irmãos entrávamos na casa, aquele cheiro meio de
mofo, meio de naftalina que impregnava fortemente o ar em cada cômodo entrava
dentro da gente, pegava na nossa roupa, na nossa pele, e ficava grudado na
gente um tempão, até o dia seguinte...”
“E...?”
“E,
bem, minha tia também vivia guardada...”
Os
olhos da Hebe lampejariam.
“Vivia
guardada? Como assim?”
“Morreu
solteira, entende, Hebe?”
“Hãhã.”
“Provavelmente
virgem, entende?”
Hebe,
obviamente, arregalaria os olhos.
“Será?”,
franziria a testa.
“Tenho
quase certeza que sim! Minha tia não se socializava, como se diz nos filmes de
Hollywood. E era muito reservada. Quase arredia, pra dizer a verdade. E
ranzinza. Nunca conheci ninguém tão ranzinza...”
“Por
isso, você acha que ela não se casou e morreu virgem.”
“Hum-hum.”
“E...?”
“E
é isso, Hebe...”
“Hã-hã...”
Então
eu abaixaria a cabeça, meio constrangido por não ter mais o que dizer.
Mas
alguns segundos depois me ocorreria acrescentar:
“O
cheiro de roupa guardada da minha tia era mais ou menos como o desse seu casaco,
Hebe...”
Hebe
ergueria o braço que não estava segurando o microfone e farejaria o punho de
seu casaco de camurça marrom.
“É
mesmo!”, reconheceria naquele seu tom divertido em que tudo é motivo de riso. “Deu
pra sentir daí o cheiro?”
“Assim
que você entrou no quarto...”
“Hahaha!”, esbugalhando os olhos para a câmara, ela soltaria uma das suas tremendas gargalhadas, ainda estilo pré-facebook kkkkkkkk. “E
eu que pensava que as labaredas do Inferno dariam um fim neste fedor de mofo!”
“Pois
é, Hebe...”
“Gracinha!”