Há algo de rebanho no Face


Faz uns dias não esculhambo o Facebook e eis que a natureza me reclama. Fazer o que (sem acento no e), é essa a natureza que chamo minha.
Sei que um ou dois dos meus quase três leitores, se pudesse a mim dirigir uma palavra amiga, perguntaria “Mas por que atacar o FB afinal?  Aquela gente não está fazendo mal a ninguém, só querem ficar lá clicando aquele botãozinho “Curtir”. Deixa de ser chato!” (Estou certo de que haveria o indefectível ponto de exclamação. O pessoal é tão espantadiço hoje em dia.)
Então não posso me furtar a responder.
Defacto, os facebookianos não estão fazendo mal algum a alguém, tanto quanto a ninguém fazem mal minhas camisetas de alça guardadas na primeira gaveta da cômoda no meu quarto ou a meia-dúzia de ovos caipira há meses a apodrecer numa prateleira no refrigerador, ao lado das minhas garrafas de smirrnoff.
(Falando nisso, puxei, não imagino como, a sequidão etílica dos ingleses e o irracionalismo criativo dos russos, igualmente paus-d’água. Lamento pacas não ter sido vice-versa. Meus heróis literários continuam sendo os dylans thomas britânicos que invariavelmente deixam que uma cirrose lhes bote a cereja no alto do bolo da existência. Quanto aos russos, pobrezitos, quando a vodka acabou durante a campanha pela tomada de Berlim na Segunda Guerra, 30 graus abaixo de zero, muitos apelaram para os tambores de óleo de motor, agonizando três ou quatro dias até a morte. Outro dia, no próprio Face, um conhecido comentava que só não toma querosene porque estraga o esmalte dos dentes. Olha, não é declaração que se faça de público, coisa feia.)
Você talvez saiba que o poeta Arthur Rimbaud (não confundir com aquele senhor que filmou o Rambo) passou boa temporada da  juventude no inferno, estadia que, aos tenros 19 anos, viria a, como gostam de dramatizar os cronistas jornalísticos, "imortalizar" em verso. Rimbaud escreveu seu grande poema depois de viajar pela Bélgica e Inglaterra ao lado do amante, o também poeta Paul Verlaine, e pela zona rural da França. Verlaine trocara a esposa pelo enfant terrible de terríveis olhos cor de anil, que, dizem, derretiam corações à primeira vista.  O inferno a que Rimbaud se refere é a França, que chamava de horror, o que, visto estarem os campos franceses entre os mais bucólicos do planeta, deve ser surpreendente para os redatores da revista Cláudia. (Será que estou me referindo a Loyola Brandão?) Dizem que os franceses eram um bando de gente atrasada até o meado do século 19. Não posso garantir.
Facebook é outro nome pelo qual atende o inferno atual.
Como expliquei alhures, também acabei cedendo à tentação de abrir uma conta no Hades hodierno. E não se frequenta o Inferno, sobretudo um digital, sem maiores traumas, na pitoresca expressão dos atendentes dos pronto-socorros.
O quase imberbe Arthur escreveu seu Saison en Enfer sob o nada lírico tri-efeito do absinto, do haxixe e do ópio. Como não sou tão radical quanto Thomas nem tão suicida quanto Maiakovski, optei por viajar pelo Face – no familiar, singelo dizer da boa gente que lá se hospeda –, segurando um copo de boa altura munido do mais puro Balla 12 anos. Fazer o quê? A cada era seus poetas. (Até uns anos atrás sabia dizer essa frase em latim, os efeitos etílicos não são batatinha.) E nunca teria caso c’um poeta, qualquer que fosse seu sexo, mesmo que do porte dum Verlaine, bien sûr.
Querem saber o pior de tudo?
O pior de tudo é que o Face não é propriamente um inferno. Eu o chamaria de jardim de infância infernal, se me faço entender a contento. Um jardim de infância infernal e narcísico.
Mas, tendo já conhecido a moradia do diabo em outros carnavais, que é que fui lá fazer, afinal de contas?
Acontece que sou meio avoado. Não estou entre aqueles grandes e perspicazes escritores que prestam atenção em suas próprias experiências. Pode rir, sei que este comentário não é lá muito autolisonjeiro. Tudo bem. A franqueza sempre será mantida no alto da minha lista de prioridades literárias, custe o que custar.
Avoado que sou, tinha me esquecido de como essas redes de "relacionamento" podem se tornar, para corações sensíveis e frágeis feito o meu, um cavernoso pavilhão dum manicômio soft. Um manicômio onde a loucura raia níveis de desespero, pois, ao contrário dos hospícios do mundo concreto, ali se faz tudo de modo dissimulado. É um fazer que não ficamos sabendo direito como se faz.
(Me permitam uma reformulação, antes que seja irremediavelmente tarde. A referida casa de loucos é apenas a primeira impressão. Depois dum certo período de aclimatação você se dá conta de que foi jogado num gigantesco palco onde minúsculos personagens em forma de fotinhos encenam uma peça sem enredo. Peça sem enredo mas que tem um tema: os próprios personagens. Ainda não firmei convicção quanto à natureza artística de tal entidade. Não sei se a classificaria como experimentalismo do avant-garde ou imensa bobagem do que os críticos da segunda metade do século passado batizaram pomposamente de metalinguagem, glorificada à bestiologia pelos concretistas e outros deslumbrados. Também não sei se finalmente realizamos o projeto do teatro da vida real iniciado por Augusto Boal em seu exílio na Europa.)
Mas de que tema essa peça involuntária trata? Que fazem, de que falam, movidos por qual mote atuam os personagens?
O que sei dizer com alguma segurança por enquanto é que por trás desses portais de relacionamento corre um tipo de eletricidade surda que aparentemente deixa todo mundo em estado de excitação constante. Os personagens do grande teatro online simplesmente não conseguem ficar quietos e, assim, não  deixam ninguém mais quieto. Passam o tempo todo atulhando a tela dos “amigos” com reclames, "partilhas", "curtidas", piadinhas com que deparam enquanto navegam alhures, notícias que acham por bem trazer à atenção de seus parceiros e por aí vai. Jogam na frente do freguês anúncios de shows de seres obscuros, celebridades televisivas que flanam pelo depauperado showbiz brasileiro há séculos sem que alguém sequer se lembre de seus nomes, máscaras e fuças de quem você nunca ouviu falar, de quem você está cansado de ouvir falar, de quem você pensava e torcia para que já tivesse morrido no século 15. Quando não estão ressuscitando mortos-vivos, providenciam um desfile assoberbante, infindável, angustiante de citações de pensadores e escritores e poetas que, se fossem consultados quanto a ver seus pensamentos e versos expostos sem parcimônia naquela vitrina sinistra, certamente obrariam outros versos e pensamentos condenando ou zombando da arbitrariedade com que são ali citados, e aí sim teríamos um happening verdadeiramente metalinguístico.
O inferno facebookiano consiste dum interminável manancial de exibicionistas.
Exibicionistas a disseminar freneticamente o mais fantástico arsenal de irrelevâncias jamais visto deste lado da Via Láctea.
Você tem a impressão de estar vivendo dentro duma propaganda de Kolynos. Dentaduras reluzentes se abrem em esgares por todos os lados para fazer parte de máscaras grotescas dessa alegria fingida destes novos tempos desta gente infeliz e solitária e frustrada incapaz de mexer um dedo pra lutar contra a opressão da FRIVOLIDADE que nos massacra a todos, o PODER TECNOLÓGICO que nos usa como graxa para que suas rodas girem mais rápido e nos triturem ao nível de farelo, robôs obstinados em partilhar com amigos, centenas de amigos, milhões de amigos bobagens postadas por outros bilhões de amigos, personagens sem história nem rosto a largar comentários inócuos e ingênuos num quadradinho suplicando (de joelhos!) que você tenha piedade e clique no mágico botãozinho CURTIR e assim alivie por uns minutos o interminável enfado que suas vidinhas offline e sua intolerável solidão online lhes impingem.
O que mais me assusta nessas redes de relacionamento é a uniformidade. Todo mudo parece ter a mesma cara, a mesma ideologia, a mesma personalidade. Parece que ninguém dá uma opinião mesmo quando pensa estar dando uma opinião. Todo mundo concorda do mesmo jeito, todo mundo discorda do mesmo assunto. E, porco dio, dá-lhe o famigerado CURTIR! E como é patético o casalzinho que namora online e só “transa” online. E como são patéticos os amigos de infância que agora só se veem online. E como são tristes os irmãos que só se frequentam online.
Tenho esta horripilante impressão de ter mergulhado num angu existencial, de ter sido sequestrado por homenzinhos verdes que me enfiaram num mercado cibernético de almas frouxas em busca desesperada por uma conexão humana. Fiquei no Face alguns dias, esquecido de que sou incapaz de tolerar circos de espantalhos sorridentes, quaisquer que sejam, por meia hora. (Ei você aí que não sorri, você está a salvo do meu libelo, baby!) Daqui uns meses tornarei a me esquecer pela enésima vez e lá estarei novamente naquela rede de RELACIONAMENTOS com mais badulaques e mais "recursos" e mais "aplicativos" e muito mais propagandas de óculos e cremes antirrugas e lançamentos de paraísos imobiliários com 15 banheiros e 30 vagas na garagem e terraço gourmet ali pertinho do metrô que os gênios da era da informação certamente inventarão para manter a população mundial sob a mais extensiva, a mais profunda hipnose universal. Sabe o que é especialmente insuportável? Não? Então não se angustie mais, pois lhe digo agora mesmo. O que para mim é absolutamente intolerável é que milhões de pessoas se submetam tão bovinamente a um meio que as iguala a todas, passando por cima de suas individualidades e seus sonhos particulares e suas aspirações específicas E SEUS SENTIMENTOS ÍNTIMOS DE SI MESMAS qual o mastodôntico trator de um bilhão de cavalos e quinhentas mil rodas de aço do armagedão. Ou você pensa mesmo que uma citação de Nietzsche fará alguma diferença perdida neste fantasmagórico liquidificador das pessoalidades do mundo? E COMO SE AINDA FOSSE POUCO, esse medonho processo de DESPERSONIFICAÇÃO se dá sob o patrocínio do maravilhoso Ray Ban Aviador em vários modelos e em várias cores com 67% OFF e frete grátis!
Não pensem que esta diatribe tem algo de pessoal. NÃO TEM. O que tem é o que tenho em mim e que ninguém é capaz de tirar: minha independência. Certo, fica mais fácil quando você não tem patrão e não precisa fazer média com os vizinhos e não precisa pedir votos ou a simpatia de terceiros ou não precisa abaixar as orelhas para sei lá quem pense que você é isso ou aquilo e ficar negociando seus sentimentos para preservar sua reputação, seu bom nome na praça, essa sua imagem que você hoje confunde com uma marca de cigarros ou de refrigerante. Que esporro, né? Catártico, você diria? Será que deveria consultar meu analista antes de postar tamanha barbaridade? É o que você faria, de certo. Pois o Facebook e seus afins é o antro dos que não dão, NUNCA, ponto sem nó. Meus olhos veem aqui nesta tela -- e não acredito no que vejo -- milhões de diligentes aranhazinhas a tricotar suas teiazinhas para tecer a teiazona mundial que por fim haverá de enredá-las pateticamente.
Outro dia perguntei a um camarada que vive no Face “Que é que você faz tanto lá?” e ele me explicou que o barato, depois de postar comentários (que na novilíngua do tarado digital Zuckerberg os habitantes da Oceania facebookiana chamam de status) e imagens, é ficar esperando os amigos “curtirem”. Fiquei impressionado (pra não dizer em estado de choque), não tanto pela ingenuidade desse ato, atividade, operação ou sei lá que nome posso dar a isso, mas pela candura com que o rapaz abriu o jogo. (Não, para ele não se trata dum jogo, muito pelo contrário.) Uma bobagem que me deixaria envergonhado é, para ele, atitude corriqueira. O que a mim me leva a temer que no futuro a humanidade seja destituída de toda capacidade crítica, para o novo ser digital parece tão natural quando dar bom-dia aos vizinhos.
Participar do Face me dá vergonha, really. Me ver perdido no meio de milhões de rostinhos anônimos, ó Maria Imaculada, me deixa constrangido. Ser um a mais, servir de massa de manobra a contribuir para a trilionária fortuna dum sujeito que sequer é brasileiro me dá um nó no estômago. Me sentir idiota me dá falta de ar, a impotência de servir a um superdeus tecnológico me dá essa sensação de que eu e o mundo que conheci estamos chegando ao fim.
Não sei se você sabe, Arthur Rimbaud um dia deixou de ser poeta e virou traficante de armas. Não sei se você sabe, enquanto poeta, Rimbaud não só fazia poemas escatológicos mas era um escatologista avant la lettre, no vocabulário e também na feitura, tendo escrito alguns versos com as próprias fezes. Não, não estou preconizando a metodologia escatológica como salvação para o oceano de pseudopoesia sem água nem açúcar, sal ou gordura, sangue ou suor que abunda na rede.
Rimbaud é considerado um dos grandes poetas do mundo ocidental, embora um ou outro revisionista teime em desafiar a qualidade de seu trabalho. Como criador que sou, não estou entre tais revisionistas. Me aferro ao (péssimo) conceito que Rilke tinha de críticos literários.
Que é que Rimbaud tem a ver com o Facebook? Graças ao mau deus, absolutamente nada. Ou, se preferir, tem a ver por exclusão. Rimbaud está tão ligado ao Face quanto os bilhões de blogs que pululam pela internet se associam à literatura. Tal como no Face, blogueiros pretendentes a vates estão interessados é na teia que os une a todos num só Grande Movimento Criativo, essa imensa teia impessoal de escreventes que se afagam, que trocam entre si loas, beijinhos, incentivos (Go! Fulano! Go!), bilhões de pequenas máquinas de fazedura de verso e prosa narcísica em que a literatura deixa de ter qualquer importância para ceder todo seu lugar – que, para os que dela necessitam tanto quanto o oxigênio, é, e não poderia deixar de ser, sagrado – a um faz-de-conta pseudo, falso, infantilizado.
Pobre geração facebookiana. A meninada não tem ideia do que seja vida privada. A intimidade virou pó, soprada rumo ao cosmos pelo vento tecnológico. Um novo ser está sendo forjado sob a teia de assanhados morbidamente solitários e autocentrados. A moçada acha perfeitamente natural a autoexibição cibernética e a fuçação no que é alheio de direito. Sofrem de inédito mal em que necessitam estar continuamente interligados por um cordão umbílico-digital e temem morrer de falta de ar se ficarem meia hora longe desse estranho rebanho cibernético. É um mal letárgico, preguiçoso, acrítico, em que os novos robôs devoram e se deixam devorar pela obsessão tecnológica que, para Heidegger, é a perdição. Estamos testemunhando o nascimento da geração da individualidade despedaçada.
Será que será cada vez pior daqui em diante?
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