Antes de esquecer

E a fera me continha entre seus braços, seus braços musculosos, seus braços díspares, que ora intensificavam, ora diminuíam a pressão só para tornar a me comprimir com suavidade, eternizando um movimento cíclico que no início me levou a temer e logo me induziu a esperar um tipo de exercício afetivo. Então a certa altura senti que algo no bestial corpo aos poucos ia cedendo a tremores que pareciam nascer duma profundeza insondável, a brotar em forma de contrações involuntárias que se iam aflorando a contragosto, confrontadas por um fatigante, e tíbio, esforço de dissimulação. E focava a fera no meu um olhar dúbio, olhar confuso, olhar que só olhos cegos podem emitir e que por momentos de primitivo calafrio delirei brotasse, qual flor inodora e tímida, da mais estapafúrdia das ternuras, imaginando, ao mesmo tempo, vislumbrar no focinho de múltiplos e disformes furos, de que por vezes se insuflavam bolhas diáfanas, multicores que num átimo me remeteram a uma infância que não era minha, arreganhos espasmódicos entre os familiares, incertos, hesitantes impulsos de seus instintos de predadora à beira dum arrependimento tão mais pernicioso quanto pudesse delatar que algures em seu interior imenso talvez houvesse restos apodrecidos de humanidade e o sangue a escorrer por entre os grotescos dedos de suas patas pegajosas, invocar a mais inédita possibilidade de amor e clemência.