Enquanto tento acordar

É feriadão e todos abandonaram a cidade.

Não há viv'alma nas ruas, na língua antiga de que padeço de saudade. Às margens das vias, carros jazem adormecidos. Ônibus e caminhões não emporcalham o ar da fumaça negra da morte nem fazem vibrar meus frágeis tímpanos à frequência do desespero.

Nas calçadas, ninguém, indo ou voltando, perdido ou a se procurar, zanzando ou com o rumo certo do compromisso assumido. Estou só, estou livre dos entregadores, das manicures, das secretárias, das cozinheiras que até poucas horas atrás faziam pares com os garçons, das donas de casas ávidas por ir ter com seus malditos quitandeiros para a confecção do almoço de maridos e filhos quase prontos para a escola.

Estou tão só, que me ocorre dar um giro pela Paulista.

E ao chegar à Paulista, me lembro dos fatos ocorridos recentemente e... por que não? 

Me ocorre fazer uma manifestação.

Olho em volta. Ah, ali está uma papelaria. Para lá caminho. Como esperava — não há ninguém. O feriadão é de fato eficaz em enxugar as gentes da face do mundo.

Entro na papelaria, acho uma cartolina branca. Depois, um pincel atômico (que de atômico deve ter só o nome).

Na cartolina escrevo em minha letra de aluno relapso: PROTESTO! E, com um barbante, penduro a cartolina, agora convertida em cartaz, no pescoço.

Saio para a avenida. (Você não faz ideia de como andar absolutamente só pela Paulista é estranho. E inspirador.)

Passo em frente ao MASP, logo cogito me pôr tête-à-tête com um Picasso, talvez um Renoir, olhar um Klimt como o primeiro Klimt foi olhado a primeira vez. Talvez tome "O retrato de Suzanne Bloch" e faça dele picadinho. Desde criança sonho em fazer picadinho dum Picasso.

Mas a ideia de entrar no museu de pronto me aborrece. Vim para fazer minha manifestação, não destruir o mercado de arte.

Ajeito o cartaz no peito.

PROTESTO!

Ergo um braço, ensaio um grito.

PROTESTO!

Faço uma careta não de raiva, mas de determinação.

PROTESTO!

Não tem ninguém por perto, muito menos equipes de televisão. Mas imagino minha triste figura nas telas de tevê em milhões de salas em milhões de lares.

PROTESTO!

Protesto contra o governo, contra o mundo, contra a vida, contra meu passado e meu futuro, protesto contra meus pensamentos, meus sentimentos, protesto contra mim mesmo.