Comecei a mentir muito cedo.
O dia em que comecei a mentir está aquém do
alcance da minha memória.
Nem sei se foi num dia específico. Terá havido um
Dia da Minha Primeira Mentira? Desconheço. E também desconheço se inventei uma
mentira já acabada e pronta para dar a largada na minha saga de mentiroso, num
instante definido, ou se ela, Minha Primeira Mentira, teve gestação paulatina
qual a dum feto maligno, se desenvolvendo ao longo de dias ou de semanas ou meses
dentro da minha cabeça, em silêncio, até que, chegada a hora, a liberei para o
mundo contando que este se encarregasse de desmascará-la (ou não).
(E ainda hoje não firmei jurisprudência quanto à
capacidade, ou volição, ou mero interesse, do mundo em desmascarar as mentiras
de cada mentiroso do mundo.)
Hoje me pergunto: aquela minha primeira mentira,
a terei obrado para mim mesmo ou será que a criei especialmente para alguém por
um motivo igualmente especial?
Ah, como queria visualizar aqui dentro de mim a
gênese desta minha gravidez de lorotas.
E, não sei se mais importante:
Quem terá sido a Primeira Vítima da minha longa
carreira de mentiroso?
Certo, depois de Freud, Melanie Klein e outros
bambas do inconsciente, a resposta não requer lá grande reflexão. Vamos parar
com frescura: minha primeira vítima fui eu mesmo. A quem dirigimos todos os
atos malignos e perversos que praticamos a cada segundo, afinal?
Quanto ao tema da mentira propriamente dito,
esse nem imagino. Fico aqui sozinho matutando: pelo que poderia valer a pena ter
mentido lá naquele dia perdido em algum ponto depois do meado do século 20? Terá
tudo se resumido a fazer mais um papel de bobo, dentre tantos que fiz até hoje,
para iludir meu pai? Me daria o imenso trabalho de mentir só por isso? Não,
pensando bem nesta tarde gélida de julho em que chego a temer virar estátua de
sal até o fim da tarde, não, nunca menti para fingir a meu pai que amava minha
mãe muito, mas muito mais que ele. Pelo que posso me lembrar, procurei ser bem claro
a respeito desde o início. E nem precisava fazer lá grande teatro. Duvido que meu
pai tenha amado minha mãe. Naquela época – nem em nenhuma outra – as pessoas não se
amavam. E terá sido verdadeira a recíproca? Não tenho ideia. Tudo que sei é que
minha mãe era muito, mas muito mais afetuosa que meu pai. Seja como for, nada
disso garante o que quer que seja. Não há garantia alguma na minha vida, salvo
a de saber que ambos apenas se toleravam (durante o dia), mal se suportando o
resto do tempo. Sexo, o faziam mudos feito duas portas. Jamais escutei um
gemido ou uma declaração de amor ou um resfolegar mais entusiasmado. Pensando
bem, não há nada mais distante da minha família que entusiasmo. Mesmo assim,
sei hoje que amava minha mãe desesperadamente e amei meu pai igualmente.
O que me encafifa ainda hoje – o que me encafifa
cada dia mais e mais e mais –, depois de tantas décadas tão vagarosamente, tão
tempestuosamente passadas desde minha primeira mentira, é a facilidade com que
me acostumei a mentir. Me lembro de que até a adolescência imaginei que minhas
mentiras passariam mais ou menos naturalmente com o tempo, assim como
desapareceram minhas espinhas de moleque. (O medo de escuro, não – esse tenho
até hoje.) Tal como ocorria com outros sentimentos e outras situações, pensava
que a vida dispunha dum mecanismo próprio que se encarregaria automaticamente
de dar cabo naquela terrível necessidade de mentir.
E passou a adolescência e entrei na idade adulta
e fui amadurecendo (bem, fui é força de expressão) só para me dar conta, ora
anestesiado pela constância com que minto, ora temendo ser acometido por um
estado de total terror por ser tão indefeso e inerme ante minhas mentiras, de
que venho mentido cada dia mais, cada instante mais, para mim mesmo e para quem
quer que esteja por perto, em pensamento e diante do espelho, venho mentindo
mentirosamente essas minhas mentiras que há milênios deixei de ver como
mentiras, mentiras que se criam e recriam por geração espontânea, à minha
completa revelia, sem que eu saiba para que nem por que, mentiras quentinhas,
mentiras deliciosas, mentiras fresquinhas de Piracicaba, de São Paulo, dos
vilarejos ao sul cujos céus jamais foram riscados por foguetes rumo a Marte nem
por estrelas cadentes.
Não sou como a maioria que mente para obter uma
vantagem, emocional ou material, real ou imaginária – minto porque preciso me
iludir. Minto porque gosto de me iludir. Minto porque meu esporte predileto –
não, meu único esporte – é me iludir. Não sei, nunca soube e tenho raiva de
quem sabe aceitar as coisas como as coisas são. Disso estou plenamente certo.
Desde aquele meu primeiro dia. Desde aquele fatídico instante em que aquele
maldito espermatozoide de papai, que não amava mamãe, deu de cara com aquele
nefasto óvulo de mamãe, que não amava papai. E minhas razões para mentir nem
são tão sérias assim. Às vezes me pego com vontade de inventar uma mentira
meramente por ver alguém andando na rua totalmente alheio ao que se passa no
céu acima de sua cabeça, céu desprovido de foguetes em direção a nada, céu que
seria céu mesmo se fosse rosa-choque.
Isto posto, fico cá no meu canto matutando, será
que existe gente sincera neste mundo?
(Tenho a ligeira impressão de que deitei tudo a
perder colocando essa questão. É cristalinamente claro que existe gente sincera
neste mundo. Quer prova? Vá lá fora, dê alguns passos pela calçada e você
cruzará com inúmeras pessoas, olhadoras do céu ou do chão, para quem o mundo é
toda a verdade de que elas precisam.)
Minto porque o único instante em que me sinto
razoavelmente bem é quando estou me equilibrando na linha fina entre a paz e a
calamidade, cego de euforia, surdo de agonia, o peito prestes a arrebentar da
gana de êxtase, o coração paralisado de dor e alegria.
Minto porque a vida é uma mentira.
Não, isso não me basta.
Nada me basta e por isso minto e hei de mentir
até a vinda da minha verdade.