Da série "Lições que não sei aprender" VI

Segundo mamãe, bebê, agarrava sôfrego a mamadeira e soltava o berreiro. Nesta ordem. E, munido da mamadeira entre as então mãozinhas, engrenava a choradeira horas a fio. Depois de meses de angústia, encafifada com esse comportamento doido, um dia descobriu mais ou menos sem querer – como as maiores descobertas da humanidade – que o choramingão só fechava a matraca quando a luz era apagada e a porta fechada e este servo que vos escreve diuturnamente no desabar da noite finalmente deixado sozinho com sua tépida mamadeira e seus suspiros que já então prenunciavam mais um existencialista sem solução.
Foram sete anos trocando aboborinhas com o dr. G e o crânio não passou nem a cem léguas deste eu profundo – pessoano, lacaniano que fosse. Se tive insights ao largo e ao longo foram por meu próprio esforço. Como calculei aqui um dia, dava pra comprar um apê de um dormitório nas proximidades da Consolação. Se seu negócio é grana – da alta, não aqueles trocados que mal dão pra pagar a mensalidade da Net –, seja psicanalista e enfie a faca em seus clientes (pacientes? nunca sei como chamá-los). Seu “renome” crescerá na medida que esfolar seus analisandos. Mas cuidado – esta recomendação não vale para psicólogos. Os que conheço são – sem exceção – mortos de fome. A maioria acaba “atendendo” de graça – pra eles, não pra você, que ainda tem de pagar o metrô – ou em troca dum pacote de bolachas maisena. Tem de ser meio filho da puta pra faturar o bastante pruma camionete Toyota zero neste mundo de predadores.
Levei décadas, décadas, décadas e saquei: meu papo é mamar, não há dúvida, mas mamar sozinho. (Não foi propriamente uma sacada e sim um aprendizado gradual. Os crédulos têm razão quando defendem que existe vida após a morte – também me recuso a aceitar que deus nos agraciou com apenas uma chance de levar uma sova – precisamos apanhar mais vezes – de preferência, inúmeras – para os mais felizardos, infinitamente. Quem sabe então o demônio declararia satisfeita sua gana de dor. E humilhação.)
Gosto de mamar.
Gosto de mamar de porta não apenas fechada mas trancada. Mandei instalar trincos, sete, de cabo a rabo, vários tamanhos e cores, uns fazem craq, outros estalam crip, nem assim consigo me sentir suficientemente a salvo do mundo.
Se fosse só o mundo.
Em frente da tevê na sala, um sofá e uma poltrona. Esta destinada à mana. No sofá papai sentado (canto direito, perto da porta, exatamente onde teria o primeiro infarto dez anos depois; tá doendo muito? perguntei me perguntando se devia imprimir mais comiseração na voz, receando soar afetado; ele, todo crispado no sofá, fez que não), mamãe deitada, eu encalacrado entre ambos, pés no colo de papai, cabeça pousada na bunda de mamãe.
Locutor do Repórter Esso: Jânio renunciou ao governo.
Mãe, que é renunciou?
Sei lá.
Locutor do Repórter Esso: o presidente não conseguiu estabelecer uma relação harmônica com o congresso nacional.
Mãe, que é harmônica?
Sei lá. Pergunta pro teu pai.
Pai, que é harmônica?
Papai deu de ombros, me encalacrei mais ainda entre os dois.
O escuro hoje dispenso – a mamadeira há de se acompanhar dum livro ou do computador. Décadas, décadas, décadas mamando em butecos, barzinhos, padarias, muquifos mil verde-anil, só e/ou não, como pude. As escolas precisavam parar, rever seus métodos didáticos, arejar as cabecinhas de profes e diretores, ei! existem moleques que simplesmente não nasceram pra seguir e muito menos – palavrão à vista – socializar. Caio em “estado” de melancolia, fico abanando a cabeça sob o ataque de incontáveis cutucões mnemônicos. Como pude? Não consigo crer que fiz o primário, o ginásio, o colegial rodopiando em câmara lenta no meio duma manada de símios sendo amestrados por chimpanzés sob caminhões de princípios e motes e lições e exercícios e normas que só lograram que me desesperasse ansiando pela solidão em que finalmente pudesse tentar que meus próprios pensamentos se elaborassem e meus ouvidos não ensurdecessem com minha própria voz e meu nariz não se retorcesse sob meu próprio cheiro.
Não nego aos donos do mundo o direito de fazer dele o que lhes apetecer. Não nego perante mim mesmo, obviamente – não degringolei tolo a ponto de enfiar a cabeça num buraco, não enlouqueci a ponto de me guiar por minhas fantasias. E eles vêm fazendo desde que eles e o mundo existem, não é mesmo? Tudo a que aspiro – hoje – é o direito de decidir que mundo quero pra mim e ter um mínimo de controle sobre ele. Na medida do possível. Não do impossível. O problema do presidiário não é estar trancafiado – é saber que lhe tiraram o poder de deixar de ser quando lhe der na telha. 

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