A vida não me fez muitas promessas. Nunca
jurou que seria amena. De todas as grandes promessas que fez, nenhuma ainda se
cumpriu. Nem as pequenas.
Estava pensando em fazer um poema.
Comecei perpetrando a introdução acima.
Meus quase quatro leitores e meio haverão
de convir que é um bom introito.
Me animei. Tão raramente tenho coragem
bastante para ousar algo de métrica, um pouco de ritmo, um tico de rima.
Quando ando pelas ruas com minha cadela
que ruma sem rumo tanto quanto eu meus pensamentos vão rimando à minha revelia.
Será isso um fenômeno? Serei, de minha indigna parte, eu?
Quase otimista, meus ouvidos escutaram imaginariamente
os acordes iniciais de Serenata para
corda, Dvorak. Tão raramente ouço Dvorak. Não porque não goste, obviamente.
Mas por falta de oportunidade. Os Três Grandes Patetas Beethoven, Bach e Grieg
me assoberbam o tempo todo, praticamente não sobra espaço para os outros abestalhados
geniais em minha cabeçorra atarantada. Pode torcer seu narigão à vontade ante
tamanha heresia. Até podia explicar mas estou morrendo de preguiça. Literalmente.
Ah, se esta minha preguiça que me enrijece os membros e me pesa as pálpebras me
abrisse o coraçãozinho que a mulher que amo encouraçou de pragmatismo.
É tanta minha preguiça, que não me
importam as promessas que a vida me fez. Se é que as fez. De tanta preguiça,
posso ter me confundido.
De tanto rumar sem rumo, posso não ter
entendido.
Abro a porta, que mal tenho ânimo para
bater, desabo no sofá qual o índice Bovespa depois da reeleição da Dilma. Zezeí
me imita, se metendo entre minhas pernas. Minha cabeçorra grávida de
pensamentos moribundos pende sob o peso dum cemitério. As pupilas vagueando por
sob as pálpebras emperradas identificam uma carta ao pé da porta que ficou
encostada.
Será dela?
Claro que é. Quem mais me escreveria?
Sinto meu pé direito se agitar. Parece
alvissareiro. O dedinho da mão esquerda começar a tremer. Será já o bastante? Experimento
retesar o sartório (aquele musculão da coxa, o mais longo do meu corpo). So far
so good. Espero as pálpebras completar seu descenso completo, relaxo os ombros,
me concentro.
Após uma breve série de gemidos em si
bemol, estou em pé.
Afiro a distância que me separa do
envelope. São dois metros e vinte, no máximo. Não deve doer muito. Pego entre o
polegar e os demais quatro dedos aquele bojo de banha que a maioria de nós carrega
na parte inferior lateral do lombo, crispo os lábios e arranco. Meu pé esquerdo
tenta tropeçar no calcanhar do pé direito, minha boca se abre o suficiente para
emitir um filho-da-puta, o vagau se endireita e avança uns centímetros.
Meia dúzia de passinhos arrastados depois,
tenho o envelope ao meu alcance. Isto é, falta me acocorar.
Vocês aí fora, quase tão humanos quanto
eu, provavelmente sabem que ninguém em sã consciência deve se aventurar num
acocoramento se tiver mais de nove anos de idade. Já ouvi falar de casos em que
neguinho teve de ser levado ao hospital travado na posição agachada. Meu cóccix
estremece num calafrio.
Mas não será desta vez que a natureza irá
me internar num corredor de pronto-socorro junto com centenas de outros
kamikazes dependentes do SUS. A argúcia ainda faísca em meu cérebro privilegiado.
Um plano de pronto se desenha ante meus olhos. Vou chutar o envelope para perto
do sofá. Então retorno, desabo novamente no dito cujo e pachorramente apanho o
desgraçado com meus dedões adelgaçados de inteleca dado a arroubos musicais e
estamos conversados.
Manobro as pernas lentamente, fico de
frente para a meta. Estreito as pálpebras igual o Neymar faz antes de sapecar o
gol milimétrico na gaveta do goleiro adversário. Calculo. Ergo a perna direita
meio centímetro mais. Aquilato. Baixo a perna dois milímetros. Estimo. Tá no
papo. Às vezes esse meu perfeccionismo me irrita. Relaxo o sartório. Pimba! Não
devia ter aposto o ponto exclamativo.
O envelope some dentro daquele vão negro entre
o chão e a poltrona muito além do sofá. Ou seja, se fosse um chute de falta, a
bola voaria para fora do estádio.
Nem me dou o trabalho de crispar os lábios
novamente. Crispar os lábios requer esforço, não sou bobo de jogar energia
fora.
E, na certa, o carteiro deu bobeira mais
uma vez. Enfiou o envelope na porta errada. Só pode ser cobrança. Cobrança pro vizinho. O
sujeito vive recebendo carta de banco. Caloteiro duma figa.
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