Rotina

Estou pensando, acho que vou contratar um leitor.
Tarefa: ler os livros que não consegui ler até hoje e que sei que nunca mais conseguirei ler e depois me descrever e explicar um a um.
Estou fazendo a lista. Por alto, calculo setecentas obras. Se eu e meu leitor-funcionário cobrirmos um livro a cada dois dias, o mister estará cumprido em pouco menos de quatro anos.
Acho que posso sobreviver mais esse período, se me incumbir dessa missão. Dizem que algum senso de realização ajuda a esticar a vida. Não quero esticar a vida (se pudesse, esticaria a das espécies em vias de extinção, as indefesas, a perecer nas garras de gente incapaz de celebrar a existência e do excesso de população e dos frequentadores de rinhas, torneios e outras barbáries que historicamente pertencem ao século 19). Não, não quero esticar nada. Só quero conhecer os livros que por falta de tempo não pude ler. E por falta de paciência também – quase sempre estive ocupado demais tentado levar na maciota esta minha vidinha besta que me coube – e quebrando fragorosamente a cara no processo.
Ler não é nada sagrado. Ler não é nada espetacular. É nem mesmo missão. Ler é apenas um dos modos disponíveis para enganarmos a desgraceira. A diaba. A malfadada. A encrenca. A peste.
Tenho inveja de quem dispõe de meios mais eficazes de passar o tempo e se distrair do grande tédio de existir. Um assassino, por exemplo. Mesmo um ladrão. Mas que seja dos bons, i.e., não se deixe apanhar pelos meganhas para acabar confinado numa cela de três metros quadrados com dezenas de outros aventureiros cuja aventura deu co’s burros n’água. Um assassino ou um ladrão ou um aventureiro qualquer é apenas um sujeito que não se resignou ao fatalismo de ser mais um no meio da manada ou entrar na fila para ficar sempre nos últimos lugares. Esses caras merecem respeito. Podiam ser como a maioria de nós, que trabalhamos quarenta anos para ganhar a aposentadoria e então nos aposentamos e então torramos mensalmente nossa pensão no balcão da farmácia, até que nossos compadecidos rebentos nos internem à força num asilo abarrotado de decrépitos.
Os marginais aventureiros têm esse talento para dar um passo maior que a perna. São bons na realização de ditos populares – o que não é pouca porcaria. Digo, os marginais aventureiros bandidões. Já os meia-boca, escaladores dos montes everests e chatices que tais, esses não valem as indumentárias transadas descoladas que vestem. Todo dia a mídia quer abrir nossa boca de espanto por um tonto ou um bando de tontos mortos sob uma avalanche de neve num pico qualquer. Ora, quem mandou subir a droga da montanha in the first place? Se aqui embaixo a morte já faz parte, lá em cima, sob vinte graus negativos e a fúria de ventanias a 200 km por hora, morrer devia ser o primeiro item do cardápio. Os parentes e amigos amarfanham as caronas diante das câmaras de tevê lamentando a “tragédia”. Deviam é estar contentes por seus heróis. O barato não era desafiar a morte? Pois então desafiaram. E perderam. Tudo dentro das regras. Dar uma de vítima depois da partida é patético.
O extremismo do bandidão nada tem de esportivo. O bandido, o bandido genuíno, não está brincando de jogar com a vida, seja a própria, seja a de outrem. O bandido bandido no duro não é extremista nem radical. Não está interessado em aparecer no jornacional se gabando dum recorde boboca qualquer. O bandido pra valer nem imagina o que seja se gabar e não tá nem aí pra adjetivos. Existindo não para fingir nem para invejar, sabe, imensamente mais que qualquer poltrão metido a escritor, que o substantivo é o que interessa.
Se tivesse paciência, estenderia em uma ou várias páginas cada parágrafo deste texto. Cada uma delas é não uma pepita mas um veio inteiro cuja exploração parece valer a pena a devoção duma vida inteira. Sou um perdedor de pepitas. Sou um perdedor de tesouros. Como escrevi um dia, um perdedor de estrelas.
Um perdedor de mares e oceanos.
Rimbaud aposentou a pena de ganso aos dezesseis. A academia de letras francesa nunca soube o que seria tê-lo dia após dia no chá das tardes parisienses. Plus important, Arthur frustrou todo um exército de críticos e professores literários já prontos para – como é que eles gostam mesmo de dizer? – debruçar sobre a obra do infante terrível. Tenho cá pra mim, a grande banana que deu aos liturgos e ritualistas foi sua maior obra. Aos dezessete, o promissor fils mercadejava armas na África, para desaforo e frustração dos parasitas que se aproveitam da arte e do talento alheios.
Rimbaud é o caso mais intrigante e mais famoso de aposentadoria literária precoce. E, claro, sempre fica a especulação “Quantos escritores geniais terão existido neste mundo que nunca escreveram uma linha sequer e assim não puderam ser descobertos pelos críticos parasíticos?”
Já o número de escritores que pararam de ler em algum ponto de suas vidas é bem maior. Quem me ocorre agora, digno de menção, é Heidegger, que quando parou já gozava do prestígio de grande pensador e carregava o fardo de ser nazista. Incontáveis outros devem ter deixado de abrir livros cedo sem que ninguém tenha tomado conhecimento. Desses, a estrutura acadêmico-parasitária jamais dará falta.
Marcola, aquele chefão ou ex-chefão do PCC, é um sujeito de sorte. Há uns anos declarou numa entrevista ter lido 3 mil livros depois que o trancafiaram num presídio de segurança máxima. Escrevi há anos alhures que fiz as contas e deduzi que seria impossível tantos assim. Com boa vontade, o bandidão-inteleca pode ter lido não mais que 500. Mesmo assim é leitura muito maior que a de 99 por cento das pessoas normais leem em suas existências de baratas e ratos viciados em imagens televisivas que se trocam de segundo em segundo. Marcola acrescenta que está lendo Dante. Encerra a entrevista c’uma citação do poeta italiano. Taí, seria um bom candidato para minha vaga de leitor particular. De quebra, podia me dar umas aulas de como levar uma vida de crimes sem ser espicaçado de segundo em segundo pela culpa do pecado original.
Ofereço o básico: quartinho nos fundos com banheiro privativo, três refeições diárias, uma folga semanal, trabalho depois das 17 contado como hora extra, um armário na cozinha pra guardar livros particulares. Salário mínimo a combinar. Alemão, francês, italiano e inglês (não britânico, please) são um plus. Peço fotos de rosto e corpo inteiro, de frente e de perfil. Mulher bonita, salário dobrado. (Vã esperança, bem sei. Mulher bonita inteligente é o que mais falta no mercado.)
Enviar a lista de leituras até a presente data e currículos à redação. Não precisa especificar a escolaridade. Os sem diploma terão preferência. Criminosos e congêneres favor indicar nome da facção, data de entrada (de saída não precisa, estou ciente de que é via de mão única, hehehe), ações mais espetaculares cometidas até hoje, tempo de cana, outros detalhes à volonté.