In the jungle the lion sleeps tonight


Escrevi há tempos sobre um tal de Paul Walker, americano que estrelou uma longa série de filmes em que uma cambada jogava tempo fora apostando corridas de carro por ruas sem fim e que morreu num acidente de carro. Fosse eu articulista da Folha de SP, aporia um “ironicamente” ao último verbo do período. Em geral não tenho sorte em muitas coisas na vida. Uma das poucas que tive foi nunca me atrever a colaborar em jornais e revistas para não me ver obrigado a mentir descaradamente ao meu eventual público.
Agora quero falar de outro americano. Adivinharam: o dentista. Aquele que atende pelo epíteto Walter Palmer.
Jesus Fucking Christ.
Leio nas mídias que do dr. Palmer viajou até um parque nacional do Zimbábue onde a caça é proibida, atraiu um leão para fora dos limites do parque e o alvejou c’uma flecha. O leão agonizou durante infindáveis 40 horas e só então o caçador se dignou a por um fim no padecimento do animal. A Veja online estampa uma foto do doutor, acompanhado de outro sujeito, postado atrás do cadáver da fera. O corpo do leão é exibido cuidadosamente arrumado sobre um monte de terra de modo que sua cabeçorra está apoiada na posição ereta, como se ainda estivesse vivo.
Os dois energúmenos assassinos sorriem para a câmara, inchados de orgulho.
O artigo informa ainda que no site da Casa Branca há um abaixo-assinado (ou “petição”, segundo o crânio que traduziu o texto de alguma publicação americana, provavelmente usando o Google Translate) pela extradição de Palmer para o Zimbábue e subsequente julgamento.
Puta que pariu.
Notícias desse tipo sempre me remetem a Hemingway e seus romances recheados de fantasia e miticismo em que sub-heróis tentam provar algum valor pessoal a si mesmos e a seus amigos e namoradas lutando contra a natureza no sentido amplo da palavra: a que determina a nossa própria natureza, índole e caráter e a exterior que nos condiciona. Hemingway foi um homem típico do século 19 e nunca deixou de sê-lo, mesmo em 1961 quando, também tipicamente, acabou com a própria vida desferindo um tiro de espingarda dentro da própria boca. Seus livros descrevem touradas e caçadas antológicas de que qualquer macho da época gostaria de ter participado. E os protagonistas homens engoliam inacreditáveis quantidades de vinho e scotch na esperança de enfeitiçar a fêmea (em geral, uma única, disputada pelos homens).
Tinha sete anos em 1961 e visitávamos o sertão do Estado de São Paulo pelo menos duas vezes por ano e cada uma dessas viagens era uma incursão passado adentro no DKW branco e cinza de papai, nossa máquina do tempo particular. Nas seguidas visitas à fazenda da família e às casas de tios e primos aprendi a reconhecer e compreender que histórias individuais podem ter ritmos distintos. Viajar significava se deslocar não apenas geograficamente mas também ao longo das décadas. Muitos dos meus tios viviam em cidades que cultural e economicamente não passavam de aldeias quase medievais, e, temporalmente, simplesmente não passavam.
Lembrança que não se apaga da memória: certa feita chegamos à casa duma parentada em Américo Brasiliense e um primo me chamou a um canto. “Olha!”, exclamou altaneiro, querendo impressionar o caipira da cidade grande. Olhei. Era um balde, desses de vinte litros usados para lavar roupa, cheio até a metade duma extensa variedade de passarinhos abatidos. Eram de diversos tamanhos, cores e tamanhos de bico. Em seguida ele me levou até seu quarto para me mostrar sua eficiente, precisa espingarda de chumbo.
Fui crescendo aprendendo as intransponíveis diferenças e um dia me dei conta de que nem tudo pode ser exigido de todos indistintamente. Não podemos esperar atitudes do século 21 dum sujeito vindo ao mundo e dele se despedindo no século 19. O velho “o tempora o mores” de Cícero provavelmente terá aplicação legítima até a última geração da raça.
Agora, que é que se faz com milhões de pessoas que a cada ano pagam ingresso para assistir a touros sendo torturados em rodeios ou requintadamente massacrados em touradas ou galos a se atacar ou cães a se trucidar em rinhas? Sob apupos e ovações e relinchos duma audiência de neandertais que nada ficariam a dever em selvageria à plateia que frequentava os duelos mortais de escravos na Roma antiga?
Vira e mexe leio nas mídias gente que se pretende inteligente como a gente tentando passar adiante a lorota de que nossa crueldade com os animais faz parte da nossa natureza tanto quanto qualquer outro de nossos atributos antropológicos e portanto deveríamos tomá-la absolutamente. Para esses caras evoluímos pouco ou nada até hoje. As batalhas de vida ou morte que travávamos contra seres formidavelmente terríveis, monstros quase míticos que sobrevivem apenas na ficção e em nossa memória atávica, ainda nos significam algo hoje. Não se deram conta de que somos os vencedores em nossa milenar missão civilizatória. Não perceberam que enfim derrotamos a natureza. E a devastamos a tal ponto, que infringimos os limites da nossa própria devastação.
Inacreditavelmente, reis de Espanha insistem em passear pela África a pretexto de distrair suas amantes em safáris sanguinários.
Inimaginavelmente, países que se proclamam evoluídos como os Estados Unidos e o Canadá e a Inglaterra ainda mantêm legalmente temporadas de caça a ursos e raposas e veados.
Absurdamente, Hollywood ainda propaga em seus filmes a noção de que abater animais silvestres a tiro é okay, desde que Johnny & Suzy adquiram uma licença para matar no bureau apropriado.
Dear god, o dentista teve a pachorra de viajar dos EUA à África meramente para imolar um ser tido até então como mito entre nativos.
Walter, por que simplesmente não fez como a maioria de seus patrícios que freak out e empunham a pistola de Dirty Harry e saem por universidades e escritórios dando cabo de antigos colegas?
Jesus fucking christ, Walter. Que foi que o lendário leão do Zimbábue te fez?
You mother fucker douchebag, gente inteligente como você é a prova de que não temos salvação.

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