Contrição dos infernos

Manhã vazia do sábado cheio de fantasmas, inebriado da letargia de que não há aborto possível, me restam estas palavras natimortas.
Sei que ele vai surgir.
Eis que surge.
Pisca em câmara lenta, primeiro uma, depois a outra pálpebra. Que truque mais manjado, penso em reagir, a sentinela d’alma cochilando seu sono eterno.
Ele dá aquele seu sorrisinho maroto e sedutor. Ele quer que o seduza. Espalma as duas mãos e abre os braços e dobra os cotovelos e planta as palmas pouco abaixo dos ombros e as arrasta pelo peito até a altura do umbigo.
Está milhões de milhas longe da sensualidade de que preciso, meu sentinela ensaia despertar.
O sorrisinho se abre expondo o marfim ideal dos dentes (serão de leite?), uma covinha aparece ao lado dos lábios obscenos na bochecha direita, como é mesmo o nome daquela ruiva americana que protagonizava meus sonhos?
Preciso que a cena se repita. Por um instante uma sombra de sarcasmo reverbera em seu semblante. Não ousaria, me horrorizo. No instante seguinte ele desfaz o impasse. Sabe que minha autoembriaguez depende de seu tirocínio.
Juramos confiar um no outro até o fim dos tempos.
Assim que as mãos chegam ao umbigo, me ocorre, cadê as tetas? (Devo dizer seios?) Contenho o impulso de retroceder. Chega de movimentos.
Já bastam as asas de plástico. Os lábios carnudos de botóx envernizados de morango. Os cabelos daquela cor usada por coronéis nordestinos em vias de se aposentar.
Cedo em genuflexo, baixo a cabeça, fecho os olhos. Ele pousa a mão alva feito uma virgem em meu ombro.
Rezamos.
Manhã sabatina isenta de aurora
Banhada de sono, mutilada das horas
Hiato paralítico de terror e sossego
A tudo de mim neste ato renego

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