Sentimento de mim

Sinto uma coisa delicadíssima neste instante. Tão delicada, que receio que cutucar as teclas para digitar estas palavras esvaneça o que sinto.
Há apenas meio minuto sentia meu tédio. Meu tédio é imperioso. Se esparrama gordo, frouxo, folgado sobre tudo mais, esmagando terceiros, fazendo uma sombra sob que nada mais é capaz de vicejar.
Escravo desse meu tédio tirânico, hesitava. Devo bater em retirada, como quase sempre faço, ou devo resistir por mais três, quatro minutos?
Era em tal indecisão que me martirizava, quando senti essa coisa, essa coisa delicadíssima. Tão delicada, que não lhe dei dois segundos de vida. Tenho tantos sentimentos ao longo do dia e da noite, a maioria efêmeros qual o pio incerto dum sabiá-laranjeira no fim da madrugada. Mesmo assim fiquei imobilizado como o assaltante da diligência que Roy Rogers acabasse de enquadrar com seu Colt prateado.
Crispo os lábios, decepcionado. Roy estragou tudo. Roy, seu amigo Tonto, seu cavalo de cujo nome não quero lembrar.
Sopeso recomeçar. Mas sem o tédio. Meu tédio é invencível. E letal. Mais trezentos ou quatrocentos gramas dele é capaz de dizimar toda a humanidade. Não quero que a humanidade acabe, ainda.
O que senti no princípio, a que dei o nome pavoroso de coisa (não me atrevo a digitar a segunda palavra), já derreteu há tempos feito uma pedra de gelo a boiar num copo cheio até a borda de Drury’s.
Agora a verdade:
Quando comecei a escrever este texto, estava mortalmente entediado, sim, mas acabara de ler uns poemas de Drummond. E botei Peer Gynt, de Grieg, pra tocar só de garantia.
O gelo derreteu, o uísque ficou insulso. A exuberância de Grieg de repente desandou em cacofonias e guinchos. E a insuplantável crença religiosa de Drummond na vida de repente soou tão drummondiana.