Amorokê na vila - Capítulo 013


A garota que trabalha no bar chega mansinha cochichando que carece uma palavrinha comigo e perguntando se a gente pode dar um passeio. Faço que sim, ela me puxa pelo braço. Saímos para a noite, ela chama um táxi.
Não ando de táxi, recuso. Só de ônibus. Só de ônibus.
Tudo bem, vamos de busão.
Aonde?
Aonde o senhor quiser ir.
Pode ser o circular quatrocentos e nove?
Ela topa.
Só passa na rua de cima.
Ela me puxa pelo braço e subimos. Paramos no ponto, pergunto se posso dar o sinal, ela ri que sim.
O quatrocentos e nove é meio demorado, explico quando vejo que ela está impaciente.
Deve ser aquele, ela fica feliz, apontando.
Arrastamos os pés até a beirada da calçada e dou o sinal. Ele vem soltando aquele guincho de breque sem lona até parar com a porta bem na nossa frente.
Montamos.
O motorista é o Geraldo. Geraldo é meu chapa.
Boa noite, Geraldo.
Geraldo responde e me olha estranho me vendo com a menina.
Repreendo ele com o cenho.
A menina me puxa para um banco vazio.
Quando sentamos, pergunto que é e enquanto ela explica vou desmontando.
Desmontando o quê, você vai querer saber?
Estrelas do céu.
Desta vez vou começar por N.
Éramos felizes nos reunindo em família, coisas simples.
Mas antes vou descrever aquele dia há uns dois anos em que estava distraído desmontando quando os passageiros começaram a reclamar. Parei de desmontar e assuntei. Geraldo tinha saído do itinerário.
Levantei e fui ter com ele.
Que é que está havendo, Gê? achego a boca por trás da orelha dele para não atrapalhar a condução.
Ele não respondeu.
Estranhei. Geraldo está sempre simpático e solícito.
Gê? perguntei, enfiando a mão direita sob a aba da camisa.
Continuou mudo.
Então vi a nuca dele suando frio. Atentei para o rosto. Mais branco que folha corrida de nenê.
Pedi ajuda a uns passageiros e conseguimos parar o ônibus e tirar Geraldo do banco do motorista.
Soube depois que ele tinha tido um ataque do coração.
Fui visitar ele nas Clínicas, chorou quando entrei no quarto, ficou agradecendo sem parar, me deixou envergonhado na frente da mulher e da filha. Jurou que nunca ia cobrar passagem de mim. A mulher e a filha corroboraram com a cabeça.
Agradeci declinando. Não gosto de ficar devendo esse tipo de coisa, não.
Se é para dever, devemos dever coisas de valor genuíno.
Era quase meio-dia quando a enfermeira chegou com a bandeja de caldo de galinha e gelatina num copo plástico.
Geraldo queria de todo jeito que eu comesse o almoço dele. A mulher e a filha corroboraram de novo.
Nem pensar, censurei com o cenho. Comigo tem essa, não.
Inventei um compromisso, estimei melhoras, apertei as mãos das mulheres e saí.
O hall estava cheio de gente esperando o elevador. Não tomo elevador para descer, só para subir, e só se o andar for muito alto. Se tiver ascensorista, nem pensar. Odeio ascensorista com cara de quem tem o emprego mais nobre do mundo.
Entrei pela porta onde estava escrito “Escadas” e fui descendo em passinhos pausados e sossegados, pensando na vida do Geraldo e sua esposa e sua filha e contando os degraus. Apostei comigo mesmo que dava mais de quinhentos até o térreo.
Toda vez que passo pela escadaria dum prédio alto me admiro por nunca ter trabalhado num lugar desses. As potencialidades são extraordinárias. Principalmente se na hora estiver com vontade de ir subindo ou vir descendo. Ou então posso parar entre dois andares. A ideia me faz sorrir sozinho. Gosto de rir sozinho.
Um hospital, então, parece mais promissor ainda. Preciso renovar meu mundinho, experimentar novos métodos, desenvolver novas doutrinas. Essa área não é diferente de qualquer outra. Você tem de arrumar um jeito de não se acomodar, alimentar seu próprio interesse em renovar suas motivações depois que a rotina se estabelece. Faz sentido, creia.
Não me isento das minhas responsabilidades. Afinal, sou um profissional e me preocupo com o desenvolvimento de inovações espirituais e técnicas em meu metier. E gosto de pensar em termos orgânicos e em como eu e meus colegas de profissão podemos integrar nossas experiências para aprimorar nosso desempenho e prestar a nossos clientes serviços com um nível de excelência. Só falta mesmo é uma certificação sob as normas ISO.
Vamos parar e tomar uma cerva, Viramundo diz assim que me junto a ele no ponto de ônibus na Rebouças em frente ao hospital.
Buteco nesta área só atravessando a passarela.
Tudo bem.
Zanzamos uns quarteirões até encontrar uma padaria na Consolação.
Fazemos uma parada nas proximidades antes de entrar, assuntando. Passados uns cinco minutos concluímos que está tudo limpo. Esticamos os braços para o alto, exalamos, relaxamos.
Aqui começa.
As pernas entram na padaria, pocilga macaquita salvessalve. Sentamos em duas banquetas que são um desafio às leis da física diante dum balcão que é uma cusparada na cara do freguês.
O atendente leva vários minutos para girar o pescoço em nossa direção. Quando o faz finge que não nos vê e prossegue em sua lida de encardir ainda mais o ambiente em que vive esfregando um pano imundo no chão.
Viramundo assobia e o rapaz por fim decide se dar por achado. Vem insolente, quase desafiador.
Uma Brama.
Está em falta.
Então Escol.
Servi a última indagorinha.
Triste esta terra, exótico este povo.
Esta aqui também é boazinha.
Ele se abaixa, abre a porta do refrigerador e quando se levanta tem uma garrafa na mão.
Não conheço essa marca, Viramundo torce o nariz.
É boa igual às outras.
Sei não. Nome estranho. Onde fica essa fábrica?
É a mais vendida hoje em dia.
Viramundo põe-se em guarda. A confiança nunca foi seu forte.
Tem algo de errado.
Você está sendo paranoico, digo. Vê um cafezinho sem açúcar, por favor.
Já aconselhamos Viramundo a procurar um psiquiatra, pai de santo, acupuntura. Às vezes temo por sua lucidez e segurança.
Uma das minhas poucas qualidades é a capacidade de aprender com a história.
Veja este rótulo, ele aponta a garrafa. Nada a ver. Parece marca de remédio.
Os olhos olham a tevê. Está passando o que parece ser uma reportagem sobre uma nova fábrica de componentes eletrônicos em Jundiaí. Peço ao atendente para aumentar o som.
Vai tomar a cerveja ou não? o garoto pergunta.
Rápido feito um felino, Viramundo atira as duas mãos sobre os braços do outro e o imobiliza.
Calma. Solta o moço. Massageio os ombros dele com a palma da mão.
Vou. E você também.
Não posso beber durante o trampo.
Ou bebe ou morre.
Ele ergue a aba da camisa, exibindo o cabo da peixeira.
O atendente abre a garrafa e bota dois copos entre ambos e serve.
Você primeiro.
O rapaz esvazia o copo na boca.
Meu café sai ou não sai?
Só falta trazer um frasco para exame de urina, brinco.
Viramundo não responde.


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