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Um dia pensei como seria se me tornasse piloto de corridas. Uma noite aspirei a ser Fernando Pessoa.

Fui crescendo e vim perdendo o interesse pela velocidade e me dei conta de que emular Pessoa estava muito além das minhas posses.

Já grande, já forte e asfixiado, cogitei a possibilidade de virar guardador de carros. Por que não? Gostava de me imaginar nas quebradas próximas ao Teatro Municipal ou Conjunto Nacional, orientando motoristas estacionando no meio-fio seus luzidios possantes negros e cinzentos para em seguida encarar uma ópera de Wagner ou uma sessão de Sonata de Outono, o maior filme de todos os tempos. E depois de pedir ao doutor para deixar o leite das crianças antes de pegar a fila do teatro ou do cinema, me via sentado a um canto na calçada, apertando os olhos para ler pela enésima vez o Guardador de Rebanhos sob a luz raquítica das lâmpadas de mercúrio que dão à cidade essa vacilante penumbra de convento.

E lembro que, à medida que imaginava, cogitei ser outras coisas. Embora não lembre de que outras coisas cogitei.

E à medida que imaginava ser o que não sou e pensar o que não penso e estar onde não estou e viver o ontem ou o amanhã, ia decidindo que este lugar não era onde eu queria estar e agora não era o momento que eu queria viver e meus pensamentos não eram os pensamentos que eu queria ter e eu não era aquele que eu queria ser.

Assim fui indo, assim vim vindo, tentando tecer um futuro possível com a trama dos sonhos. Até que num dia de outono nem frio nem quente, nem abafado nem úmido, olhei em volta a esmo e me descobri um guardador de miragens.

Foi assim, de repente. E foi de supetão. Naturalmente já havia visto algumas miragens antes, conhecia suas cores diáfanas, conhecia sua urdidura de halograma. Mas, mesmo dado a mergulhar até o fundo da minha imaginação, nunca imaginei que pudesse guardá-las.

Você pode zombar da minha ingenuidade. Guardar miragens, de que serve tão supérflua ocupação? Pois é, eu tampouco enxergo utilidade nisso. Afinal não é profissão reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Muito menos ofício de quem se dê o devido respeito. Ou de quem não brinca com esse tipo de coisa. Sequer me abre o caminho do sucesso ou do amor. E, sobretudo, não dá grana. Sobretudo mais uma vez, parece desatino de quem não se importa em ser motivo de piada.

O que é guardar miragens, afinal? Será o mesmo que sepultar ilusões? Ou cultivar mentiras? Colecionar enganos? Acreditar em fraudes?

Queria poder explicar. Mas não posso.

Porque sempre que me faço essas perguntas -- e essas perguntas induzem outras perguntas que induzem outras perguntas --, já não me interessam as respostas.

E assim vou passando meus dias guardando miragens.

Minhas miragens são entes duros de arrebanhar. Desprovidas da submissão dos carneiros, escapolem arredias para se embrenhar pelos meus matagais.

Minhas miragens são refratárias à conveniência portátil dos álbuns de fotografia. E não combinam muito bem com a arbitrariedade esperta das recordações.

Pois as minhas miragens se expandem ao mesmo tempo em que se contraem e viram do avesso sob estas leis físicas que desenvolvi para meu uso particular. E as minhas miragens não se prestam a se amontoar. E quando as junto se desmancham e desbotam e se re-formam e se camuflam e se diluem em sombras, espelhos e dejavus e já não posso reconhecê-las e já não posso querer guardá-las.

E ao fim da minha jornada e de tudo a que me proponho fazer, minhas miragens se entregam promíscuas e bestiais à procriação geométrica, bailando compulsivas, com esta minha necessidade visceral de povoar meus olhos. E eu, pequeno saltimbanco, assim as vou pastoreando, assistindo ao rito infernal destas minhas miragens que se multiplicam para preencher o que me resta ser preenchido.

E ao fim da minha jornada a guardar minhas miragens, caio fatigado de pastorear fogos fátuos e atravesso a noite enfermo duma enfermidade que envolve todas as minhas noites na asfixiante cela do presente.

E nesta minha enfermidade sem sintomas nem remédio, sem origem nem fim, meu único bálsamo é reconhecer para mim mesmo, e só a mim, que sou um reles guardador de miragens.

Pois quando guardo minhas miragens não penso, como aquele dia pensei, em não ser nada.

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