Fria tarde de julho caída em setembro (allegro poco mosso)

Escuto a música. Preciso escrever. A quem escrever? Não tenho a quem escrever. Vou escrever para você.

É este meu refúgio. É aqui onde encontro a efêmera trégua nas badaladas surdas da tarde.

Não pense que escrevo para você por falta de opção. Deixe que eu penso.

Você achava que um cara feito eu não era dado a refúgios? Eu também. Talvez seja sinal de que estou esmorecendo. Ou talvez não seja sinal de nada. Não sou dado a sinais. Sinais só existem para quem os queira.

Okay, vou esmorecendo. Minha cirandinha imóvel me envolve e me roda qual pião, pião sem adjetivo nem cheiro ou história prisioneiro abnegado de refúgios e outras facilidades dos tempos a rodopiar rodopiando sem nunca cair nem perceber que estou tonto.

Venho aqui te escrever porque preciso sustentar teu olhar expectante enquanto executo minha ciranda. É meu espetáculo, digamos. Pactuemos. Você espera que eu te escreva a verdade. Como, se a verdade reside só em teus olhos?

Quer uma prova? Ei-la: noite de julho de 198... (Você sabe quando.) Cenário: Z. (Não tenho coragem de ser explícito a esse ponto ─ por isso estou fadado à sentença: você jamais me perguntará o que tenho a te dizer.) Personagens: você, eu e expectadores vários. O mundo é sempre pródigo em expectadores. Eu, de todos, sou o maior.

Tema: teu olhar.

Venho aqui te escrever hoje porque decidi encerrar o assunto "minha Dor". De lambuja matarei meus fantasmas, rasgarei minhas fantasias, vaporizarei meus delírios, deletarei minhas lembranças, embaraçarei meus caminhos. E apagarei meu passado, do qual neste ato abdico e me liberto.

Julho, eu disse? Nunca houve julhos em minha vida. Nasci em dezembro, perto do natal, interregno das férias escolares (não sei sentir senão quando me sinto desumanamente em férias). Desde que nasci jamais avancei além de março. Sendo veronil, o sol é minha égide, só tenho vida enquanto afundo as solas dos pés na areia da praia, me fazendo homem de palha o restante do tempo. Meu auge vital é o solstício de verão em algum dia no meado de janeiro. Essa data, e poucos dias antes e depois dela, comemoro sorvendo desesperado o que houver para ser sorvido. Nos demais dias do ano me embebedo tentando adormecer e hibernar para só retomar a vigília na volta do verão. Por isso, naquela gélida noite de julho em que alguém sentado ao meu lado no balcão comentou que fazia oito graus não me achava exatamente no comando dos meus sentidos. (Faz de conta que não mencionei o comando dos meus sentidos.)

Ébrio, estava. Mesmo quando durmo, estou. Naquela noite flutuava distraído entre nuvens de isopor. Sentado à tua frente. Copo de steinhäger esquecido entre os dedos no balcão. O vozerio produzido pelas poucas dezenas de expectadores reverberando em pastilhas mnemônicas ora dentro ora fora de mim. Vultos, personagens de outra dimensão ─ mas não fantasmagóricos como depois daquela noite aprendi a enxergar vultos ─, deslizavam alheios à nossa volta. Enquanto isso, você falava, lembra? Que pena, não sei, não aprendi a prestar atenção no que dizem enquanto durmo. Teus lábios se mexiam, magnéticos como em todas as situações em que já os vi se mexer, forjando, imagino, melífluas sentenças e períodos desprovidos de vírgulas, pontos finais, interrogações e de qualquer outra pontuação. Tua fala é meu paraíso, eu diria se fosse então capaz do diálogo. (Me diga, já dialogamos algum dia? Duvido. Meu saber é patético ante a tua beleza, e costumo me calar quando não sei que dizer.)

Cada um dos meus sentidos me puxava pr'um lado e todos me puxavam para você. Dividido em dez, quinze pedaços, eu era tua platéia. Cada um deles, pedaços, estava atento ao palco da Z. à sua maneira. Se foi assim de fato, por que me lembro só dos meus olhos? (Sou escravo do olhar, qual fotógrafo sem energia para a música nem gana de saciar o apetite.)

Vou me dividindo geometricamente à medida que tento descrever tua figura sentada à minha frente no balcão. Qual sentido devo usar agora? Meus olhos não desgrudam do teu rosto, imobilizando consigo meus pensamentos e minha lembrança. (Pergunto: seria uma dádiva a capacidade de esquecer por livre arbítrio?) Meus ouvidos estão ocupados do burburinho dos bebuns em volta, atingindo ocasionalmente picos distorcidos, quando, bem ao meu lado, um deles pede "mais uma cerveja" ao balconista, que berra "mais uma cerveja?" de volta. Dentro da minha boca, muda na efêmera noite de julho que hoje não estou certo se ocorreu de fato, o steinhäger não deixa espaço sequer pro gosto de mim mesmo. (De que não sei se gosto.) Meu olfato, mesmo tomado dos odores peculiares de álcool, suor, sanduíche de queijo e mortadela, estava saturado do cheiro que teria tua buceta em minha imaginação. E minha mão, aquela que não segurava o copo, delirava com a textura da tua pele e minha língua se enchia d'água ávida por lamber a tua.

A noite veio passando longa feito a eternidade e desvaneceu curta qual um instante. De repente você diz, "preciso ir", despenco, cheiro, escuto, imagino, engulo o steinhäger de gelo. Vejo teu olhar. Anti-sol que obscurece minhas noites.

No meio do breu você, lâmpada fantástica, brilha à cegueira, espargindo um halo não luminoso, de raios negros, corroendo minha claridade à tua volta, me atraindo ao teu campo de beleza inatingível e me condenando à escuridão que aprendi a habitar. Eu, mariposa trajada em fantasia de seda puída, destituído da cabeça que um dia arranquei tentando estancar a mina de pensamentos que borbotavam e borbotavam para o vácuo que ficou no teu lugar, me arrasto em círculos incessantes em torno de não sei exatamente o quê. Terá a luz se apagado e eu, mariposa decapitada, nem me dado conta?

Eu disse que não ia falar da Dor, eu sei. Acho mesmo que tinha prometido nunca mais citá-la em dê maiúsculo. Afinal não é nome próprio. E nem de país ou feriado. Não faz diferença, provavelmente. Tampouco faz falar ou deixar de falar. Mas se tenho algo a dizer ─ tenho? ─, o que tenho a dizer é para você. Se não te falasse dela, maiúscula ou minúscula, falaria de quê? A única alternativa seria o vácuo.

A música, aquela, nunca mais escutei. Tudo que consigo é pensar nela, como se fosse uma abstração. Agora terminou. Não é possível que torne a tocar outra vez.

Nenhum comentário:

Postar um comentário