Imutável céu sobre minha cabeça desde novecentos mil anos atrás

Num passado não muito distante, não muito recente:

Me via nesse ovo em que fui gerado. Não era um ovo ovalóide como sóem ser os ovos. Tinha a forma duma chapa, talvez já nascido para a frigideira. E quem quer que o habitasse estava já predestinado. Estaremos todos?

Tentei quebrar a casca (por que temos de quebrar as cascas que vão nos envolvendo ao longo da nossa mutação? será falta de ar?). Mas casca não havia.

Havia essa bolha de sabão que me isolava do lado de fora. Escuta, escuta bem: nunca me senti do lado do que quer que fosse. Estiquei meu dedo fura-bolo, cutuquei e a bolha de sabão explodiu sem sequer um baque que me brindasse c'uma onomatopeia.

No presente longínquo:

Dou com esse cesto de lixo. É um cesto volumoso e, por fora, parece estar abarrotado.

Quero ver o que há dentro do cesto, não é óbvio? Afinal pertenço, mesmo contra a vontade, a esta espécie de fuçadores sempre a bisbilhotar o mundo ao redor procurando sossego e sarna pra se coçar.

Bato a mão no ar num gesto de desdém e o cesto tomba. E o que há dentro dele se esparrama pelo chão.

Ex-encarcerado com pose de arqueólogo de mim mesmo, inicio o cadastramento.

Há esse montinho de areia em que enfio e retiro a mão. Presa entre meus dedos sai a pazinha amarela perdida num mistério que durou um segundo e a vida inteira.

Há esse patinete vermelho com apenas uma roda e sem guidão com que eu imaginava sair rodando para um dia chegar à Europa.

Há esse caminhão-cegonheiro semidestroçado sob chantagem arrancado a um familiar num certo dia de aniversário e, sendo presenteado sem gosto, com desgosto foi largado a um canto e esquecido.

Há essa pipa azul e verde que nunca conheceu o gosto de estar entre as nuvens pois quem a construiu era visivelmente um mau construtor de pipas sem noção de engenharia nem de nada. E se um dia esta pipa impossivelmente ameaçasse voo, por certo enroscaria nos galhos da árvore mais próxima.

Há esse toca-discos solenemente aposentado depois de tocar um milhão de vezes cada música dos Beatles e acompanhar seu dono em mil e uma noites da mais torturante angústia e da mais fina dor.

E há essa que é a mais supérflua vara de pesca que jamais houve e há esse par de tênis brancos encardidos que é o mais surrado par de tênis que jamais houve e há essa estante que sustentou milhares de livros que não fazem mais sentido e há esse kit-churrasqueira que por uns meses prometeu apetitosas possibilidades e há essa bolsa-tiracolo que zanzou anos vazia por ônibus, por trens por dias e por noites e há essa cristaleira trancada a chave empanturrada de cristais que nunca foram usados e há esse cofre cujo segredo foi perdido e o cofre doado ao primeiro garrafeiro que passou e há essa sala de jantar em cerejeira jamais desvirginada com um café-da-manhã que fosse e há essa caçarola única sobrevivente do seu paneleiro e escalada para pudins de leite e há essa máquina de costura e esse carrinho de chá e esses badulaques de enfeite e essa casa na ladeira e esse sobrado na avenida.



(
Enterrado flutuo sem coceiras nem vontade de respirar.
Estou preparado para o aturdimento total.
Que inefável delícia que nada mais me seja inefável ou delicioso.
Serei livre e espero obediente e próspero pela primeira vez.
)

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