Literalidades
Cada
um, cada um de nós nasce com um botão.
Botão
simples, consistindo duma peça inteiriça com quatro elementos: cabeça, sede,
mola e anel de fixação.
A
cabeça, de material plástico, presta-se a ser pressionada com a ponta do dedo.
Acha-se montada na sede, cujo interior guarda uma mola elástica – reles molinha
de arame (este sendo igualmente reles, sem ter recebido sofisticados
tratamentos térmicos ou químicos) destinada a restituir a cabeça plástica à
posição original depois de pressionada.
A
sede, igualmente plástica, recebe em seu topo um anel também plástico (com a
diferença de que, no caso deste último, o plástico recebe injeção especial de
elastômero, sendo protegido por revestimento anti-ferrugem à base de borracha
vulcanizada). O anel tem por principal finalidade auxiliar a fixação da sede na
superfície em que está instalado o conjunto do botão. Secundariamente, a argola
serve de acabamento, de modo a suavizar o impacto visual produzido pelo botão
sobre a superfície, que por sua vez atua como suporte propriamente dito.
A
cor do botão varia de acordo com o dono. Mas é cor atribuída a cada um de nós,
donos, sem obedecer a nenhum critério. Trata-se de processo que se dá ao acaso.
Sequer se distinguem homens e mulheres, para desalento dos que desejariam que
ao menos fossem azuis os de uns e rosa os de outras. Você, eu, seu vizinho, um
antepassado, conterrâneo, transeunte, qualquer um de nós pode ser aquinhoado
com um botão da mais inusitada das cores do espectro cromático. Como já se
explicou anteriormente, trata-se de atribuição aleatória. E, dentro dos princípios
da aleatoriedade, você (ou até eu – quem sabe?) pode muito bem receber um botão
amarelo tenebroso ou (quem também sabe?) vermelho maligno.
O
curioso é que, seja qual for a cor que nos cabe, cada um de nós a aceita sem
reclamar (ou, se reclama, não é reclamação conspícua) e logo a assimila
naturalmente. E quando alguém nos pergunta qual é nossa cor preferida, não
titubeamos em responder com a cor do nosso botão.
Para
combinar com a simplicidade do material e da cor, o botão tem a mais básica,
despojada, insuspeita e simbólica das formas: o círculo. Por isso, é possível
afirmar: cada um de nós nasce com um botão plástico colorido redondo.
Em
contrapartida, a localização do botão, diferentemente do formato e do material
constituinte, que são universais (e que, como se há de convir, trata-se de
características elementares que não poderiam suscitar intrincadas celeumas,
pois o primeiro, como já explicitado, representa o mais básico de todos, ao
passo que o segundo, por poder ser facilmente encontrado no mercado e a custo
relativamente baixo em comparação a outros materiais mais nobres como a
porcelana, o marfim, o ébano, a madeira ou – por que não? – o cristal, havendo
mesmo a possibilidade – nada remota, cumpre notar – de provir do espantoso
processo da reciclagem que os avanços tecnológicos do nosso fatídico século
finalmente lograram pôr à nossa disposição), e mesmo da cor, que, embora possa
variar de indivíduo para indivíduo, acha-se sempre dentro duma gama limitada e
conhecida de tons, pois bem, a localização do botão com o qual cada um de nós é
agraciado ao nascer pode ser literalmente – e, creia-se, nunca é demais
enfatizar – literalmente qualquer uma.
Ei-nos,
portanto, cada um de nós às voltas com um botão plástico colorido redondo
localizado sabe Deus onde.
Às
vezes, os botões de todos nós podem ser achados em locais previsíveis como o
painel de comando dum aparelho de tevê, um controle remoto, um fogão (tendo-se,
obviamente, o cuidado de não confundi-lo com os demais botões instalados de
fábrica em tais utilidades domésticas e cujo propósito é, por exemplo, tão somente
aquecer o prato de feijão e arroz na hora do almoço ou aspirar o pó do carpete
da sala) e assim por diante. Noutras, podem estar atrás duma penteadeira onde
jamais nos passaria pela cabeça olhar, dentro duma gaveta trancada cuja chave
se perdeu há anos sem que alguém se interesse em procurá-la, debaixo da cama,
no forro do banheiro, dentro do lustre da sala, no bolso dum casaco enfiado há
séculos no fundo do guarda-roupas ou mesmo em alguma recôndita fresta no
quintal que, por estar exposta às intempéries, consideramos impossível.
Geralmente,
a indeterminação do local em que fica o botão ajuda a explicar alguns pequenos
mistérios que alguns de nós guardamos (e entre esses há mesmo aqueles que não
apenas guardam mas inclusive alimentam os pequenos mistérios, e o fazem com
afinco, até que vicejem e se tornem grandes enigmas labirínticos, mas essa já é
outra história).
Dentre
os aludidos pequenos mistérios que alguns de nós conservamos perante o botão,
um dos mais corriqueiros talvez seja a inconsciência. Referimo-nos não à falta
de percepção geral em relação ao mundo e sim à nossa capacidade de dar atenção
à existência do botão. Muito simplesmente não tomamos conhecimento dele.
Seria
natural supor que o botão serviria para fins, digamos, benéficos. Tais fins
incluiriam ou poderiam incluir futilidades tais como elevar o prazer do orgasmo
à máxima potência e experimentar assim o contato supremo com o divino através
da combinação do gozo, o mister procriador e a necessidade de dar uma
desafogada nos pequenos martírios do dia-a-dia, pois, afinal, ninguém,
absolutamente ninguém é de ferro. Ou rastrear o caminho que um inesperado
sorriso recebido numa manhã fria e entediante percorre desde nosso olhar,
passando pelo cérebro e atingindo o coração. Ou finalmente erradicar da memória
aquela lembrança da infância que insiste em nos assombrar sempre que suspiramos
aliviados, pensando ingenuamente estar livres dela (e de algumas – ou muitas –
outras).
Seria
natural, mas não é. E seria bom se assim fosse. Mas o botão serve a propósito
menos nobre, utilitário até. Propósito que evoca em cada um de nós sentimentos
díspares.
Alguns
de nós sentimos calafrio (uns na espinha, outros na base da nuca, outros em
outros pontos do corpo – esse pobre corpo que nos é dado arrastar dum canto
escuro a outro desde o nascimento e que vai ganhando massa, volume e peso e
degradação e desconforto à medida que nos aproximamos do ainda mais escuro fim,
mas talvez esta também seja outra história). Outros de nós somos tomados de
pavor quando nos damos conta da serventia do botão (estremecemos em patético
sinal a um deus inexistente mas onipresente de que, sim, somos fracos e
estremecemos; abanamos a cabeça em inútil negação da nossa condição de seres
aturdidos; sopramos o ar dos pulmões para mostrar que não estamos sufocando;
soltamos uma gargalhada escrachada para mostrar que não, não estamos nervosos).
Certos
dias, à noitinha, em alguns pontos espalhados pelos bairros mais longínquos,
dois cidadãos (independentemente de sexo, raça, cor e religião) se cruzam em
esquinas, balcões de padaria, caixas de supermercado ou guichês de casas
lotéricas e, como se não tivessem segundas intenções, perguntam um ao outro:
–
Então? Resistindo?
–
Resistindo. Por incrível que pareça.
–
Nem uma espiadinha hoje?
–
Nem uma. A última foi no mês passado.
–
Quem dera eu fosse assim. Hoje cedo quase cedi à tentação.
–
Não diga!
–
O meu fica atrás do armário da cozinha, você sabe. Eram umas dez horas. Não aguentei.
Puxei o armário, desencostei da parede. Pus o bicho à mostra.
–
Uau! E então?
–
Então alisei. Passei o dedo bem de mansinho na cabeça.
–
Que calafrio.
–
Desisti bem na hora. Bem na hora.
–
Espero nunca ter de passar por isso.
–
A esperança é a penúltima que morre.
–
A penúltima.
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