Outro cafezinho envenenado

Deito, durmo.

Para a vida passar rápido.
Quanto tempo leva a noite?
Nada, se você dorme.
Acordo e durmo.
Para a vida passar logo.
Quantas eternidades me cabe esperar?
A epopéia até o banheiro.

A mijada. (Quantos decalitros de urina carrego dentro de mim? Parece a primeira vez que mijo nesta vida.)

(Cocô, evito. Pois não existe a escatologia no mundo lírico. Preciso me concentrar no divino, na ascese, nas coisas que estão além. Quão além estão certas coisas.)

(E, quando não posso evitar, faço de madrugada enquanto o mundo está deitado. Que inveja dos que dormem.)

(Lavar o rosto, não lavo. Pra quê? Pra quem? Eis as perguntas que eu faria, se tivesse a quem fazê-las. Não há ninguém por aqui que me diga que estou com remela nos olhos.)

Do banheiro à cozinha, via-sacra. Não fizeram atalhos nesta casa? Malditos portugueses e sua cultura do atraso e os mil dias que levaram pra descobrir este país dos infernos.

Boto a caneca debaixo do filtro, por que esta água não desaba do alto qual tempestade em vez de pingar como se marcasse os anos na folhinha da parede? Um dedo d'água é tudo que espero. Virarei fóssil com esta caneca na mão? Serei exposto na Bienal das Artes?

Agora a fervura. Milagre, acendedor automático. Abençoados americanos que me poupam de esfregar dois pauzinhos. Se dependesse de mim, a humanidade não dominaria o fogo. Viveríamos todos na praia de Ipanema esperando a eterna passada daquela garota.

Libera tuas labaredas, boca dos infernos! Ferve duma vez, líquido teimoso! Incendeia o ar, as paredes, o telhado e as nuvens, extermina o tempo na tua fogueira, enevoa o dia em teu vapor.

Não posso acreditar -- serão borbulhas que ouço? A água está pronta? Tenho finalmente alguma coisa pronta na minha vida? Só acredito me queimando.

Próximo passo -- por que nos obrigam a andar? Seria tão bom se fôssemos todos parados --, próximo passo: ir até o armário, abrir a portinhola, apanhar o nescafé, desenroscar a tampa (prendendo a respiração pra não cheirar o pó), abrir a gaveta dos talheres, pinçar uma colherinha, extrair duas vezes, despejar, adoçar, mexer, experimentar, puta merda, quero apenas um cafezinho, não ir a Marte.

Chega a fatídica hora: descer até o escritório.

Não, não se dá a largada simplesmente. Requer preparação. É uma maratona. Preciso me concentrar. São quase 30 metros.

Tem dia, logro hibernar antes de largar e venço a competição sonâmbulo. Nem sempre me é dada esta dádiva. Não mantenho boas relações com deus.

E, quando logro sonambular, vupt! já estou diante do monitor ao recobrar a consciência. Obrigado, deus! Deus lhe pague.

Mas de que me adianta ter atravessado o Rubicão literalmente num fechar e abrir de olhos, se agora tenho de aguardar o Windows inicializar? Bill, tende piedade de mim.

Aperto o maldito botãozinho que já está quase quebrado de tanta raiva com que aperto o maldito botãozinho. Por que os americanos não inventam um Nescawindows instantâneo?

Enquanto a luzinha não bruxuleia na tela, acendo um Marlboro, que se consome em 3 ou 4 sôfregas, impacientes, fulminantes baforadas. Fuço em minha Estante para Emergências, que mantenho ao lado do computador, apanho O jogador, o da vez. No desespero da manhã paralisada, só Dostô pra me acalmar. Leio umas 3 páginas e o hinozinho do Windows anuncia que o fantástico mundo cibernético está enfim ao alcance do meu mouse. Precisava quase 2 minutos pra isso?

Acho que finalmente estou chegando. Só falta executar o Opera, digitar o endereço do blog, entrar com o email e o password (não posso deixar meus dados sigilosos na memória do programa. Tá cheio de bisbilhoteiro por aí.)

Eis que a tela amarronzada se descortina diante dos meus fatigados olhos. Eis aqui minha carinha barbuda. Olha, até que sou bem apanhado.

Corro pra ver se tem comentário.

Ontem à noite eram 57 comentários. Agora são 56. Apagaram um. Por que essa gente é tão indecisa?

Não! Me enganei. São 58. Uma alma caridosa deixou um comentário. Deus lhe pague, meu bom samaritano.

Clico no ícone. Anda logo, seu Opera molenga.

Não precisa ser simpático. Ou autêntico. Tudo que peço é, só não diga que não sei escrever.

E não precisa mais de dez linhas. Umas quatro bastam. Ou duas. Ou mesmo uma. Sei que hoje em dia estão todos apressados. Não quero abusar da paciência dos navegantes.

Abro. É apenas um smiley.

Meus dedos se crispam, apertando o Dostô como se fora um crucifixo. Nessas horas, lamento não ser crente. Até ontem à noite, me achava um agnóstico.

Um smiley? Quero rir. Mas, como diz a Dilma, isso parece integralmente meio impossível.

O jeito é reler minha última postagem. Escrevi ontem e já cheira a bolor?

Bom, pelo menos fede. A maioria não me cheira nem fede. A maioria até que me constrange.

Me sinto tão mal-amado.

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