Literalidades
Descobri agora, tenho um elástico atado às costas — elástico que
vou esticando a cada dia, a cada dia que passa. Se uma das pontas desse
elástico está presa em mim, a outra está... Não vejo onde está presa a outra
ponta. Talvez num dia longínquo. Que já vivi ou ainda vivirei. No amanhã. Ou
não está presa.
É um elástico que nem esticado está. E, se estivesse, estaria
simplesmente por estar. Achar que pudesse esticá-lo é apenas mais um dos meus
desejos insatisfeitos. Estou atado a uma teia deles, em cujo centro bamboleio
feito uma aranha vibrando ao sabor de suas tensões.
Fiz outra descoberta — descobri que, além do elástico que não
estica, tenho uma mola. Está armada, pronta para o disparo. Ela se retesa a
cada pensamento que nasce dessa mina que me borbota por dentro, se retesa a
cada palavra que preciso dizer e não digo, se retesa a cada gesto que me cabe
fazer e não faço.
Devia haver um equilíbrio entre o elástico e a mola, mas não, é
impossível, sei que é impossível. Pois que o impede uma presilha, que me
sujeita ao hoje, à minha amada, a tudo e a nada.
Poderei abrir a presilha?
Sim. Abro. Pronto, estou solto. Alivio a tensão dos ombros,
livre. Saltito. Tento correr. Só posso ir alguns metros, pois tenho um cabo,
cabo atado à cabeça, que me controla meu curso e determina minha órbita e
circunscreve meu alcance. Como se os tivesse, curso, órbita, alcance. Qual um
radinho de pilha quebrado, o mecanismo de brinquedo desmontado e esquecido no
fundo duma caixa de tranqueiras, um projeto que levaram tantos anos a
desenvolver e por fim decidiram não dera certo, o velho radinho de pilha de
alguém na vizinhança que encrencava bem no meio da transmissão do futebol para
depois retornar à vida no meio da noite de domingo quando ninguém mais desejava
ouvi-lo.
Quando penso nas distantes tardes de domingo, a mola se retesa.
Me encorajo. Continue empurrando, penso. Subo. Vejo-me no telhado, nas mãos um
punhado de pedregulhos, com os quais, um a um, armo meu velho estilingue e
arremesso longe, bem longe, só para escutar cada pedra cair alhures. O esforço
me deixa cansado. A mola se retesa e me vejo condenado a fazer milhões de
lançamentos. Esperar nascer milhões de pensamentos. Nutrir milhões de amores.
Paro, escorrego, despenco. Caio no jardim. Aqui não, reluto.
Aqui sim, insisto.
Descubro que o jardim está tomado de esperanças, esperanças que
brotam do chão, das árvores, das folhas que se retorcem pela força do vento,
reverberam a luz do sol. Aqui não, repito. Essas esperanças são fraudes — o
rebanho de mentiras que mantenho trancadas em meu celeiro de mistérios, atrás
da porta do tempo, para que não infestem os céus deste pobre jardim.
Mais devagar, peço. O cabo, a mola e o elástico, como se
escutassem meu rogo, reduzem a pressão.
Se fosse sempre assim. Pedir e ser atendido. Prometeria, darei
todas as contribuições que esperam de mim, adorarei todos os reis, pagarei
todas minhas dívidas. Andarei devagar, serei prudente, previdente, cauto, o que
quer que queiram de mim.
O elástico às minhas costas me puxa para trás. Recomeço. Me leve
aos dinossauros, peço. Antes da magnífica colisão do fabuloso meteoro na baía
mexicana. Antes que refloresçam esperanças neste jardim. Antes do fim do ano.
Antes das minhas modorrentas tardes de domingo.
Me deixo distrair pelas flores mortas. Terão nascido por mim?
Morrido por mim? Nascido e morrido por mim? Meu sabiá-laranjeira pousa num
galho próximo, surpreendentemente próximo, e desata a trisnar. A custo, presto
atenção nele. É um sabiá-laranjeira de plástico, negro, terrivelvemente negro,
postiço, entoando uma canção mecânica:
não me vejo, não há nada em mim, não
tenho começo, não tenho fim, sou feito
de encaixes, eles se abrem, me divido
você não tem fundo, você não tem lado
você nasceu para ser dividido, nasceu
para ser substituído, você é apenas
culpado. Nada mais que culpado.
Desesperado, me livro do elástico, da mola e do cabo e, sem
olhar para trás, fujo do jardim. Quando me vejo na rua, tento me lembrar de meu
próprio nome. Avanço pela rua sem saber como me chamo nem aonde vou. Escuto que
clamam meu nome.
Como? pergunto.
Se não lembro como me chamo mas chamam meu nome, só podem ser os
mortos.
Aperto os passos na rua escura, sem ousar prestar-lhes atenção.
Em meio ao vozerio distinguo uma sentença:
— Somos os sem-voz!
Aperto ainda mais os passos, sacudo a cabeça para negar. Eles
gritam mais forte:
— Somos os sem-voz!
Paro, vencido.
Eles falam:
— Paladino dos miseráveis, escuta! Tu, de todos os homens e
entes que já habitaram este desafortunado planeta, tu és nossa esperança! Não
nos abandonai!
— Seres destituídos! — replico — cuja morte não valeu sequer uma
notícia aos parentes mais próximos ou aos vizinhos. Cujo desespero não produziu
no Céu uma conferência de anjos. E cuja dor não logrou que Deus se comovesse e
por fim aceitasse exterminar duma vez por todas vossa raça! Desisti! Amputai a
esperança que teima em inflamar vosso peito!
Pensando ter-me desincumbido do meu fardo, prossigo pela rua com
meus passos duros e determinados, sem saber meu caminho.
Sinto na nuca um assoberbante arrepio quando as vozes daqueles
para quem a vida é sempre suja clamam mais alto. Simulo o olhar gélido de quem
tem o coração impertubável ante o sofrimento alheio. Mexo os lábios imitando
chamar o nome impronunciável de Deus.
A mais difícil missão, penso — penso e me desprezo por ainda
parecer tão frívolo a meus próprios olhos –, a mais difícil missão é você se
olhar e ter aceitar que você e as idéias que você tem de si e os planos com que
forrou suas idéias não valem nada. Você não tem saída. Você é um erro — uma
sujeira fora do alcance da eficiência nipônica, defeito irreparável pelo Geist
germânico, tão supérfluo que nem como escravo te querem os senhores deste
mundo.
De tudo que existe, nada pode ser meu. Esta rua que não sei
aonde vai, esta placa cujos dizeres não me dizem nada, estas pessoas cujo olhar
me atravessa como se eu não estivesse aqui. As soluções encontradas por grandes
homens para outros grandes homens não são para mim.
Escuto algo novamente. Desta vez são passos. Alguém se aproxima.
Ao passar por mim, diz a outro alguém que está a seu lado:
— É tarde demais!
O veredito começa a ecoar em meus ouvidos: é tarde demais! é
tarde demais! é tarde demais!
Será tarde ainda? — pergunto em voz baixa e me espanto com a ternura
em minha própria voz e me refaço. Procuro forjar uma razão que me leve a me
sentir desprezível. Sou o mais execrável dos racistas. Sou o mais asqueroso dos
misóginos. Nazistas que massacravam crianças enquanto riam de suas patéticas
súplicas são meu ideal, infantes que morrem esmagados sob os negros tacões dos
justiceiros, o martírio deles é minha regra! Benditos sejam os que inventaram
todas as guerras e suscitaram todas as dores e separaram mães e filhos e
torturaram todos os justos!
Olho a rua, está tudo em ordem. Tudo em ordem.
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