Caí vítima da maldição
de Lasch. A de que os tatibitates tecnológicos 1) não dão conta da nossa
"alma", 2) nos afastam desesperadoramente dela e 3) fazem de nós
pobres alienados indefesos do mal oculto que guardamos aqui dentro.
Por isso Lasch é um
bom primeiro passo para quem se aventurar a encarar Heidegger.
Dou uma guglada,
caio num site qualquer, bato o olho, o autor tasca que Cultura do narcisismo
está datado, lá vou eu de novo buscar um tico de conforto para este meu
fatigado olhar.
Outra noite sem
sono, dou uma guinada, resolvo rever Caro Francis.
Sofrível como documentário. Não abre cinco por cento de Francis. Ele mesmo reclamava, claro,
entre outros, das limitações do cinema. Noventa por cento da humanidade se
prostrar ante uma tela e Sérgio Augusto dedicar a existência a lançar encômios
sobre os ombros à sétima arte não a eleva muito acima da porcaria que de fato
é. Francis tem tudo a ver com literatura. Diante dela, literatura, seu
jornalismo, seu polemismo, não restam lá muito relevantes. Mais que escritor,
foi seu próprio grande personagem. Mais que criador, desenvolveu uma vida que
considerava minimamente bastante para ele. No fim, e o que interessa, é que
teve de ser o que foi para poder escrever. Mais ou menos como Vinícius teve de
atravessar a existência de pileque para amar. E escrever. E Hemingway e Robert
Lowell. Raros são os daltons.
Mas o documentário
merece ser assistido pela meninada que perdeu a chance de o ler duas ou três
vezes por semana na Folha e depois no Estadão. O maior cronista brasileiro de
todos os tempos. Period.
Paragraph.
Para a molecada que
se interesse, aqui vai uma amostra grátis: “Escrever é a maior satisfação que um autor pode ter, um diálogo íntimo com
um leitor desconhecido. É o que sinto em passagens de Joyce, Dostoiévski e
outros favoritos, a impressão de que eles escreveram aquilo exclusivamente para
mim.”
Seguidas porretadas
dessa veemência/potência/clarividência bem ali no jornal, ao lado de notícias
sobre Sarney, Ulysses Guimarães, Lula. Logo cedinho, durante ou não o café da
manhã à discrição do freguês. Era ser salvo do inferno sob a operação dum
milagre, por milagre, insuspeito. Entrava planando nos céus do pensamento
livre, e puro, reconfortado por saber que havia inteligência, das fartas, neste
mundo de boçais e primitivos que não permitem que nos esqueçamos obsessivamente
de que faltam dez mil anos para o fim da barbárie. E pelos céus prosseguia
flanando, esquecido dos homens sujos, até atingir a última linha da avalanche,
embora igualmente infernal, igualmente celestial. Um palavrório entuchado de
pensamentos e impressões a se atropelar, se comendo pelas pernas, tentando
chegar primeiro que os outros e as outras à glândula gustativa do leitor.
Técnica a se exercitar quase obscena em sua desenvoltura bem diante dos meus
olhos, a se consumar magistral num deboche cordial ao leitor desprevenido.
Acima de tudo, o estilo como fim em si, a imperiosidade de marcar o texto com o
ferro das próprias percepções, que, especialíssimas, não podem simplesmente
verter-se para a banalidade do mundo qual batatas derramadas dum saco de feira
a se rasgar subitamente. A marca estilística não encontrável alhures, o drible
maneiro, e para quem quisesse, imperceptível, à poesia fácil, a esquiva
desconcertante do esperado, e até aguardado, a cisma do leitor de repente
curioso em descobrir de que tipo de destilaria metafísica emanava o feitiço.
Até a renovada descoberta, a cada leitura, de que nas mãos dum mágico a língua
encanta.
O documentário traz
uma pitada de cada Francis frustrante para os que o admiram. Mas parece estar
tudo lá. Dos gatos ao cuidadoso cultivador de amizades ao processo da Petrobras
à morte besta e infame, precipitada por um bando de burocratas. Depoimentos
emocionados de Sonia Nolasco, encômios insuficientes dos vários amigos. As
sempre sacais perorações de Sérgio
Augusto querendo elevar o cinema aos pés da literatura. E as indefectíveis
tentativas de análises sobre o Francis romancista reduzido a incapaz de
construir personagens deveras literários. Essa arenga já corria pelas bocas
quando ele ainda era vivo e deve ser desmentida. Irritante no documentário que
sejam dois de seus amigos, Luiz Schwarcz e Daniel Piza, os mais insistentes em
registrar a falha inexistente, a imperecível mania do brasileiro em achar que
ou o escritor atinge a esfera divina dum Shakeaspeare ou passa a ser digno da
lata de lixo. Piza faz uma tentativa de explicação com a ingenuidade que lhe
era peculiar. Schwarcz, petulante, conta que deu muitos conselhos a Francis que Francis acolheu. Pfiu.
O tira-gosto das
imagens atiçou a fome. Queria mais. E melhor. O grosso se foca na tevê, quase
desinteressante. Mas foi a oportunidade que tive de conhecer o então badalado Manhatan
Connection. Ficamos constrangidos pelos outros três participantes. É visível
o esforço que vira e mexe Francis se impõe de pisar no freio para não achatar
os colegas de mesa à insignificância. Foi aqui que fiquei conhecendo Nolasco e
pude saber como e quanto se amavam.
Faltou a literatura,
ou seja, quase tudo.
Nestes tempos
nauseabundos de corruptos ordinários explícitos e assumidos, de exaltação a
celebridades nulas e glorificação dos bandidos, faltou choramingar pela falta
que um Francis faz. Hei de fazê-lo sempre que me vir compelido a. Este deve ser
o terceiro panegírico que lhe rendo. Não há mal nenhum em chorar pelos valentes
que se foram. Melhor que chorar por causa dos bananas que sobraram.
E pensar que Nelson
Motta, anos ao lado de Francis em NY, não conseguiu aprender que um escritor
que preste não pode ir a público clamando que tá todo mundo cansado do
mensalão.
Se algum escritor
tirou das nuvens a existência-fantasia dos endinheirados, botando-a ao alcance
de nós caipiras enclausurados em nossa casamata feita de casca de ovo, foi ele,
sim. Não apenas, logicamente. Mas Francis descortinou num só rompante o mundo
dos ricaços aos nossos olhos perplexos. Antes éramos inconscientes da abismal
diferença entre nossa vidinha devotada ao trabalho e o glamur (ugh) permanente
dessa gente para quem grana não é problema, problema filosófico talvez maior
que o suicídio de Camus. Eis o muro intransponível. Você pode encontrar produto
equivalente em Proust, com a diferença concebível.
E foi ele quem nos
aproximou dos geniozinhos literários que fazem parte da raça contra a vontade.
Mastigando para nós os caraços que de outra forma nos entalariam na garganta.
Com ele aprendi a conhecer e a compreender pelo menos duas dúzias dos grandes.
Como diz alguém no documentário, isso é generosidade. Você nunca imaginaria,
não é? Para a galerinha empoleirada na frente da fila das esmolas
governamentais, bonzinho é Lula. Que dá dez real a cada caraminguá esfomeado e
dez bilhões a um Eike Batista. De quem Francis também se tornaria amigo do
peito, se vivo, o tipo de incongruência que não tem importância neste caso.
Acabou deixando o
gostinho azedo e macabro de mais uma constatação, entre tantas infindáveis, de
que se há um adjetivo apropriado para a definir a vida, este é “injusta”.
Os últimos momentos
do documentário falam dos últimos momentos de Francis, o processo movido por
diretores da Petrobrás contra ele por, num dos Manhatan Connection, ter
acusado a súcia de manter cem milhões de verdinhas na Suíça. De pronto foi
interpelado pelo mediador do programa sobre provas. O mediador parecia ser provido duma
anteninha vibrantemente sensível a potenciais enrascadas. De fato. Francis não
as tinha. Reclamou com Nolasco de o programa ser gravado às dez da manhã,
horário em que estava sempre deprimido, e suscetível a disparar temeridades. E,
sendo um inveterado cabotino, a receita desandou bem diante da câmara. Os
abutres da estatal souberam como atingi-lo em seu ponto mais fraco, a náusea
que lhe causavam as vicissitudes comezinhas, de que padecemos juntos.
Logo adveio a dor no
ombro, diagnosticada como bursite por seu médico em diagnóstico flagrante e
absurdamente furado. O documentário mostra que tanto Nolasco quanto vários
amigos pediram que fosse ver outro médico, debalde. Morria de medo de médico,
eu, idem. Temos essa inelutável desconfiança desses sujeitos que cospem sua
infalibilidade em nossas fuças a cada consulta, sendo os felizes portadores de
vasta e amedrontadora ignorância. São os hiperespecialistas que desconhecem
absolutamente tudo que não diga respeito à sua hiperespecialidade. Tenho uma
luz-espia que se põe a piscar sempre que me aproximo mais de dois metros de um. E um
alarme sonoro tipo caminhão de bombeiro que dispara a estrebuchar quando o
sabe-tudo desanda a discursar suas pílulas de sabedoria envenenadas de
impostura.
Segundo Nolasco,
Francis começou a se queixar da dor no ombro na sexta-feira e veio a morrer na
segunda seguinte. Quatro dias enfartando. Segundo Nolasco, reclamando de náusea
e do vômito que não conseguia pôr fora. No ínterim, o médico insistindo com a
bursite. Quem leu os artigos de Francis sabe que ele gastou muito teclado
denunciando a mediocriade intelectual e a frouxidão profissional desses pajés
de jaleco.
Imperdível Nolasco
contando da paixão de Francis por Wagner. Que botava pra tocar no último
volume, chacoalhando as paredes do apartamento e gerando queixumes da
vizinhança. Wagner é o compositor dos artistas que não suportam as barreiras
entre a arte e a vida que os medíocres teimam em tentar nos impor.
De repente o
documentário era curtinho e acabou.
Repasso as centenas de
devedês, nenhum reassistível. Exausto ao talo, não dá para ler. Sento diante do
computador, abro um arquivo qualquer dos inúmeros que comecei e parei na
metade.
Mas vamos pras
cabeças.
Domingo à noite.
Noite de domingo. Jesus meu pai pai meu, quanto já sofri numa noite dessas. E
sofri aquele sofrimento injusto, de cabo a rabo me perguntando, oh Lord, que
foi que fiz afinal?
Domingo à noite,
papai diante da tevê, mamãe ao lado de papai, a mana aos pés de ambos, este
vosso little blogger em estado infantil sonhando estar alhures ures ures onde o
Tejo deságua no rio dos Meninos me vendo a boiar na tona desta minha água
isenta de superfície.
Vejam que ainda
estou relativamente são. A essa altura papai ainda não tinha se levantado do
sofá para me recolher em seus braços de capinador dessas ervas daninhas que
nunca desistem de confrontar o valoroso, o ufanista pé de café.
Não ter pra onde se
voltar! Gosh, a fonte de todos os suicídios da roça.
Ter aonde se voltar
e mesmo assim não se voltar porque se voltar não é uma opção.
Você tem um dia que
é o dia do seu equilíbrio e você não pode deixá-lo passar.
Um. Um dia só.
Um em que terá de
dar dois ou três goles na Malzbier semicálida ao mesmo tempo em que mantém os
olhinhos de criança na folhinha de parede.
A infinita liberdade
de ser o que sou.
Quero ver Chico
Buarque acorrentado numa cela nos confins de Cuba por ter ousado uma
cançãozinha crítica ao regime.
Estou cercado de
vários Sabáticos do Estadão.
Maria Lúcia
Pallares-Burke resgata a trajetória do alemão Rüdiger Bilden.
Quem lê essas coisas?
Quem as escreve?
Todos precisamos
comer, sim, está certo.
Não, não há como ser
cem por cento íntegro. E uma pequena corrupçãozinha no dia a dia não há de
fazer mal. Esperavam que na facul eu tolerasse gente que passa a vida remedando
resgate. Fiz de conta, alguns meses. Os resgatistas venceram. Sempre vencem.
Haverá serviço mais
indigente que tentar retomar um texto abandonado? E não importa o tempo do
abandono. Pode ter sido há cinco anos, pode ter sido ontem à noite. Na maioria
dos casos, impossível fisgar outra vez o monstrinho abissal que se esgueira
gaiato sob as águas turvas da indolência herdada do primeiro vagabundo que
preferiu deitar num galho para desfrutar o néctar duma dúzia de pêssegos a
persistir na perseguição ao tatu.
Tenho aqui este
texto abortado em 1998, christ. Em todos, o ânimo evidente com a visita da
inspiração, a alegria de poder criar por minguados minutos que sejam. De
repente o corte do vazio, o vazio do corte. Na maioria, impossível descobrir
por quê. Estava indo tão bem, puta merda. Até minha mastodôntica preguiça
acordar. Nas horas mais impróprias. Lá se foi o interesse no assunto para não
voltar nunca mais. Vou reunindo umas gotas de disposição, releio várias vezes,
procuro me reimbuir, mergulho, me acorrento lá no fundo de respiração presa,
permito que a pressão me leve de volta à tona, imirjo, interiores me dão
claustrofobia, os meus mais ainda, me pelo de medo do que possa enxergar aqui
dentro, de me afogar em meu próprio vômito.
Quantas pecinhas
interminadas, intermináveis, perolazinhas esmeradas, promissoras e
decepcionantes.
Muitos textos,
muitos já perdi. Assim por perder. Sem imaginar onde ou quando. Da maioria
lembro apenas que eram fantásticos. Minha salvação. Provas cabais de que sou um
escritor, mesmo que sem público, ainda que sem livro publicado.
Um dos que mais me
arrependo foi aquele escrito há uns seis anos. Sobre a língua alemã. Devia ter
umas três páginas. Bom tamanho. Nem ligeiro nem profuso. Do texto não sobrou
lembrança, exceto que resplandecia de vigor e veemência. O fogo queimava
insentido. Acabara de descobrir a alma da língua naquele instante e estava
inchado de orgulho e alegria. Conseguira ultrapassar as óbvias tiradas sobre a
pobreza do português ante o alemão, conseguira me abster de apelar ao hoje
clichê de Heidegger de que não se filosofa plenamente senão no idioma que era o
dele. Desliguei o computador e fui dormir satisfeito como poucas vezes houve.
Não lembrei do texto senão três ou quatro dias depois. A lembrança me deixou
feliz. Abri meu arquivo geral em que guardo tudo que escrevo para eventual
revisão final. Sumiu. Comecei a abrir outros arquivos e nada. Horas depois
entreguei os pontos.
Nessas horas só me resta ouvir Bach comendo sopa de grão-de-bico
e me imaginando sob LSD, tentando me conformar que minha existência jamais terá
um auge, que devo gastar meu tempo com o Aurélio, a única leitura digna dum
cara feito eu.
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