A porta


Não posso ficar na sala. Estou só de passagem. Saio rumo à cozinha. Preciso de algo que deve estar ali. Ao passar pelo corredor, como já fizera milhões de vezes, dou com uma porta. Que faz aqui esta porta entre a sala e a cozinha? Não tinha me dado conta. Ou quem sabe tinha mas não quisera prestar atenção. Pensando bem, me lembro de certas manhãs, ainda sonolento, em que me passou vagamente pela idéia, “o que esta porta faz aqui? Aonde dará? Que estranho, aparecer assim de repente...”
Mas também não dou muita bola. Você já pensou quantas coisas estranhas passam por sua cabeça sem que queira se dar conta? Milhares por hora, milhões por dia. Detalhezinhos a que não vale a pena atinar mesmo. Ou então grandes, imensas aflições, medos, paúras e paixões em que você não se atreve a mexer para não acordá-los. Monstrinhos e monstrões que vicejam aí dentro, como se você fosse uma incubadora alienada.
Não, não se perturbe. Estamos apenas falando deles – não com eles. Que durmam. Existem para isso. Você sabe que estão lá, em algum lugar do escuro, sossegados, inócuos. Talvez até mesmo sonhando com você... E sabe que tudo estará bem enquanto estiverem assim.
Mas tem dia que faço tanto barulho, que não sei como não acordam! Talvez apenas finjam.
Sinto um frio no estômago.
Passei noventa e nove por cento da minha vida avançando, e retrocedendo, pé ante pé, tomando todo cuidado para não pisar num graveto, numa folha seca, desviando dos abajures para não derrubá-los, evitando tropeçar num chinelo. Nem respirar direito respirei. Quantas vezes segurei o diafragma para não acordá-los. Estômago apertado. Punhos crispados. Cabisbaixo. Angustiado de aflição de despertar os desgraçados. Noventa e nove por cento da minha vida assim.
E esse tempo todo eles acordados!
Não pode ser. Estou viajando, como tão deliciosamente diz a moçada hoje em dia. Viajando sem destino. Às vezes acontece. Começo a pensar, e penso que estou pensando, mas logo vejo que não, estou apenas viajando. Mais que só às vezes: freqüentemente. Não! Já que estou me confessando, vou desembuchar duma vez: sempre! Não penso; deliro, tergiverso, flutuo, afundo, flúo, devaneio, desatino.
Há quanto tempo não viajo de verdade. Quem dera poder, deixá-los trancados em casa. Mas também não posso. Tenho minhas coisas para cuidar. Minhas coisas. O que seria de mim sem elas? O modo como arrumo os livros na estante, como alinho os sapatos na prateleira, como deixo displiscentemente as almofadas cair no sofá dando a impressão de que estão desarrumadas (uma desarrumação, mas, que faz parte dum todo). Estas são minhas coisas. Orquestradas. Como viver sem elas?
Minha orquestra de músicos silenciosos. À espera. O que me importa é que estejam aqui. Tocarão o dia que eu morrer. Sim, é para isso que existem. Assim como eles. E se eu sair em viagem, quem ficará aqui para escutá-los? E a casa, meu pai! Quem ouvirá os discretos ruídos cotidianos da minha casa? O ranger das portas, o tiritar das venezianas, o estalar da mobília, o ecoar nas paredes, o gorjear dos pássaros lá fora, o roncar dos carros na rua. Quem estará aqui para ouvi-los? De que serve um ruído se ninguém o escuta?
Não foi esta a razão que levou os dinossauros à extinção, afinal?
E esta porta. Que fazer com ela?
Virgem umbral. Jamais penetrado. Será meu fatídico hímen? Por que logo uma porta? Bem que podia ser um desses trastes que guardo no armário. Um que fosse menos sugestivo, não se prestasse a representações, não desse margem a tantas metáforas quanto a porcaria duma porta. Que faço, afinal?
Mesmo sem abri-la, mesmo sem jamais tê-la cruzado, sei o que oculta.
O outro lado.
Se decidir abri-la, provavelmente darei com uma escada. Uma escada descendente, pois todos os meus caminhos levam para baixo. Apenas os primeiros degraus estarão à vista, claro; o restante certamente se perderá na penumbra lá no fundo.
Devo descer? Ainda estou empunhando a maçaneta, representando a mim mesmo o Grande Indeciso no eterno, torturante auto-teatro que estou inexoravelmente condenado a encenar. Vou? não vou?, me pergunto frivolamente, sabendo que minha decisão já estará tomada e nada me fará desistir.
Nunca desisto. Não por qualquer razão mais nobre nem por um senso de persistência. Nunca desisto porque sou curioso demais. E aprendi que só os patéticos desistem. Todos os caminhos que tomei em minha vida segui até o fim, só para ver aonde dariam. Mesmo quando sabia que estava no caminho errado. Agora não será diferente. Ainda mais em se tratando duma porta. Com tantas possibilidades.
Dou um passo, auscultando a escuridão lá embaixo.
Pena que não esteja sendo filmado. Haverá uma câmara oculta neste negrume?
Dou o segundo passo e cruzo. Definitivamente. Já não há volta. Daqui não retorno, haja o que houver.
Ponho-me a descer. Cauteloso a princípio, logo me acho familiarizado com o lugar e meus movimentos adquirem mais desenvoltura.
Aos poucos meus olhos se habituam ao escuro – e não consigo evitar pensar na facilidade com que sempre me habituo ao escuro – e começo enxergar algumas formas.
Embora ainda indistintas e incolores.
Prossigo por dez, quinze minutos.
Como foi possível existir tão longa escada dentro da minha casa sem que soubesse?
Durante todo o tempo estou ciente e cioso das minhas velhas amarras internas, os nós, apertos e embaraços que me protegem desde que existo.
Vou escutando nada além dos meus próprios passos, até que começo a ouvir algo ao longe. Parece um vozerio. Um vozerio abafado. Que decresce à medida que avanço. E quanto mais avanço, mais distintas ficam as vozes e mais baixo falam.
Como se não quisessem se fazer ouvir.
De repente o som das vozes cessa e o farfalhar de roupas e ruídos indistintos de movimentos discretos se realça no silêncio. Não estou só.
Não estou só.
Curiosamente, sinto um certo conforto e ao mesmo tempo espanto por não ter me aterrorizado. Pela primeira vez, penso, não quero saber o porquê de estar onde estou ou de fazer o que faço. Pela primeira vez não quero duvidar, especular, negar. Estou em casa e isso basta. Mesmo que nesse... nesse...
Pelo farfalhar de roupas percebo que estou rodeado de... pessoas? Entes? Fantasmas?
– Bem-vindo! – uma voz exclama em algum lugar na escuridão.
Não me assusta a repentina pergunta. E, com calma suficiente para examinar em mim mesmo como meus sentidos estão reagindo, verifico que até agora estou bem.
Estou bem.
– Obrigado pela acolhida!
– Estamos com presença de espírito hoje!
– Sou sempre bem-educado. Sobretudo com desconhecidos.
– Não sou exatamente desconhecido...
– Nos conhecemos de onde?
– Exatamente daqui.
– Nunca estive neste lugar antes.
– Esteve, sim. Vem aqui todos os dias.
– O senhor deve estar me confundindo...
– Como sabe que sou homem?
– Bem, a voz...
– Posso muito bem ser mulher.
– Nunca se sabe.
– Hm, estamos bem-humorados hoje.
– Sempre estou. Mesmo nestas circunstâncias.
– Não parecia muito, lá em cima.
– Lá em cima onde?
– No alto da escada.
– Ah, estamos lendo pensamentos hoje!
– Aliás, parecia deveras... digamos... acabrunhado enquanto descia a escada.
– Sim. Sempre acontece quando fico sozinho com meus pensamentos.
– Já esperava essa sua clássica resposta de quem não conhece sequer o próprio rumo.
– Ninguém conhece o próprio rumo.
– Mais uma clássica afirmação dum desorientado. Os membros da maioria sabem aonde vão.
– Pensam quê.
– No fundo, você os inveja. Queria saber em que direção está indo, ter noção dos pontos cardeais, saber onde é o leste, o norte, de que lado nasce o Sol.
– Bah! Essa é a clássica idéia que fazem os pragmáticos a respeito dos que não o são. Você é que está confuso por eu não ter indagado que lugar é este nem quem é você.
–Reles sofisma.
– Gente como você acha que sabe tudo. Pior: que precisa saber tudo.
– Clássica resposta de quem não sabe nada!
– Clássico isso, clássico aquilo. Confunde dar sempre o mesmo padrão de resposta às dúvidas com saber. Isso é apenas ser cego. Aliás, ser cego cai bem para quem vive na escuridão.
– Que escuridão?
– Ora, esta escuridão! Que outra seria?
– Mas aqui não há escuridão alguma. Ser incapaz de enxergar não significa que o mundo é escuro.
– Bah! Nada mais que frases de efeito. Aplicar um belo bordão a cada incógnita que lhe surge pela frente não quer dizer saber.
– Estou vendo que o comprade não resiste a muita pressão.
– A ironia é a arma dos mentirosos.
– Vejo também que a diplomacia não é um dos seus fortes.
– Que mais poderia esperar de quem vive no mundo das sombras? Com licença.
Dizendo isso, retomo resolutamente minha caminhada à frente, mesmo sem poder enxergar coisa alguma.
De repente, a escuridão desaparece e me vejo na cozinha. Abro a geladeira e apanho uma latinha gelada. Que bom ver tudo às claras de novo. Embora o que eu queria de verdade era pegar a fôrma de gelo e me empanturrar de uísque. Mas o médico proibiu, o miserável.

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