Se
quero me encarar no espelho ou sem, sou um covarde e minhas palavras fogem
assustadas como se minha consciência acendesse a luz na alta madrugada dum
domingo.
Foi
assim ontem, foi assim antes de ontem, foi assim toda a semana e assim tem sido
há sei lá quantos meses.
Exaurido de tanta covardia,
hoje decidi me enfrentar. Por isso você haverá de perceber que ainda vocifero
tremulamente. E meus braços riscam o ar não com vigor e sim com a tibieza dos
inseguros. E meus pés pousam no chão irresolutos do seu lugar. E é assim que eu
ou você poderíamos prosseguir a encher a linguiça desta fatídica noite de
domingo até as paredes se derreterem num mingau viscoso em que naufragaria e se
afogaria a raça que repudio desde o nascimento.
Mas
porém.
Junto
as mãos numa prece — é esta minha primeira vez e portanto rogo tua
misericórdia.
Não repara nas palavras. Aquelas a que estou acostumado desde criança
não me servem agora, como está tão pateticamente patente. Feito um
supercomputador capaz de um zilhão de cálculos por nanossegundo, meu cérebro
desclassifica e refaz e subtrai e trai e monta e craveja ávido por meu velho
sossego de senhor de mim mas a dissertação — quão horrorosamente óbvio
está — não haverá de resistir ao escrutínio rigoroso da professora.
(Dona
Eva, preciso duma pausa e suplico. Meu copo, digo, minha caneta-tinteiro secou.
É apenas um pecadilho dos sôfregos.)
—
Laranjeira!
A
classe emudece. Todos voltam os olhares e cada um volta o olhar para a fessora.
Ninguém
responde.
—
Laranjeira! Você era minha última esperança!
Dona
Isaltina está com os olhões de coruja pagã pregados na minha cara.
A
classe gira suas cabecinhas para o meu lado.
Por
causa do caroço de manga-rosa entuchado no meu esôfago, renuncio a negar. Mas
porém.
Logo fazer que não com
minha cabeçorra assarapantada.
Então a fessora se dá
conta. (Embora se furte a vestir a carapuça.)
— Vaccari!
Engulo o caroço da
manga-rosa. Sem saliva. Sem afeto.
— Que é que você está
pensando? Hein? Diga! Responda!
Minha longa toda vidinha se
reduz à sensação do intenso rubor no rosto. Não me cabe sequer o direito de
espremer as pálpebras.
— Você
teve a coragem de fazer uma dissertação sobre COVARDIA?
E
dá-lhe pontos de interrogação que poderiam assorear o oceano Pacífico.
As
cabecinhas estão apontadas na minha direção. Algumas se permitem um risinho de
deboche nervoso.
Estou
com a boca qualhada de uísque. Os nervos das pernas e dos braços tensos. O saco
retesado. Fiz vasectomia à toa.
Preciso
sair. Dar uma volta no quarteirão. Se tiver forças, duas. Repisar meus passos.
Rever e me reconfortar com minhas xilogravuras murais que arrasto atrás de mim
desde então. Atentar à reverberação do luar em cada folha nos parcos jardins
dos prédios. As plantas são minhas amiguinhas.
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