Todos os dias
por volta das sete da manhã o mendigo chega e instala-se em seu ponto habitual
diante da porta de aço. É uma antiga loja de tecidos na 25 de março chamada Rollenstein
& Filhos. O dono é Jaime Rollenstein, foragido da justiça e provavelmente
escondido em algum lugar na tríplice fronteira Brasil/Paraguai/Argentina. A
loja faliu há uns quinze anos. A rua está cada dia mais movimentada.
Na calçada do
outro lado, também na esquina, os olhos só manjando.
O mendigo tem
aquele ar solene superior de todos os mendigos, evitando olhar os olhos como se
não valesse a pena perder tempo com seres primários incapazes de apreender os
desígnios divinos da mendicância. Vez ou outra dirige olhares vagamente
debochados como se os outros ainda estivessem num estágio subdesenvolvido da
evolução.
Passa as costas
da mão no degrau para espantar a sujeira, depois senta-se e recosta o corpo
cansado na porta. Abre a pasta — pasta que sempre traz à mão, às vezes também
levando — e retira uma folha de papel dobrada em dois. Põe a pasta de lado,
desdobra a folha de papel. Segurando-a aberta, estende o braço à frente.
Há duas semanas
vem agindo exatamente da mesma forma, com os mesmos gestos e trejeitos. Desde que
começou a ser seguido. Depois de retirar a folha da pasta e estendê-la à frente
do rosto, permanece assim parado até a chegada do outro. Este parece procurar
passar por cliente recebendo uma encomenda, sabe como é, se destacando duma
hora para outra da turba de transeuntes como quem não quer nada.
O segundo se
aproxima e estanca à frente do mendigo.
— Vai hoje,
doutor? — por leitura labial é identificada a pergunta do mendigo, que continua
segurando o papel com o braço estendido.
O outro apanha
o papel, perscruta dissimulado os arredores, dobra e enfia no bolso da camisa. Antes,
porém, os olhos, pelo binóculo, captam algo do conteúdo do papel. Meia dúzia de
linhas. Ontem eram dez. Há dias que são mais, outros, menos. Caligrafia
cuidadosa que denota esmero de quem as escreveu. O outro assente, tira umas
notas do bolso das calças, entrega ao mendigo e se afasta.
— Deus lhe
pague, doutor! — o pedinte agradece, talvez em voz rouca, fingindo gratidão
genuína.
Na turba da 25
composta de fauna relativamente variada perambulam fregueses das lojas de
armarinhos e bugigangas, gente sobretudo do interior e de outros estados,
apanhadores de papel, office-boys, prostitutas, outras figuras cuja ocupação
não é fácil distinguir de longe e, alguns, nem de perto. Muitos são chinas e brasiguaios.
Depois que o segundo
homem se afasta, o mendigo permanece sentado no degrau da antiga loja de Rollenstein,
braço sempre estendido para o alto em sinal de franqueza e acessibilidade.
Assim como ontem e nos demais dias, esperam-se mais uns vinte minutos para ver
se há outros desdobramentos de importância. Tudo indica que aquele outro
sujeito é o único que se aproxima do mendigo para apanhar a folha de papel e
depois pagar.
Em meio aos
preparativos para partir algo chama atenção. (“É curioso como algo chama atenção em certos dias”, pensaria a
cabeça depois.) Lançam os olhos um último olhar distraído na direção do pedinte
e veem que ele está retirando uma nova folha de papel de sua pasta. Partida
cancelada, claro, o corpo se postando novamente para prosseguir a vigia.
Começam os olhos a girar para compreender o maior campo de visão possível,
tentando cobrir tanto o pessoal que vem do parque dom Pedro quanto o que chega da
Florêncio.
Como sempre
sentadinho bonitinho em seu posto, a horas tantas um tumulto é deflagrado a
alguns metros de distância. Sem recolher o braço que segura a folha, gira a
cabeça e vê um grupo de pessoas brandindo as mãos e vociferando alvoroçadas. Há,
perto, uns policiais fardados. Ele desvira a cabeça e se deixa distrair novamente
pelo vai-e-vém dos bancários, carregadores de placas, ambulantes e punguistas
no rio de gente que escorre pela rua.
— É este! —
alguém berra nas proximidades.
Lhe arrancam a
folha da mão. Sobressaltado, olha em volta. Está rodeado por um grupo de
alvoroçados e policiais.
— É esse aí
mesmo! — Um homem com expressão ultrajada lhe aponta o dedo em riste.
Aturdido, o
mendigo reconhece no homem um de seus fregueses.
— É! — Uma mulher
também se adianta com ar indignado, pinta de quem está de bem com a vida e bem
de vida, trajando um vestido florido e leve por causa do calor. — Ele mesmo!
— Vamos por
partes! — pede um dos peêmes, impondo autoridade. — Quem foi que viu?
— Nós! — Um
rapaz de rosto retorcido de revolta dá um passo à frente.
— O que foi que
o senhor viu?
— Vimos esse
sem-vergonha tirar um livro de dentro daquela pasta ali no chão e copiar umas
linhas nesse papel aí que o senhor tem na mão!
— Quando foi
isso?
— Hoje cedo, às
seis e quinze.
— Onde?
— No banheiro
público da Praça da República — O rapaz aparentemente não dá importância à
involuntária aliteração.
— Safado! —
exclama a barnabé. As veias em sua testa denotam que está com ganas de saltar
ao pescoço do pedinte.
— Desgraçado! —
ajunta um gerente de lanchonete. — Me enganou todos esses anos.
— Por que o
senhor seguiu o elemento? — o guarda pergunta ao rapaz que alegadamente
havia testemunhado a ocorrência.
— Porque todos já
estávamos desconfiados e hoje resolvemos dar um flagra no cafajeste!
— Com licença
seu guarda! Podemos examinar o papel?
O desconhecido
que se dirige ao policial é um homem de terno italiano e ar incomensuravelmente
distinto.
— O senhor é
quem?
— Somos o crítico. — O sujeito crispa a boca e
o queixo, tensionando as pálpebras e franzindo uma funda ruga no meio da testa
em sinal de dignidade.
O peême lhe entrega
a folha de papel.
O crítico
retira um par de óculos do bolso lateral do paletó e instala-os sobre o nariz.
Todos aguardam respeitosamente, os olhos olhando-o com expectativa, confiança,
ar escandalizado e satisfação vingativa enquanto ele, sempre de cenho enrugado,
meneando várias vezes a cabeça para cima, para baixo e para os lados, analisa a
evidência do crime.
— Não há
dúvida! — exclama triunfal ao findar a leitura. — É plágio. Plágio descarado!
O grupo em
volta, ao qual já se adicionara a habitual turba de curiosos que vive a zanzar
pelas ruas sem ter o que fazer na vida, emite uma série de impropérios,
queixumes, lamentos, suspiros de gozo e fungadas de tédio. Alguns mais
iracundos ameaçam partir para cima do famigerado.
O policial,
sempre confiante em si e na autoridade que representa, põe a mão no cabo de
revólver guardado no coldre à cintura e todos se calam prontamente.
— Pode algemar
— ordena a um subordinado, indicando o meliante com a cabeça.
Sem entender lhufas
nem bulhufas, o pedinte estende docilmente os braços para receber as algemas.
— Esta folha
vai servir de prova. Fregueses lesados e crítico, favor me acompanhar — O policial
dobra e enfia o papel no bolso e parte pela calçada à frente do grupo,
provavelmente rumo ao distrito policial. Os demais policiais escoltam o
mendigo, retendo-o pelos braços, protegendo-o da fúria da turba inconformada.