Thirty-Second of the Year

Todos os dias por volta das sete da manhã o mendigo chega e instala-se em seu ponto habitual diante da porta de aço. É uma antiga loja de tecidos na 25 de março chamada Rollenstein & Filhos. O dono é Jaime Rollenstein, foragido da justiça e provavelmente escondido em algum lugar na tríplice fronteira Brasil/Paraguai/Argentina. A loja faliu há uns quinze anos. A rua está cada dia mais movimentada.
Na calçada do outro lado, também na esquina, os olhos só manjando.
O mendigo tem aquele ar solene superior de todos os mendigos, evitando olhar os olhos como se não valesse a pena perder tempo com seres primários incapazes de apreender os desígnios divinos da mendicância. Vez ou outra dirige olhares vagamente debochados como se os outros ainda estivessem num estágio subdesenvolvido da evolução.
Passa as costas da mão no degrau para espantar a sujeira, depois senta-se e recosta o corpo cansado na porta. Abre a pasta — pasta que sempre traz à mão, às vezes também levando — e retira uma folha de papel dobrada em dois. Põe a pasta de lado, desdobra a folha de papel. Segurando-a aberta, estende o braço à frente.
Há duas semanas vem agindo exatamente da mesma forma, com os mesmos gestos e trejeitos. Desde que começou a ser seguido. Depois de retirar a folha da pasta e estendê-la à frente do rosto, permanece assim parado até a chegada do outro. Este parece procurar passar por cliente recebendo uma encomenda, sabe como é, se destacando duma hora para outra da turba de transeuntes como quem não quer nada.
O segundo se aproxima e estanca à frente do mendigo.
— Vai hoje, doutor? — por leitura labial é identificada a pergunta do mendigo, que continua segurando o papel com o braço estendido.
O outro apanha o papel, perscruta dissimulado os arredores, dobra e enfia no bolso da camisa. Antes, porém, os olhos, pelo binóculo, captam algo do conteúdo do papel. Meia dúzia de linhas. Ontem eram dez. Há dias que são mais, outros, menos. Caligrafia cuidadosa que denota esmero de quem as escreveu. O outro assente, tira umas notas do bolso das calças, entrega ao mendigo e se afasta.
— Deus lhe pague, doutor! — o pedinte agradece, talvez em voz rouca, fingindo gratidão genuína.
Na turba da 25 composta de fauna relativamente variada perambulam fregueses das lojas de armarinhos e bugigangas, gente sobretudo do interior e de outros estados, apanhadores de papel, office-boys, prostitutas, outras figuras cuja ocupação não é fácil distinguir de longe e, alguns, nem de perto. Muitos são chinas e brasiguaios.
Depois que o segundo homem se afasta, o mendigo permanece sentado no degrau da antiga loja de Rollenstein, braço sempre estendido para o alto em sinal de franqueza e acessibilidade. Assim como ontem e nos demais dias, esperam-se mais uns vinte minutos para ver se há outros desdobramentos de importância. Tudo indica que aquele outro sujeito é o único que se aproxima do mendigo para apanhar a folha de papel e depois pagar.
Em meio aos preparativos para partir algo chama atenção. (“É curioso como algo chama atenção em certos dias”, pensaria a cabeça depois.) Lançam os olhos um último olhar distraído na direção do pedinte e veem que ele está retirando uma nova folha de papel de sua pasta. Partida cancelada, claro, o corpo se postando novamente para prosseguir a vigia. Começam os olhos a girar para compreender o maior campo de visão possível, tentando cobrir tanto o pessoal que vem do parque dom Pedro quanto o que chega da Florêncio.
Como sempre sentadinho bonitinho em seu posto, a horas tantas um tumulto é deflagrado a alguns metros de distância. Sem recolher o braço que segura a folha, gira a cabeça e vê um grupo de pessoas brandindo as mãos e vociferando alvoroçadas. Há, perto, uns policiais fardados. Ele desvira a cabeça e se deixa distrair novamente pelo vai-e-vém dos bancários, carregadores de placas, ambulantes e punguistas no rio de gente que escorre pela rua.
— É este! — alguém berra nas proximidades.
Lhe arrancam a folha da mão. Sobressaltado, olha em volta. Está rodeado por um grupo de alvoroçados e policiais.
— É esse aí mesmo! — Um homem com expressão ultrajada lhe aponta o dedo em riste.
Aturdido, o mendigo reconhece no homem um de seus fregueses.
— É! — Uma mulher também se adianta com ar indignado, pinta de quem está de bem com a vida e bem de vida, trajando um vestido florido e leve por causa do calor. — Ele mesmo!
— Vamos por partes! — pede um dos peêmes, impondo autoridade. — Quem foi que viu?
— Nós! — Um rapaz de rosto retorcido de revolta dá um passo à frente.
— O que foi que o senhor viu?
— Vimos esse sem-vergonha tirar um livro de dentro daquela pasta ali no chão e copiar umas linhas nesse papel aí que o senhor tem na mão!
— Quando foi isso?
— Hoje cedo, às seis e quinze.
— Onde?
— No banheiro público da Praça da República — O rapaz aparentemente não dá importância à involuntária aliteração.
— Safado! — exclama a barnabé. As veias em sua testa denotam que está com ganas de saltar ao pescoço do pedinte.
— Desgraçado! — ajunta um gerente de lanchonete. — Me enganou todos esses anos.
— Por que o senhor seguiu o elemento? — o guarda pergunta ao rapaz que alegadamente havia testemunhado a ocorrência.
— Porque todos já estávamos desconfiados e hoje resolvemos dar um flagra no cafajeste!
— Com licença seu guarda! Podemos examinar o papel?
O desconhecido que se dirige ao policial é um homem de terno italiano e ar incomensuravelmente distinto.
— O senhor é quem?
 — Somos o crítico. — O sujeito crispa a boca e o queixo, tensionando as pálpebras e franzindo uma funda ruga no meio da testa em sinal de dignidade.
O peême lhe entrega a folha de papel.
O crítico retira um par de óculos do bolso lateral do paletó e instala-os sobre o nariz. Todos aguardam respeitosamente, os olhos olhando-o com expectativa, confiança, ar escandalizado e satisfação vingativa enquanto ele, sempre de cenho enrugado, meneando várias vezes a cabeça para cima, para baixo e para os lados, analisa a evidência do crime.
— Não há dúvida! — exclama triunfal ao findar a leitura. — É plágio. Plágio descarado!
O grupo em volta, ao qual já se adicionara a habitual turba de curiosos que vive a zanzar pelas ruas sem ter o que fazer na vida, emite uma série de impropérios, queixumes, lamentos, suspiros de gozo e fungadas de tédio. Alguns mais iracundos ameaçam partir para cima do famigerado.
O policial, sempre confiante em si e na autoridade que representa, põe a mão no cabo de revólver guardado no coldre à cintura e todos se calam prontamente.
— Pode algemar — ordena a um subordinado, indicando o meliante com a cabeça.
Sem entender lhufas nem bulhufas, o pedinte estende docilmente os braços para receber as algemas.
— Esta folha vai servir de prova. Fregueses lesados e crítico, favor me acompanhar — O policial dobra e enfia o papel no bolso e parte pela calçada à frente do grupo, provavelmente rumo ao distrito policial. Os demais policiais escoltam o mendigo, retendo-o pelos braços, protegendo-o da fúria da turba inconformada.