Da nova série “Contos para crianças”, I


Ivone está morrendo de calor. O lenço de papel deslizado na testa sai encharcado. O bafo escaldante pede, suplica um dia na praia. Um pelo menos. E o apê no Guarujá tá tão lindinho com o novo piso frio cor de ouro-velho. Ai, ai, ai, que fazer? Próximo fim de semana, quem sabe.
Zezinho solta um gemidinho. Está dormindo no banco traseiro, o peralta. Feito um anjinho.
Ivone anda meio perturbada, pra dizer o mínimo. Na verdade tem noite que até perde o sono. Antes de ontem – Deus meu! – acordou na porta do elevador. Se fosse um daqueles prédios velhos do Centro, podia ter despencado no fosso.
No dia seguinte ficou pensando, será? Num gesto seco, a mão aberta tampou a boca, tentando proteger seus ouvidos. Se assustou com o próprio pensamento. Agora, dirigindo – ou melhor, tentando – no trânsito engarrafado da Joaquim Eugênio de Lima, nem se esforça mais. O pensamentinho solerte, a ideazinha indiscreta está pulsando lá dentro em algum lugar. Não, não pode se entregar. Melhor uma ova!
Zezinho geme de novo. Ainda bem que o ar-condicionado está funcionando direito. Já teve de trocar o termostato duas vezes.
Uma que ainda tem cinquenta e sete prestações do Honda Civic pra pagar. Não pode deixar mais essa nas costas do Jorge, coitado. Ele tem pela frente longuíssimas sessenta e quatro mensalidades do seu Camry. Bem, pra que assento aquecido, me diga? Olha só o calor. Trinta e sete à sombra! É, mas e no inverno. Você sabe que sou o bicho mais friorento do mundo. Passa do catorze, brruuu, ai que frio.
Não insistiu, não há quem dê jeito quando Jorge enfia uma ideia na cabeça. E o dinheiro é ele quem ganha, tem direito a um capricho. E no fundo tá certo, vai que amanhã tem um enfarte e o dinheiro guardado todinho no banco, pra quê?
Assim os pensamentos vão indo, leves, e voltando, pesados. Ivone morre de medo de admitir que uma luta está se travando bem ali dentro dela. Pior: longe de seu alcance, fora de seu controle.
Há dias vem se concentrando. Lamenta a paz perdida. Precisa voltar a ser o que era antes daquela maldita excursão sonambúlica.
O “sonambúlica” era por conta do doutor Varella. Cruz credo, palavrão feio! Até arrepia. O “excursão” fora gracinha do Jorge. Fedepê! Queria ver se fosse com ele, ia correndo pro spa do primo em Itapecerica. Duas semanas do bem-bom, comidinha de primeira, Manuela, esposa do Ernesto, o primo, diz que rola champanhe e... mulher! Fedepê! Ivone nunca tinha ligado pras escapadas do marido mas, depois do “excursão sonambúlica”, decidiu, vai ser tudo diferente agora. A partir de hoje a amélia dá lugar a Ivone, a guerreira!
Zezinho se vira. Ivone escuta um fiozinho de vento. São gases, tadinho. Abre meio vidro pra ventilar.
O termômetro na Paulista indica trinta e sete graus, meu Pai amado! Viram só o que dá não cuidar do planeta? Debochavam que era tudo fantasia dos cientistas, aí está. Manuela leu no New York Times que São Paulo vai sofrer uma onda de quarenta e quatro graus daqui a dois ou três anos. Que bom! ria enquanto contava. Vamos passar o verão no spa do Ern!
Uma vez leu em algum lugar que a raça humana nunca acabaria, que quando a vida na Terra estivesse prestes a chegar ao fim por causa das agressões do próprio ser humano, eles já teriam construído um foguete com suficiência e autonomia para chegar a outro planeta semelhante ao nosso e ali a humanidade renasceria. Ivone gostava de pensar nessa hipótese quando se via demasiado angustiada. Se reconfortava sabendo que a odisseia humana não terminaria num deserto de areia escorchante, mesmo sabendo que nem ela nem sua família estariam naquele foguete miraculoso, ó Deus pai...
Dá graças aos santos por aprendido a importância da religião, por ter tido a sabedoria de prezar a palavra da Igreja. Que seria de nós sem a família? Por um instante se alegra com a sensação de dever cumprido. Tudo bem, não nega, cometeu seus pecadilhos nos primeiros anos depois de casada. Ricardo... Depois teve o Wagner... Leonardo... Ah Léo, como era bom de... Bah, afasta uma ameaça de autorrecriminação. Se casou tão novinha. Se soubesse, tinha conhecido a vida antes. Foi pro altar praticamente virgem. Sua mãe morria de medo de tocar no assunto. De suas amigas, nenhuma era esclarecida o bastante pra lhe dar uma dicas. Ah Léo, se te encontrasse de novo...
Zezinho se revira no banco. Não, queridinho, não vá acordar. Inda falta meia-hora. Dorme quietinho.
Como sempre ocorre quando se põe a pensar na vida, lembra do curso de psicologia que não terminou. Jorge estava com pressa de se casar. Puxa vida, faltavam só dois anos. Não, talvez não mudasse muita coisa, mas pelo menos teria um diploma. A Clau bem que alertou, você vai se arrepender, mulher não pode ser dependente de marido, não repita a história da sua mãe.
Não deu outra. Depois de casada fez um curso de culinária italiana, virou a rainha da lasanha. E sabe preparar um filé de frango com gorgonzola que deixaria o papa com água na boca. Seis meses depois achou que Jorge parecia meio devagar na empresa de higienização industrial de que era dono, resolveu encarar um curso de espanhol com ênfase em informática, sempre disseram que o espanhol é a língua do futuro, então...
Então se deixou encantar pelo professor. Sim, Léo, o toureiro. Fizeram miséria dois, três meses. Jorge andava, e anda, sempre às voltas com seus negócios. Ah, que delícia de touradas. De repente o professor se engraçou por outra aluna, aquela vaquinha, Ivone ficou chupando o dedo, filho duma puta.
Zezinho acorda em estado de pré-convulsão, Ivone é obrigada a parar o carro numa das entradas de táxi da Paulista. Desce, abre a porta traseira, entra e toma o menino no colo.
Ele está recoberto de “confete”.
Confete é como ela e Jorge se acostumaram a chamar a doença do filho.
Está exausta de médicos. Deve ter se consultado com mais de cem nos últimos dois anos. Cada um deles afirmou nunca ter visto algo parecido. Não têm a mínima ideia do que se trata. Nenhum ousou especular sobre a origem do mal, muito menos sobre a possível cura. Não sabem nem mesmo como chamar aquela doença.
Seus cabelos caem assim que nascem, a pele escama, os olhos não param de lacrimejar.
O doutor Ruiz, de cujo consultório acabou de sair, deu um diagnóstico diferente. Nada promissor mas diferente mesmo assim.
Ivone quer acreditar. Talvez seja um caminho.
Que é que o senhor acha, doutor?
A vida, minha senhora.
Como assim, a vida, doutor?
O menino é alérgico à vida.
O senhor acha que tem cura...?