Da nova série “Contos para crianças”, II


Zezinho tá de saquinho cheio com a professorinha Érica. É muito blablablá demais. História disso, capital daquilo, que dia o napo leão casou com a napa leona, quanto é uma dúzia de laranja dividido pela classe, não suporta laranja, detesta fruta, o que gosta mesmo é ficar no banheiro pensando na... professorinha Érica.
Zezinho precisa dar um jeito. A situação não pode continuar assim. E o único jeito que conseguiu pensar depois de muito matutar foi... sequestrar... a professorinha Érica.
Agora só precisa dum plano. De preferência, bom.
Pesquisa no google os tipos comuns de sequestro. O que rola mais é aquele em que o sujeito tá saindo de casa ou da empresa e é interceptado, rendido e levado pela quadrilha num carro roubado.
Zezinho torce o narizinho. Ainda não sabe dirigir. Nem roubar carro. E se chamasse seu coleguinha de classe Marquinho pra dar uma força? Ná. O Marquinho é o maior cu-de-ferro da escola. Só toparia uma tal empreitada se depois fossem estudar aritmética na casa dele. Até que podia, confabula Zezinho. Sempre vale a pena ver a dona Vanda, mãe do tontinho. Às vezes passa horas no banheiro em rituais litúrgicos tendo dona Vanda como deusa.
E se convidasse a professorinha Érica prum drinque? A ideia até parece boa. Onde seria? Bom, tem aquela lanchonete na avenida por onde passa todos os dias a caminho da escola. Sentariam numa daquelas mesinhas que ficam na calçada, ela pediria uma garrafa de vodka ultragelada. Ao ouvir o pedido, Zezinho simularia carinha de espanto e perguntaria, como quem não quer nada, “Uma garrafa inteira de cara, professorinha Érica? Não seria melhor começar cuma kaipiroska de limão?” Ao que a professorinha Érica o repreenderia com aquela habitual rabugice de mestra, “Quieto, menino! Quer ficar de castigo no canto da parede?”
Zezinho então daria de ombros e pediria um suco de goiaba, talvez melancia.
Agora viria a pior parte. Sobre que conversariam? Desde pequenino é uma de suas maiores dúvidas. O que conversar cuma mulher. Às vezes fica espiando casais de namorados passeando pela calçada perto de casa, se perguntando que é que será que esses dois falam tanto um pro outro. Outras vezes procura escutar uma das conversas entre seus pais mas os dois nunca conversam, só ficam lá jogados no sofá da sala de olhão grudado na tevê.
Por outro lado, considerando que a professorinha Érica pediu uma garrafa inteira de vodka, quem sabe ela não se encarrega de conduzir o papo? Mas tomara que não me venha com aquela onda de cultura indígena quando Cabral descobriu o Brasil, como fez hoje cedo na aula. Os índios naquela época eram politeístas, perorou diante da turma de mulinhas mumificadas. Acreditavam em vários deuses...
Um brinde a nós! Zezinho interromperia o arrazoado de sua preceptora, erguendo o copão de suco de ameixa e fazendo tchin-tchin contra o copo de vodka vazio, se dando conta, então, de que a professorinha Érica já enxugara até a última gota o litro de smirrnoff.
Garçom, mais uma! ela ergueria o braço na direção do caixa da lanchonete, fazendo “uma” com o indicador em riste.
Puxa, fessora, a senhora até que bebe legal...
Zezinho, vamo deixar de papo furado, tá? Tô sabendo pra que me trouxe aqui!
O menino arregala os olhinhos. Tá sabendo? Como? Puta merda, por que foi contar pro Marquinho. Eu e minha língua comprida.
E tô sabendo mais. Que desde o primeiro dia de aula você tem feito rituais pagãos em minha homenagem no banheiro de sua casa. E da escola também! Não adianta negar.
Ele baixa os olhos. Mil pensamentos passam por sua mentezinha de guri safado mas não lhe ocorre sequer um “a” que lhe pareça apropriado argumentar.
Nisso sente alguma coisa na virilha. Seus olhos, já baixados, veem que uma mão o acaricia. A mão da professorinha Érica!
Vem cá, garoto. Não precisa se envergonhar não. Você se acha mas é muito bobinho. Nem se deu conta de que a aula de hoje cedo foi uma indireta minha...
De repente tudo fica claro na cabecinha confusa de Zezinho. Ele se contém para não dar um tapa na própria testa. É mesmo! Aquela história dos deuses, das deusas, das dríadas, das ninfas e de todos aqueles entes etéreos e míticos que deslumbram sua imaginação desde tempos imemoriais. Como pôde ser tão burrinho?
Podemos ir agora?
As sobrancelhas dele saltam. Tudo que consegue notar são os olhões da professorinha Érica a arder na direção dos seus.
Garçom, a conta! ela ergue o braço com o dedão em riste mais uma vez. Num segundo mágico estão na calçada.
Não vai abrir a porta pra sua fofa?
Só então Zezinho percebe o Chevette 87 amarelo ouro estacionado diante da lanchonete. O carro parece saído dum lava-rápido, cheira a óleo e detergente.
Você dirige! ela atira um molho de chaves nas mãos dele.
Aonde vamos? ele quer saber assim que se instalam.
Homem que é homem não faz uma pergunta desse tipo a uma dama.
E agora?
Dá a partida.
Não tem a mais ínfima ideia do que fazer.
Procura raciocinar enquanto engata a primeira e acelera. Tem aquele hotelzinho na rua atrás da escola. Abana a cabeça. Fuleiro demais, indigno duma dama. E aquele motel na saída da cidade que sua irmã vai todo fim-de-semana com o namorado? Putz, muito longe. E nem sabe onde fica. Na certa se perderia, faria papel de tonto.
De repente tem um toque de gênio. Como não pensou nisso antes? Sim! O barraco do Agenor. Sabia que os altos papos que levava com o sujeito que tem um carrinho de pipoca na esquina da escola um dia viriam a calhar. E o melhor de tudo é que sabe onde fica.
Zezinho gira o volante do Chevette, dobra a primeira esquina. Depois de alguns minutos estaciona, desliga o motor.
Chegamos. Evita olhar para a professorinha Érica.
Desce, contorna o carro, abre a porta para ela, a ajuda a sair, a toma pela mão.
Bate na porta do barraco, aguarda. Ninguém atende. Experimenta a maçaneta, a porta se abre.
Cômodo único, simples e limpinho. Ao fundo, uma cama de casal de colcha esmeradamente arrumada. Caminha para a cama, puxando a professorinha Érica pela mão.
Enquanto senta-se na beirada da cama e atrai o corpo dela para si, vai saboreando de antemão as delícias que o aguardam.
Começará por lhe tirar sua roupa, obviamente. A deitará no centro do colchão e então notará umas cordinhas na cabeceira e nos pés da cama. Atará as mãos e os pés da professorinha Érica e começará a cobri-la de beijinhos e varrê-la de mordidinhas e mordidelas e lambidinhas e lambeções e belisquinhos e beliscões e a amar e lambuzar, sem nunca tirar da cabeça que o melhor da história toda, o melhor da história toda é que ela não poderá dar um pio, um mísero piozinho de galinha, de pintinha, de patinha ou qualquer outro bicho de que vive a palrar feito papagaia na aula de ciências e lhe permitirá apenas clamar por piedade, contendo aquela sua tagarelice sem fim, aquelas lições que dá de boca cheia, e se limitará a débeis gemidinhos, gemidinhos lânguidos de quem tenta reunir todas as forças para resistir mas no fundo sabe que é e será inútil, pois, mesmo com o poder de discernimento já embotado pela noção de que sua hora chegou, saberá que aceitar o amor de Zezinho será apenas questão de tempo e que, em poucos segundos, estará experimentando na plenitude o inusitado conceito da resignação ante um guri cuja força poderosa e inclemente – como é óbvio, ó deus – está absolutamente canalizada para a satisfação de seu intento bestial, a demonstração plena, cabal de que ele está resolutamente decidido a saciar sua fome de amor e sua sede de bíblica fornicação e que não se dará por exausto senão dali a infindáveis, longuíssimos dias em que toda a antiga dimensão que nela ainda resistia das coisas e da vida e do mundo se diluirá na sua memória como inexequível lembrança e a própria memória de que uma vez já existiu de fato, concretamente, agora tão remota no tempo e no espaço, se extinguirá sob o fogo selvagem deste menino-besta que a ama e devora e inveja e acarinha e louva e condena e tortura, tomando apenas brevíssimas pausas para apanhar a garrafa de vodka para deixá-la cada vez mais ébria do que parece angariar mais energia para se deixar amar até desfalecer.
Antes, porém, Zezinho se lembra de ligar o rádio. Para sua surpresa, está tocando J'e t'aime moi non plus. A canção o faz lembrar da Cidinha. Cidinha senta na fila d frente. É a primeirona da turma. Seus pensamentos se voltam todos para ela. Sim, agora vê. É por ela que está apaixonado. A musiquinha do Gainsbourg tem esse dom. Faz Zezinho se apaixonar por quem estiver pensando na hora. Fosse a professora Érica, ela diria que ele tem uma capacidade única de mudar seu objeto do amor assim de repente.