Só pra você

(acho que acabei de cometer um poema antológico; devia seguir o exemplo de João Cabral e deixar o poema maturar no fundo do meu disco rígido mas sou ávido e os truques de Cabral não funcionam comigo. Vou revisar, corrigir, reescrever ao longo da semana. O legal da internet é que a última edição nunca é a última.)


a isca se espalha na liça em várias partes
o predador haverá de comê-la
a isca não é uma isca
seduz e hipnotiza a presa mas não é uma isca
não é
tampouco engodo
bem, não para a presa
o predador aguarda
o predador — não por vontade própria —
se transforma em estátua
caso contrário não será capaz de tolerar
caso contrário seria um predador impaciente
a isca está errada
o predador está errado
a presa está errada
os passos do tempo deixam suas pegadas
quem se animará a segui-las?
a presa está putrefata
o predador, desdentado
a isca os une
a isca os afasta
presa e predador trocam de papéis
predador e presa trocam de destinos
o predador não tinha encontrado sua presa
a presa não tinha encontrado seu predador
a presa nasceu para o predador
o predador nasceu para a presa
ainda assim precisam da isca
ainda assim exigem a isca
quando enfim se veem frente a frente
os pedaços de isca espalhados entre ambos
olhares cândidos de consumação ontológica
acima de ambos o céu carrega estrelas
a presa não vê alternativa
a isca precisa ser devorada
o predador não vê alternativa
a presa precisa ser devorada
e ambos odeiam tanto a lógica de suas existências
o confronto está marcado
nenhum dos dois sabe
o dia, o horário, o lugar
o confronto está marcado
há na vida uma exatidão
a presa (não) se arruma para o momento do martírio
o predador (não) se prepara para a hora da sentença
e numa repentinidade que se arrastou por toda a Terra
o horizonte os protege um do outro