Todo dia parece o dia da partida

Local: Livraria Cultura, Conjunto Nacional. Mais precisamente, ala de Poesia.
Tempo: ontem. À noite.
Quando ele chega, ela já está lá. Tem um livro nas mãos, que lê atentamente. É possível vislumbrar o autor: Ana Cristina César.
Ele dá uma geral pelas prateleiras. Capta um ou outro livro de seu interesse. Só então escuta um cochicho. É ela.
Ele espia de soslaio. Ela lê e acompanha a leitura com os lábios, produzindo o cicio.
Ele dá um sorrisinho divertido.
Apanha um livro a esmo na prateleira à sua frente. Não se dá o trabalho de verificar nem título nem autor. Abre numa página aleatória. Começa a ler com os lábios, imitando a desconhecida.
Só então ela percebe a presença dele. Interrompe a leitura e pergunta:
— Não te conheço de algum lugar?
— Preciso mesmo responder? – ele ri. — Parece sabatina...
— Sério – ela franze a testa. – Já te vi, não lembro onde.
— Acho que não – ele abana a cabeça. – Vai ver é influência disso aí. – Ele aponta o livro que ela tem nas mãos. – A poesia da Ana Cristina César pode provocar esses sintomas. Às vezes.
— Vem sempre aqui? – ela muda de assunto.
— Na verdade, não. A última vez foi há uns quatro, cinco anos.
— Por que veio hoje? Algum motivo especial?
Ele ri de novo.
— Pelo contrário. Normalmente não tenho motivos especiais para ler poesia. Foi só coincidência. Estava perambulando pela Paulista, apreciando a nova ciclovia. Passei pela Alameda Santos. Percorri um trecho da Haddock Lobo. Peguei a Augusta. Foi quando me deu o estalo. Tenho esses estalos ocasionais. Não sei se é neurológico ou apenas tédio. E pensei, “Será que há uma mulher bonita na seção de poesia? E, se houver, será que está lendo Ana Cristina? Tenho de ir lá dentro ver. E, se tiver sorte, contemplar essa leitura extraordinária e me deixar maravilhar por esse encontro inexplicável. Talvez pedir que ela seja minha amiga. Ou, dependendo, simplesmente convidá-la para um café no Viena. Não posso despertar suspeitas (pois sei que sou um sujeito suspeito). Vou ficar torcendo para que ela me aceite sem desconfiar de nada.” E resolvi entrar.
Ela solta uma gargalhada suave.
— Não esperava descrição tão detalhada. E sincera.
— Ah, nem tanto assim. Deixei muitos detalhes de fora, para não te assoberbar. Se ainda tiver dúvidas, pergunte. Mas não garanto que minhas respostas sejam sempre satisfatórias. Eu mesmo tenho milhões de dúvidas cujas respostas desconheço.
Ela ri novamente. Fecha o livro e põe de volta na prateleira.
— Que estranho. Tenho certeza quase absoluta que te conheço de algum lugar.
— Ah, minha cara, estranhe à vontade. Estou acostumado. Sou o cara mais estranho que conheço. Embora não me conheça quase nadinha, devo alertar.
Ela apanha outro livro. Volta a contracapa para ele e aponta a fotografia do autor.
— Vai me dizer que este aqui não é você...
— Talvez. Mas em minha defesa posso alegar que fui trocado por uma das minhas personas. Sabe como é, hoje em dia essa salada de eus poéticos, outros, nós, eles e por aí vai.
Ele faz uma pausa, aguarda enquanto ela abre o livre e passeia o olhar pelas páginas.
— Mas não vou alegar isso. Confesso. Esse sujeito pernóstico aí sou eu mesmo. Embora não esteja tão sonolento na foto quanto pareço estar ao vivo.
Outra pausa.
— E você tem razão. Já nos vimos antes. Te encontrei um dia, depois de anos de procura. Foi aqui mesmo na Paulista. Mais precisamente, na Livraria Cultura. Na ala da poesia. Numa noite exatamente como esta. Uma noite em que dei graças por estar vivo.