Domingo à noite diga que estou viajando II

Lembrei o que tinha esquecido desde a infância.
Criança,  achava todos fingidores. Fingiam ser felizes. Fingiam tolerar a sentença de viver. E fingiam como profissionais.
Havia os personagens do dia a dia: pai, mãe, irmã.
Havia as figuras que davam o ar de sua graça incidentalmente.
Entre os incidentais estavam os que se apresentavam como parentes vivendo em paragens distantes improváveis. Quando os visitava, eles corriam a construir as ruas e vilas de suas cidadezinhas, sempre pacatas, meio paradas no tempo, pavimentando calçadas, levantando postes, estendendo cabos elétricos e telefônicos, ativando carros, ônibus e caminhões, acionando ciclistas que aprendiam a se equilibrar instantaneamente em suas bicicletas quase reais, movimentando pedestres que subiam e desciam as ruas do centro como se tivessem de fato um destino legítimo, forjando cinemas que passavam filmes de verdade e que até cobravam ingresso, gelando os sorvetes nas sorveterias em cujas mesas eu me sentava para que me inteirassem dos assuntos que corriam como boatos e que tinham recém inventado para que não desconfiasse.
Os incidentais também incluíam os que se apresentavam como amigos que em outras eras fantásticas tinham conhecido o pai, a mãe ou a irmã. Cada amigo tinha sua própria história, genealogia e raça. Em sua maioria eram católicos para que não houvesse estranhamento, sempre um perigo em casos como esse. E falavam de coisas de que eu nunca ouvira falar, tendo no olhar um brilho promissor de que minha vez haveria de chegar -- era só ter paciência.
Havia vizinhos que se davam o imenso trabalho de nascer e crescer e, inventando formidáveis pretextos dignos da ficção científica, se mudavam para as casas ao lado, para o sobrado em frente, para a pensão na esquina. Alguns, mais empenhados na faina do ludíbrio, arrumavam empregos longe, que os obrigavam a sair de casa muito cedo para só retornar muito tarde da noite. Esses mais empenhados chegavam ao capricho de procriar. Faziam meninos e meninas que cresciam para popular o mundo em volta, camuflando a solidão natural para a inescapável tarefa de alimentar a esperança.
A maioria vinha e ia. Não, a maioria não: todos. Todos vieram e foram. Até mesmo os personagens do dia a dia: pai, mãe e irmã.
Fico pensando se foram por concluírem que já tinham cumprido sua missão de me iludir. Talvez ele já esteja suficientemente ludibriado, pensaram. Talvez ele também já possa ir. Agora, neste fantástico teatro que nos impusemos encenar, só nos resta baixar a guarda e morrer.
E acho que assim foi. Alguns morreram, outros sumiram sem explicar para onde ou por que, outros se afastaram sob desculpas mais ou menos verossímeis, dando, todos, por finda sua doce missão.
Mas eis-me aqui lembrando o que não me cabe lembrar.
Se fosse possível, lhes diria que foi tudo inútil. As tripas da vida estão expostas, e, sem alternativa, cometo o erro de olhá-las, sentindo o nariz entupir do cheiro de sangue.
Se fosse possível (se fosse possível restituir tudo àquele estado em que o mundo pareceu uma vez ter sentido), lhes diria que nunca fui profissional na arte de encenar. Por isso, quem os enganou fui eu