Até os paranóicos têm inimigos

Afonso dá uma passada à tarde, me chama para assistir vídeo pornô na casa dele. Não vejo graça nenhuma em vídeo gay, digo. Ou qualquer vídeo salaz. Perdi interesse em sexo. Mamãe abriria seu sorriso gordo e satisfeito aplaudindo qual criança. No outro extremo o dr. G me receitaria algum tipo de viagra. Mas mesmo meio doloroso é meu estado ideal. Tenho nojo de sexo, sempre tive. Criança pensava em como me livrar dessa determinação biológica idiota enquanto batia oito punhetas por dia me esfolando exausto e impotente. Finalmente consegui mas não é nenhum alívio. Tenho nojo do corpo humano e seu utilitarismo reprodutivo e de apêndices ocupando seus receptáculos e pinos se acoplando desajeitados a suas sedes e seus maus encaixes e desencaixes. Tenho asco de imaginar dois ou mais seres concretizando uma palavra já asquerosa em si, cópula. Ou outra pior, coito. Mesmo sem a benção de Saussure.

E já é tarde para ir a qualquer lugar, Af. Ou para fazer o que quer que seja.

Desde cedo foi tarde demais.

Sempre cheguei atrasado. Acordo tarde, quando durmo. Nasci temporão. Mamãe com 41, papai com 45. Em As palavras Sartre conta que aprendeu a ler aos 4. Eu, aos 10. Chupei bico (aquele de borracha que já não existe) até os 8, na vizinhança me conheciam por o menino do bico. Ia para a escola sob as intimidações de papai segurando sua vara de bambu. Só conseguiam me segurar na carteira ameaçando telefonar para ele. Odiava cada um dos professores e cada um dos alunos. Menos o Luiz Carlos, por quem me apaixonei feito cachorro e que virou a razão das minhas idas às aulas enquanto em casa papai e mamãe trocavam olhares intumescidos de agradecimento por Jesus ter me iluminado a cabeça (que já era grande aquela época) me reconduzindo ao bom caminho, me reconvertendo, mesmo que tardiamente, ao mundo dos sãos e retos. Até aquela manhã em que não resisti e lasquei um beijo de língua no Luiz Carlos que desandou a berrar por ajuda, deflagrando esse meu entra-e-sai de escolas, empregos e bares que perdura até hoje.

Naquele tempo brotar dum útero de 41 anos era razoavelmente normal. Hoje é arriscado, você pode gerar um mongolóide. Com mamãe não tinha esse tipo de frescura. Abortou mais três depois de mim, os felizardos. Leio no jornal entrevista de Romário, que teve uma menina com síndrome de Down, em que se diz desconcertado se perguntando "por que eu?" Em seguida garante estar grato e arrependido da própria infidelidade, jurando que a filhinha lhe ensinou humildade e disciplina.

Por que não eu? quero saber. Posso ser fruto dum momento mais impetuoso de papai ou dum furo na camisinha usada tarde naquela noite.

Papai e mamãe se casaram tarde, tiveram filhos tarde. Nasci uns duzentos anos depois do que gostaria, antes do turbilhão de ismos do início do século 20, do concretismo, de Proust, Joyce e Marx, do alka-seltzer, do automóvel, da tevê e da internet. Na época em que as partituras de Bach, Beethoven, Schubert, Brahms eram reproduzidas uma a uma por copistas profissionais e ninguém pedia Satie num piano-bar e o lirismo desmedido e as piscinas térmicas ainda não foram inventados e as famílias não desciam em peso para a Baixada Santista onde deixam seus filhotes desamparados nas mãos de tias megeras.

Afonso dá de ombros e pergunta se posso pagar os 300 paus que lhe devo. Patrão gay é uma praga.

Enfio a mão no bolso, tiro umas notas e estendo a ele.

Afonso arregala os olhos, depois faz cara desconfiada.

Sim, surrupiei do teu açougue, penso mas não digo. Como é que vou pagar minhas contas? Maldito dinheiro.

Convido ele para almoçar.

Cara, são quase quatro. Almocei faz tempo. Que é que tem aí?

Arroz.

Arroz e...?

Só.

A Sô não cozinha mais pra você?

Foi ela quem fez. É só esquentar no micro e jogar um pouco de queijo ralado.

Ele mete as notas no bolso e não responde.

Tem uma caixa de fósforos sobrando?

Faço que não.

Diz tchau, vira as costas e sai.

Uma vez, era pré-isqueiros Bic, fiz uma coleção de caixas de fósforos. Não uma coleção qualquer -- eram só as minhas caixas de fósforos. Começou sem querer, uma noite notei meia-dúzia delas num canto da mesa no meu quarto e resolvi empilhá-las. Quando a que tinha no bolso esvaziava, e se me lembrasse, ia lá e deixava no alto. A pilha foi crescendo até que arrumei uma caixa de papelão para alojar a coleção. Então um dia mamãe chamou um pintor para pintar as paredes do meu quarto, que eram negras, inclusive a cortina. Eu resistira à pintura por anos e estava esgotado de defender minha citadela. Me rendi. O pintor entrou, instalou seus badulaques, tirou um cigarro e uma caixa de fósforos e acendeu. Era seu último palito. Vou botar aqui na sua coleção, ele riu em minha direção. E botou. Meu primeiro sentimento foi de nojo. Depois, perplexidade. Depois, nojo, perplexidade e gana de fazer o desgraçado engolir o objeto estranho.

Quando a pintura foi concluída e o filho da puta foi embora, levei a coleção toda para a esquina, deixei para o lixeiro. Aproveitei e dei cabo também da minha coleção de cacos de para-brisas que recolhia nas ruas depois de batidas e que usava erguendo contra a luz para me maravilhar com as minhas portas da percepção, tudo é possível quando se tem energia. Então se podia perfeitamente juntar o que quer que fosse num canto do teu quarto, num canto da tua cabeça, sem que te chamassem de neurótico ou te acusassem de ter TOC naquela era pré-maricas pré-assepsia da felicidade ilimitada.

Chega de reminiscências lineares. Minha história é brega demais para ser narrada assim como memórias. Me envergonham meus horizontes quasioperários, a insuperável impotência das "condições financeiras" minhas e dos meus, a suprema cafonice de ter de trabalhar para viver, juntar carnês de prestações na gaveta do armário da cozinha ao lado de saquinhos de mostarda e ketchup, a inatingível visão aristocrática do mundo, a decepcionante cultura arrancada a ferro e fogo dum bando de professorinhas semianalfabetas em vez de transmitida ao vivo na autenticidade sem par das mais iluminativas situações familiares.

Sento na minha poltrona na sala -- papai também tinha a sua, não sou de todo bastardo --, vejo o caderno de lições de Soninha no sofá, abro na primeira página (abrir um livro ou caderno na primeira sempre me causa desconforto; odeio seguir ordens ou responder mecanicamente ao que esperam de mim). Anotações soltas feitas nas aulas, algumas observando as pautas, outras escritas na diagonal em canetas Bic azuis, vermelhas e verdes. Viro a página, uma pilha interminável de "eu te amo," + meu nome em duas colunas ocupando umas cinco ou seis páginas. Depois novamente inscrições esparsas calcadas com força ou raiva em várias cores, "pai", "papai".

Ontem Sô chegou da escola c'uma colega da mesma idade e graça.

Benzinho, a Sô veio fazer trabalho comigo.

Outra Sô? me esforcei para sorrir.

Meu nome é Soraia, a belle de la matin estendeu a mãozinha para mim.

Antigamente eu apertava mãos querendo me mostrar másculo. (Eu não sabia mas era feliz.) Hoje faço mão mole, só tomando cuidado para não parecer flácida. Ou pegajosa. Já passei a mão na perna das calças algumas vezes para enxugar o suor. Peguei os dedinhos, apalpei duas vezes. Soraia puxou ágil e rapidamente meus dedos, pôs sua mãozinha dentro da minha e sacudiu com vigor. Apertei meio no susto e olhei para ela, que sorria com todos os dentes.

Vamos. Sô a puxou pelo braço para o nosso quarto. Sentaram-se na nossa cama, abriram as mochilas.

Escutei Soraia perguntar onde é o banheiro. Então as duas apareceram, sorriram para mim (eu continuava estático no centro da sala) e entraram no banheiro. Deixaram a porta aberta. Ficaram rindo e tagarelando. Ouvi duas mijadas tipo água de filtro que as mulheres dão. Ouvi a descarga duas vezes.

Quer estudar com a gente? Soraia veio, me tomou a mão, me arrastou até a porta do quarto. Sô já estava na cama. Puxei a mão com força, as duas riram mais alto e desligaram suas câmaras digitais.

Há um mês mais ou menos Sô me pediu uma. Perguntei quanto custava, dei o dinheiro, comprou nas Casas Bahia. Três dias depois me chamou para mostrar um filminho. Sentamos no sofá, ela ligou a máquina, quase sem conter a excitação.

Olha!

Quem é esse aí com você?

Meu professor de geografia.

Ela estava sentada no tampo duma carteira, o sujeito a acariciava numa sofreguidão canina, roçando o pinto em seus joelhos, lhe lambendo o rosto e o pescoço. Sô mantinha os braços lassos, fazendo uma careta fajuta de nojo.

Quem filmou? perguntei.

A Sô, ora. E tem mais.

Ela vai passando filmes com outros professores. Inclusive os de saia.

É a nossa garantia de aprovação.

Sempre tive dificuldade com pagamentos, sobretudo os em espécie. Nunca consegui resolver meus problemas, dos mais simples aos complicados. Faço de conta que não é comigo, deixo pra amanhã, finjo que me livrei. Sô me fascina com seu senso de preservação. A vida para ela é uma luta sem tréguas, nasceu c'uma área nitidamente delineada no cérebro que lhe ensinou a atacar antes de ser atacada. É do tipo de gente que vai longe e que custei a me dar conta, ou acreditar, que de fato existissem. Acho que devo me precaver contra ela, se quero evitar problemas. Mas, como disse, nunca consegui resolver meus problemas. E a única pessoa contra quem eu poderia usar uma câmara escondida seria eu mesmo.

Sô saiu dizendo que ia comprar fermento no mercadinho para fazer bolo de fubá com banana que sabe que é meu fraco. Depois da mariscada da semana passada que ainda estou arrotando, vai na feira amanhã cedo comprar camarão. Já lhe disse não sei quantas vezes que não posso ingerir proteína por causa da gota mas ela finge ou parece fingir não escutar. Talvez esteja me matando aos poucos de tanta comida qual mamãe quase conseguiu.

Viu "camarões empanados com limão e molho de cocktail" em seu livro de receitas, perguntou se quero. Hm-hm, disse. O que interessa é o aperitivo.

O professor de geografia passou à classe um projeto de pesquisa sobre a exploração do petróleo no Brasil. Pesquisa "independente", diz que ele frisou.

Faz pra mim?

Te dou umas dicas, te mostro como fazer.

Tô com preguiça. Acho que vou começar a usar o filminho.

Não precisa. É fácil. Quer ver?

Faço um resumo, explico as condições principais, Lobato, Getúlio, o sindicalismo pelego, o básico. Ela não parece se animar.

Okay, faço. Só desta vez.

Volta do mercadinho c'umas sacolas, camarão, um cacho de bananas, dois guaranás litro, uma garrafa de gatorade que viu na tevê esportistas das olimpíadas tomando.

Enquanto guarda as coisas vai dizendo que quer me ver sem barba.

Nem pensar. Uso barba pra esconder minha feiúra.

Só uma vezinha, meu sileno.

Tenho esta barba há quase quarenta anos. Não tiro nem por você, meu docinho.

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