para D.
Sentado neste banco de praça, cabeça baixa, olhando o chão entre meus pés, avisto um pequeno pedregulho de cor indefinível, assimétrico e amorfo feito as lembranças que desfiam do meu cérebro como dum novelo de trapos e se desfazem na sombra tão logo se separam.
Eis
algo que uma vez sequer foi visualizado por alguém neste mundo. Algo a que ninguém
jamais prestou atenção. Ainda assim, independente de mim, independente de quem
quer que seja, ele existe — como os trilhões de planetas desconhecidos que
dizem existir além do céu.
Como
para a maioria das pessoas, quase todos meus pensamentos são, para mim,
inúteis. Não me ajudam a ficar rico, não me ensinam como usufruir das delícias
de não ter patrão ou como me livrar dos que mandam em mim, não me trazem a
liberdade de tomar decisões sem ser obrigado a considerar todas as implicações
pecuniárias que me escravizam, não me ensinam o Caminho das Bucetas.
Como
muitas pessoas que vivem neste mundo que nos cabe — mas que são em pequeno
número frente ao conjunto de todas as pessoas neste mundo que herdamos e
herdamos e herdamos —, devem-me. E aqui estou para cobrar minhas dívidas.
Como
muitas pessoas que tiveram o azar de nascer neste mundo, oculto dentro de mim
um eu que às vezes é tão real, que quase mereceria um heterônimo. Mas é um eu do
contra, ranzinza, sempre me contestando os pensamentos e me atrapalhando os
passos e me boicotando as ideias. Tal qual a maioria das pessoas neste mundo
que, feito caramujos, trazemos acorrentado às costas, eu bem que trocaria esse
oculto eu sabotador por um sócio.
Mas
ei que, para minha sorte — que é tão grande, que custo a acreditar que, dentre
todos, coube a mim tê-la —, há dias em que um sócio me aparece e carrega às
costas a maior parte do meu mundo. E ainda cobra algumas das dívidas que me são
devidas. E ainda trava por mim algumas das batalhas que, desafortunadamente,
sou obrigado a enfrentar.
Feito
a maioria dos seres que habitam este malfadado lugar, sou vingativo e, se
pudesse, torturaria um a um os inimigos que fiz ao longo da minha vida. Depois
os atiraria no fundo dum poço para que sofressem a mais cruel das mortes
possíveis e que nos cabe a todos — a morte à espera da salvação. E também feito
a maioria, não estou satisfeito com minha própria cara, penso obsessivamente em
corrigir meus defeitos — físicos e mentais. E, qual a maioria, meu maior sonho
é escrever um livro sobre a dor humana — coisa aí dumas 790 páginas — mas que
seja best-seller no mundo todo e me renda muitas noites de autógrafos em que me
bajulem, me incensem, me lambam as solas dos sapatos, os homens supliquem a
deferência do meu olhar, as mulheres se ofereçam nas mais tórridas promessas
extraconjugais.
Pequeno
pedregulho entre meus pés, que vive à revelia de tudo e de todos, tenho o
direito de ser feliz.
Tenho
o direito de ser feliz? Sentado neste banco perdido nesta praça perdida nesta São
Paulo perdida no universo, tento me agarrar às poucas lembranças boas que ainda
carrego, tento misturá-las dentro do tacho que em banho-maria fervento na
cabeça, sová-las como se sova a massa do pão e fazer delas o que algumas pessoas,
algumas poucas pessoas chamam “experiência”. Tudo em volta é uma estrutura da
qual não faço parte, neste mundo cinético em que só eu não me movo.
Eis-me
aqui parado com meu passado falso, a mão estática no ar temerosa de concluir o
ato. Olho para cima na esperança de estar sendo observado por um gigante tal
qual observo o pedregulho. Nauseado, me conformo — sou apenas um bebê de
meia-idade.
Me lembrou, este textículo, o clássico indiano Ramaiana, onde havia um ser que conversava com a natureza. Um dia o mar lhe disse que o rio nunca tinha lhe trazido galhos flexíveis e por isso não os conhecia.Somente os rígidos vinham até ele porque estes não sabiam vergar e se entregavam facilmente ao sabor das intempéries.Este texto e sua arte,poetíssimo Wil, é qual os galhos flexíveis do épico,são capazes de dançar com tempestades e cantar com os ventos até que a infalível bonança,benfazeja e renovadora de forças, venha compor de novo o cenário .Muito bom lê-lo. Seus textos são plenos sempre
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