Encontro casual

para Joana D'Gleyse


Meus olhos se arregalam. Aperto as pálpebras teimoso, fingindo estar com sono. Os olhos se estatelam de novo.
Nem preciso olhar o relógio. É mais cedo do que o costume. O corpo pede mais algumas horas de repouso. Mas a cabeça diz não, imperativa. Não adianta discutir com ela. O jeito é levantar.
Vou ao banheiro. Fecho a porta. Mijo. Dou uns passinhos trôpegos até o lavatório. Como de costume, não olho o espelho. Me ver no espelho é sempre uma experiência desagradável. Preciso me controlar para não dizer nauseabunda. Lavo parcimoniosamente o rosto, minha boca se abre num grande bocejo enquanto me enxugo.
Saio do banheiro para a cozinha. O diabo está sentado à mesa, na penumbra.
— E aí — digo, acendendo a luz e erguendo as sobrancelhas à guisa de bom-dia.
Ele só dá de ombros e, sem responder meu cumprimento, pede:
— Poderia deixar a luz apagada?
Apago a luz. Vou para a mesa, puxo uma cadeira e sento diante dele.
— Como é que vão as coisas? — Tomo cuidado para soar cordial.
— Male e male. — Ele encolhe os ombros de novo.
— Muito trabalho ultimamente? — Apoio os cotovelos na mesa e seguro o queixo com uma das mãos, cansado. Vai ser outro dia daqueles, tenho certeza.
— Trabalho não me falta — Ele me fita.
Sustento o olhar dele, ele desvia os olhos. Está constrangido, sem saber se deve demonstrar o constrangimento.
Tamborilo os dedos na mesa e cantarolo, tentando indicar que não percebo o embaraço dele. Não sei lidar bem com o mal-estar alheio. Grudo os olhos nos ladrilhos da parede à minha frente, como se estivesse vendo algo interessante.
O vitrô da cozinha começa a se iluminar pelo lado de fora.
— Está amanhecendo — digo.
— Pois é. — Ele dá de ombros mais uma vez.
Me ocorre que ainda não tomei café.
— O senhor aceitaria alguma coisa? Leite? Um pão com manteiga? — Procuro um tom de voz animado, torcendo para não soar falso ou formal demais. Sempre tenho a sensação de que faço cara de energúmeno nessas ocasiões.
— Um cafezinho está bom. — Ele dá um risinho e emenda: — Pode me chamar de você.
Levanto da mesa, abro o armário, apanho o vidro de café instantâneo, fervo a água, preparo uma xicarazinha.
— Açúcar ou adoçante? — pergunto, sem me virar para ele.
— Adoçante, por favor. Cinco gotas.
Pingo as cinco gotas na xícara dele e sirvo.
— Você não vai tomar nada? — ele pergunta.
— Vou. Mas não café. Prefiro um copo de vinho, se não se importa.
— Fique à vontade. — Os lábios grossos dele se entreabrem no que deve ser um sorriso.
Apanho no armário uma garrafa de vinho tinto, encho um copo grande, entufo de açúcar até a metade. Dou umas mexidas vigorosas com uma colher, levo à boca e tomo num gole sôfrego. O vinho me escorre pelos cantos da boca, pelo pescoço, empapa a gola da camiseta. Sinto a onda alcoólica se espalhando pelo sangue, tomando conta do cérebro. Olho para ele de soslaio. Ele está sorvendo o café aos pouquinhos, lábios abrochados. Me olhando de soslaio.
Volto à cadeira, sento. Me recosto, cruzo os braços, esperando.
Ele continua a sorver o café. Tem uma expressão de gozo no rosto grande e corado.
— Estava ótimo! — Ele aspira o último gole e estala a língua.
Faço que sim com a cabeça e simulo um sorrisinho de agradecimento. Desvio os olhos novamente para os ladrilhos.
Agora quem começa a tamborilar os dedos na mesa é ele. As unhas longas e fortes produzem um matraqueado estridente que vai me deixando alarmado. Ele se dá conta da minha ansiedade e interrompe subitamente o movimento dos dedos. Esconde as mãos sob a mesa.
Num rompante, já sem paciência, pergunto áspero:
— Você vem sempre por aqui?
— Você sabe que sim. — Ele inclina a cabeça e abaixa o olhar.
— Passou a noite...? — Não ouso completar a pergunta.
— Um-um — ele faz com a garganta, sem abrir os lábios.
Ficamos ambos em silêncio, cabeças baixas, meditando fingidamente.
— Agora preciso ir. — Ele se levanta, atento à minha reação.
— Está bem. — Encolho os ombros.
— Poderia fechar os olhos?
Atendendo ao pedido, começo a cerrar vagarosamente as pálpebras. Espero uns dez segundos. Quando reabro os olhos ele não está mais aqui.


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