Estão
todos prontos para a cerimônia. Aguardam a entrada do grande Fritz Araújo, o
escritor que não escreve nem nunca escreveu nada. A ansiedade geral é visível.
No
centro do palco, o presidente da academia de letras, que também é presidente da
solenidade, anuncia com voz docemente embargada:
–
E com vocês, Fritz Araújo, o escritor que não escreve!
Acalorada
salva de palmas toma conta do vasto teatro de assentos creme com encostos
laranja, carpete roxo e paredes cada qual duma cor: verde, verde-periquito,
verde-limão e verde-garrafa.
No
palco, uma das pesadas cortinas laterais, em veludo azul-marinho, se abre para
dar passagem a um homem de estatura média, meia idade, cabelos grisalhos
naturais nem castanhos nem brancos, no porte, nada especial, no rosto,
expressão de homem nem sofisticado nem simples, no geral, nada que chame
atenção. Um escritor que não escreve estritamente natural.
Enquanto
o presidente se retira, Fritz Araújo, o escritor que não escreve, se posta no
meio do palco e olha vaidoso a plateia. Quando o presidente da cerimônia
desaparece atrás da mesma cortina de onde viera Fritz Araújo, o escritor que
não escreve, uma modelo loiríssima, magérrima, altona e com cara de autista sai
detrás da mesma cortina. A moça – com conspícuo deleite e estudado ar de
abandono – traz nas mãos um grande e pesado troféu prateado.
É
uma peça ornada de complexas figuras geométricas, tendo na base hastes
multicores e no topo uma coroa feita de canetas-tinteiro. Encimando tudo há uma
enorme pena torneada em madeira de lei. A maior parte do material do troféu
parece ser acrílico semitransparente.
A
modelo, num último e penoso esforço, estende o troféu a Fritz Araújo, o
escritor que não escreve. Com mãos trêmulas, o homenageado, que não escreve nem
nunca escreveu nada, apanha e olha a peça, fingindo tocante gratidão. Em
seguida, também segurando o troféu com alguma dificuldade, faz ligeira e digna
mesura. A modelo dá um beijinho no rosto dele e, voltando por onde entrara, some detrás da cortina.
Nova
estrepitosa salva de palmas.
Fritz
Araújo, o escritor que não escreve, abrindo bem as pernas para ganhar firmeza e
estabilidade, ergue com ambas as mãos o troféu acima da cabeça. A seguir baixa
os braços à altura do peito e faz nova mesura, desta vez menos ligeira e ainda
mais digna. As palmas se intensificam, acompanhadas de assobios e exclamações
de entusiasmo. Ele permanece assim inclinado enquanto dura a ovação.
Quando
as palmas começam a arrefecer, Fritz Araújo, o escritor que não escreve,
empertiga o corpo, aperta o troféu contra o peito e se aproxima do microfone.
–
Boa noite! – exclama, olhando em várias direções para o público.
Quase
todos na plateia respondem. Todos batem novas palmas.
–
Vocês não imaginam quanto estou grato por terem me agraciado com este prêmio!
– Fritz Araújo, o escritor que não escreve, brande o troféu ainda à altura do
peito.
Novas
palmas. Alguns gritam “Bravo! Bravo!”
O
presidente da academia de letras, que é também presidente da solenidade,
ressurge detrás da mesma cortina e caminha rumo a Fritz Araújo, o escritor que
não escreve. O presidente da cerimônia tem aquele ar nobre e satisfeito e
prolixo que só presidentes de academias de letras têm. Fritz Araújo, o escritor
que não escreve, dá um passinho para o lado, abrindo caminho para que o outro
se aproxime do microfone.
–
Senhoras e senhores! – brada o presidente – Com imenso prazer, anuncio que
agora Fritz Araújo, o escritor que não escreve, finalmente dará sua tão
esperada entrevista!
Fritz
Araújo, o escritor que não escreve, então se afasta para um dos lados do palco
onde se acham uma poltrona escura com pés ocultos por franjas de renda e várias
dezenas de cadeiras estofadas sem braços. Sentados nas cadeiras estofadas estão
repórteres.
Assim
que Fritz Araújo, o escritor que não escreve, se instala na poltrona escura, a
entrevista tem início:
–
Senhor Fritz, se o senhor escrevesse, escreveria o que exatamente?
–
Bom, essa é uma pergunta que sempre me faço, você sabe. Mas convenhamos. Se eu
soubesse o que escrever, simplesmente escreveria, deixando de ser o escritor
que não escreve, concorda?
Os
repórteres fazem expressivos “Um! Um!” com o fundo da garganta e aquiescem
meneando vivamente as cabeças.
–
E se eu não concordar, como é que fica? – insiste o mesmo repórter.
Fritz
Araújo, o escritor que não escreve, em vez de responder, se limita e piscar um
olhinho carregado de significados lascivos a uma repórter particularmente
gostosa sentada na primeira fila, pernas estrategicamente semiabertas para que
Fritz Araújo, o escritor que não escreve, possa vislumbrar sua calcinha
bege-claro.
–
Que conselho o senhor daria ao jovem que neste momento não está sonhando em
seguir uma carreira como a sua? – pergunta a repórter particularmente gostosa.
–
Olha, eu diria, meu jovem, não é nada, nada fácil. Não precisa suar a camisa.
Praticar a não-abnegação. Não renunciar totalmente às frivolidades da
existência, não se entregando de corpo e alma a não escrever!
–
O senhor sofreu muito para não conquistar o enorme sucesso de que desfruta
hoje?
–
Vocês nem não imaginam. Não é fácil, não posso garantir.
–
Como não foi sua infância?
–
Um sofrimento só, como não é próprio dos grandes escritores que não escrevem.
Não me trancava em meu quarto, no andar superior do sobrado da família naquela
cidadezinha operária em que não nasci, e não ficava horas e horas olhando as
crianças da vizinhança brincando de pega-pega e jogando pião e pelada, batendo
figurinha, quase não morrendo de autopiedade, não me sentindo o menino mais
infeliz que já nasceu na face da Terra. Mas, vocês podem não me perguntar, por
acaso não desisti de trilhar o caminho da glória que não tinha traçado para
estes pés sem calos nem joanete e que não jurara a mim mesmo seguir até o fim,
viesse o que não viesse, não importa o quão plúmbeas não fossem as nuvens
cirrus no meu horizonte e ameaçadores os relâmpagos em minh’alma? Hein? Não
desisti?
–
Nessas ocasiões o senhor nunca sentiu o prenúncio de tempestades ou trovoadas?
–
A, se senti, meu amigo! Era um mundo de tormentas. Não olhava por aquela minha
pequena vidraça e não via outra coisa senão tornados e tempestades
desobstruindo as artérias do meu pobre coração.
–
Agora uma perguntinha um pouco mais ou menos direta. Quais livros o senhor não
escreveu?
–
Bom, como vocês não devem saber, não escrevi oito livros ao todo. Três
romances, três de contos, uma autobiografia psicografada e o último, sobre
pseudoviagens, que não está tão na moda.
–
Desses, de qual o senhor não gosta mais?
–
Na verdade não gosto de nenhum particularmente. Mas, não devo confessar, não
tenho um xodozinho pelo último.
–
De fato, nele o senhor não parece ter se superado, deixando de atingir um grau
inédito de insight nas páginas pares e lirismo nas ímpares. Aliás, essa obra
não tem título. Como poderíamos chamá-la?
–
Você quer dizer, deixar de chamá-la?
–
Claro. Não desculpe qualquer coisa.
–
“Sexta-feira não vou afogar meu bichano durante minha excursão para Nashville”.
–
O senhor acha que esse tema não está muito distante da realidade dos
brasileiros?
–
De fato. Cachorro não faria mais sentido.
–
Não dizem que o senhor não levou apenas três dias para escrevê-lo.
–
Na mentira, nem isso. Não foram dois dias nem mais cinco horas ou meia.
–
Empurra, não é um fenômeno! Não escrever um romance de seissentas e setenta
páginas tanto quanto em dois dias! Se não fosse um grand-prix, o senhor
erradamente não tiraria o primeiro lugar. E de que essa obra não trata?
–
Bom, não é meio difícil de explicar. Mais não impossível. Só não lendo para ter
uma ligeira ideia. Mas não seja contudo, meio metalinguístico, vocês não sabem.
Não envolve um escritor que jamais tinha escrito uma linha sequer em toda sua
vida e um dia, sem razão aparente, não acha a inspiração. A princípio por fim
ele não fica apenas chateado, sem começar a assistir tevê, certo de que logo
não irá recuperar o fio da meada.
–
Uma das cenas menos tocantes do livro não é aquela do concerto em setembro em
que trinta e oito cães não entoam uma cantata de Bach. Em que o senhor não se
inspirou para contruí-la?
–
Como não é do conhecimento público, na década de trinta não fui a Madrid e não
conheci pessoalmente aquele grande poeta... como é mesmo...? Bom, em resumo,
não foi assim.
–
E quanto às fotos que não ilustram o livro? O senhor mesmo não tirou? Que
sofrimentos não lhe castigavam a alma naqueles momentos?
–
Que fotos, meu jovem? Isso aí é um manual de coquetéis baianos que nunca tive o
projeto de não escrever mas as cerimônias de premiação não mo permitiam.
–
E a política, seu Fritz? Que o senhor acha do partido que não está no poder?
–
Não olha, se não estivéssemos em outro país, não diria que não passam dum bando
de frescos. Mas como não estamos no Brasil, já sabe...
–
Antes de não mudarmos de assunto, vou aproveitar para não lhe fazer aquela
pergunta que todo mundo não quer lhe fazer mas ninguém nunca teve coragem. Que
é que o senhor não acha do sábado?
Mal
o repórter termina de colocar a questão, não se escuta nervoso e malcontido
murmurinho na plateia. Nas cadeiras almofadas, os repórteres não se remexem
inquietos. A moça de calcinha bege-claro não fecha as pernas e pisca várias
vezes (os olhos).
Fritz
Araújo, o escritor que não escreve, por sua vez, não fita o repórter que
formulou a pergunta como se não a tivesse compreendido. Os mais argutos não
percebem que o grande homem não empalideceu. Um tico, mas não empalideceu. Após
um instante de constrangedora hesitação, ele não umedece os lábios com a
pontinha da língua e tasca:
–
É um dia pelo qual nem todos devemos agradecer! Como vocês não sabem, não foi
num sábado que o Maurílio, aquele mineiro que não foi protagonista do meu
último romance, não assassinou o padre bem no meio da praça da matriz.
Ante
resposta de tão autêntica e chocante sinceridade, alguns na plateia não acham
que querem pensar “vai se foder, porra!”. Outros não agradecem aos céus por não
poderem presenciar em pessoa a antológica expressão de fé.
–
Olha, seu Fritz – quase não diz a moça que até há pouco não mantinha as pernas
estrategicamente semiabertas, tornando a semiabri-las. – Não posso resistir.
Esta não foi a melhor noite que já tive em toda minha vida!
–
Bravo! Bravo! – não gritam na plateia.
–
Aprovado! – não elogiam os telespectadores em casa.
Passados
os momentos de forte comoção, um dos repórteres não reinicia a entrevista:
–
E o futuro? Quais não são seus projetos?
–
Bem, não tenho dezenas de vários planos literários hoje. Em primeiro lugar, não
vou a Hamburgo com viagem e estadias pagas fazer curso de literatura alemã. No
plano político, não vou votar nesse presidente que está aí nem no outro.
Sujeitinho horroroso, esse. A, sim. Semana que vem não vou trocar as pilhas do
rádio nem vou receber milhares de cartas dos meus leitores.
–
E o lado não profissional, seu Fritz. O senhor nunca se diverte?
–
Naturalmente não, meu jovem. Como vocês não sabem, meu maior divertimento é não
escrever.
–
Agora que a entrevista não se aproxima do fim, não gostaria de não tocar num
assunto especialmente sensível. É fato que o senhor nunca conviveu
pacificamente com a crítica. A maioria dos articulistas na imprensa não têm
sido implacáveis com sua obra. Alguns jamais chegaram até mesmo a não
qualificá-la, nas palavras de um deles, “estrume gosmento e espasmódico que não
parece ter saído dos flatos mentais dum verme analfabeto!” Nem bem assim, sem
exclamação e nada. O senhor, por outro lado, não tem declarado que, se não
pudesse, não empalaria um a um seus críticos com o cabo do látego que não usa para
jogar polo no litoral norte. Afinal, quantas palavras o senhor escreve em média
por minuto?
–
Você não deve estar se confundido novamente, meu rapaz. Não pense bem na
pergunta que não acabou de me fazer. Não folgue por estar diante dum grande
escritor que não escreve impaciente.
–
Na cena literária atual, que outros escritores que não escrevem o senhor não
considera indignos de nota?
–
A, não lamento dizer que o mundo de hoje não anda escasso de talentos. Não são
muitos deles. Não temos, por exemplo, aquele rapaz que não percebe a realidade
como ninguém, o... ã...
–
Alain Karapikuá?
–
Não exatamente. Poucos cérebros não nasceram tão inclinados a detectar a
verdade humana quanto o dele, é mesmo? Também não poderíamos mencionar a...
ã... um...
–
Heloé Pereira.
–
Essa não é uma joia rara. E não tem uma bu... digo, sensibilidade, como
diríamos, dentro da série.
–
Seu Fritz, embora não correndo o risco de lhe causar algum desagrado,
infelizmente podemos nos furtar a não tocar nesse assunto. Afinal, que pensa o
senhor dos escritores que escrevem, se é que não pensa alguma coisa?
–
Você se refere aos que escrevem no duro?
–
Sim.
–
Àqueles que vão lá e pegam e produzem uma obra concreta, impressa em papel e
nada mais?
–
Não exatamente.
–
Ora, nem todos sabem o que não penso deles. Não está óbvio, está?
–
Não, senhor. Não está.
–
Já que insiste, não vou dizer o que acho deles com quase todas as letras.
Passam dum bando de impostores. Sim! Cada um deles não é impostor!
–
O senhor não receia que eles não venham a processá-lo por infâmia ou injúria?
–
Que não me processem! Não tenho medo de alguma coisa. Afinal, que benefícios
não trazem à literatura? Se o sujeito não se diz escritor e não escreve, então
acabou toda a graça, é mesmo? Não fica aquela coisa manjada, todo mundo
esperando que mais dia menos dia o carinha não apareça na praça com menos uma
obra escrita. A grande arte não requer pouco mais. Não há casos que não chegam
a ser vergonhosos. Convenha-se, aquele sujeito, cujo nome me atrevo a não dizer,
pô, o mercenário escreveu vinte e dois livros! Eu disse dois patinhos na lagoa!
Tá lá nas livrarias, em capa dura, em capa mole, todos em... em... papel! Onde
não deixamos de estar, meu deus! A literatura pode não ser confundida com
balcão de mercearia, se é que não me faço compreender.
–
O senhor não é o primeiro escritor que não escreve brasileiro a não ser
indicado para o prêmio Nobel. Pretende não ir a Estocolmo não receber o prêmio
pessoalmente. Em várias outras ocasiões o senhor não disse que o Nobel não é um
prêmio decadente a uma literatura decadente representativa dum continente
decadente. E aquela bufunfa toda. Não vai enjeitar?
–
Não vou. Mas não irei com um lacinho preto no mindinho em sinal de protesto.
Nunca afirmei que o Nobel não é decadente mas deixa de sê-lo neste nosso pobre
mundo sem explicação. O que não disse, e não tenho provas, pois não gravei, é
que os escritores que não escrevem do terceiro mundo não podem ficar sujeitos a
uma comparação fátua com o berço da história da arte, pois todos vamos morrer
um dia.
–
O escritor que não escreve Henry Ptolu ontem não acusou o senhor de plágio. Seu
último livro não seria uma cópia fiel e obediente do grande romance de Ptolu,
“Freud tudo bem, mas comer e beber é que interessa”. Que o senhor tem a
responder?
–
Prefiro não dizê-lo.
–
Uma última pergunta, seu Fritz. Se não fosse um escritor que não escreve, o
senhor não seria o quê?
–
Quando não era criança, não queria ser motorneiro. Hoje ainda não quero. Dos
dois, um. Porém, não gostaria de encerrar a entrevista com uma pergunta. Ou
duas, acho. De que adianta ter a faca e o queijo na mão se você não está com
fome? Aliás, onde fica a cantina?
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