Três matutos



Três matutos estão recostados a uma cerca de bambu. Cada qual tem o olhar fixo à frente, sem mirar nada em especial. Conversam.
— Viver é um sono — diz o que está à esquerda. — E cada dia, um sonho. Você fica querendo acordar. Vira prum lado, vira pro outro. Às vezes sonha que está acordado. E quando sonha que está acordado, fica com aquele olhar de sonâmbulo, querendo dormir mas não consegue. Então fecha os olhos e finge que dorme. Por isso, eu digo: viver é nunca despertar dum sono. 
O matuto do meio escuta.
— Não — diz o que está à direita. — Viver é um rádio. Um rádio sempre fora de sintonia. Você fica girando o botão pra cá, pra lá, sem nunca conseguir acertar uma estação direito. Aquele chchchchchchch irritante não te sai dos ouvidos, e cada estação que você não acerta vai te deixando mais cabrero. De vez em quando, sem saber por que, entra um sonzinho limpo. Assim, sem mais nem menos. Teu coração acelera. Você quase que não acredita que finalmente conseguiu. Então relaxa, pronto pra escutar música. Mas que acontece? A música que está tocando é uma droga. Você pensa, bom, é melhor do que aquele mugido de tempestade, aquela lamúria de marciano o tempo todo nas orelhas. Tenta se confortar. Vai tentando se conformar. Mas depois dum minuto não sabe mais o que é pior: a chiadeira de doido ou a música pra macaco. Então perde a paciência, reclama, pombas! vou mudar de estação. E começa de novo. Mexe dum lado, remexe doutro. Tampa os ouvidos. Retesa o pescoço. Xinga a mãe. Sintoniza. Xinga o pai. Por isso, digo: viver é um rádio fora de sintonia.
O matuto do meio escuta e não diz nada.
— Não — discorda o matuto da esquerda. — Viver é uma canoa. Uma canoa que não existe. Você tá mergulhado lá no meio do rio, a correnteza te levando numa ligeireza danada. Você não sabe pra que lado nadar. Se pergunta: pra que tanta pressa, sô? Olha a margem do rio lá longe — longe demais pra atingir. Mira a jusante, depois a vazante. Reza pra avistar um barco que te salve. Aí uma corredeira mais forte te leva pro fundo. Você esperneia feito doido. Pensa: morro mas morro lutando, como se fosse oliude. Então sobe à tona sem saber como. De repente passa um calhau bem no teu nariz. Você apanha e consegue boiar por mais alguns instantes. Aí vem outro calhau, esse, acompanhado duma tira de cipó. Você dá um jeito de amarrar os dois pedaços de pau e vai boiando. Outros calhaus vão passando e você só incorporando. Até que, exausto, quase decidido a desistir da briga, de repente olha e se assombra: construiu uma canoa quase sem querer! Pula pra dentro da bicha e sai deslizando pelo rio, que agora está mansinho que nem ele só. Mas aí você tá velho demais, cansado demais de pelejar. Na primeira ondinha solta o corpo mole na água e schlope! já era. Não. Viver é uma canoa. Uma canoa que não existe.
O matuto do meio escuta e não diz nada.
— Não — replica o matuto da direita. — Viver é um estupro. No começo você não se dá conta. Mantém a cabeça erguida, como se não tivesse ninguém te enrabando. Fica firme. Nariz empinado. Altaneiro. Senhor de si. A dignidade em pessoa. Se voltasse a cabeça, veria que tinha alguém te comendo o rabo e poria um fim na brincadeira. Mas não. Não tá a fim de olhar pra trás. Só quer saber de seguir. A qualquer custo. E vai seguindo... até que, cedo ou tarde — e mais cedo que tarde —, sente um desconfortozinho...
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não — replica o da direita. — Viver é estar no alto duma montanha. A montanha é alta de deixar tonto. De tirar o fôlego. Invencível. Você está exausto — cada passo é uma tortura. Tuas pernas não querem mais andar. Mas você vai galgando. Resfolega. Geme. E galga. Olha pro alto. O pico da montanha parece totalmente fora do teu alcance. Você olha pra baixo. A ideia de desistir volta — tem de se controlar para não pisar em falso de propósito e despencar duma vez. Basta uma escorregadela... Afasta o pensamento. Pensa de novo. Dá um passo. Para. Limpa o suor da testa. Quer sentir a própria consciência mas não consegue — a cabeça está sob o ataque de lembranças sombrias, passagens lúgubres. Só uma escorregadela... Mas não! É preciso ser bravo. De que serve um homem covarde? Pixotes têm de morrer mesmo. Aí você percebe que apelar pro instinto de sobrevivência te dá ânimo. Se arrasta mais cem metros. E assim vai tua subida rumo ao que você pensa ser o cume, teu cume. Se tiver sorte, muita sorte — ao contrário da maioria sem sorte alguma —, um dia, um dia se vê no pico, no que pensa ser o pico. É o pináculo dos pináculos, de onde todo o resto e todos os demais podem ser olhados de cima. É o mirante de todos os mistérios, esconderijo de toda a beleza que você vem buscando desde que nasceu, ei-la finalmente ao teu alcance, ao teu redor, mas você está cansado, não tem mais olhos para vê-la, não tem mais palavras para descrevê-la. Por isso eu digo: viver é estar no alto duma montanha.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não — diz o da esquerda. — Viver é bater numa porta. Bater. E bater. Bater, bater, bater. Se não abrirem, você bate, bate e bate mais. Até quebrar os dedos. Se abrirem, você vai para a sala de espera. Senta, cruza os braços. É a antessala do Grande Salão dos Acontecimentos. Você olha pros lados. Espera. Olha pro teto. Espera. Levanta, caminha até a porta, põe as mãos nos bolsos, volta pra cadeira, torna a sentar, levanta. Espera. Espera. E espera. Por isso, eu digo: viver é bater numa porta.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não — diz o da direita. — É o que sempre digo: viver é um arrepio num busto de bronze numa praça perdida.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não. Viver é não querer nada. E agradecer pela dádiva de não querer nada.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não. Viver é não pensar duas vezes. Pra não ter de pagar duas vezes.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Sim. E não pensar em todas as possibilidades. 
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— É desaparecer na multidão.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— É não procurar a fonte da alegria.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Viver é morrer.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Viver é viver.
O matuto do meio só escuta e não diz nada. Nisso, um helicóptero passa entre as nuvens. O matuto do meio tira do bolso da camisa uma fotografia. É uma fotografia amarrotada, envelhecida de manchas amarelas. O matuto a coloca diante do rosto, sente vontade de dizer uma ou duas palavras. Desiste. Guarda a fotografia no bolso. Enfia a outra mão num bolso das calças. Apanha uma cartela de pílulas. Extrai uma e põe na boca. E diz:
— O que é ou deixa de ser, não sei. Mas que precisa tomar tranquilizante pra viver, isso não tem dúvida.


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