Deitado,
Deus olha o botão na parede. O botão se acha inapelavelmente longe de seus
outrora superpoderes. O Big Guy nunca se sentiu tão impotente. Quer esticar o
braço. Dói só de pensar. Está paquidérmico. Nos últimos tempos tem engordado a
média de três toneladas e quatrocentos quilos por dia, sem contar os fins de
semana. A culpa, a máxima culpa é d'Ele, só d'Ele, mais ninguém. Contrariando
as ordens de Hipócrates, vem detonando uns dois mil biguemaques às escondidas
por dia. Fora as centenas de batatinhas kingsize. “Ai!”, lamuria baixinho, “preciso
tomar jeito! Se o Serafim sabe... Será melhor cortar o guaraná? Puta merda, nem
Eu posso ter mais prazer nesta vidinha sem graça...!”
Aponta
o dedo na direção do botão. Reza. Fixa o olhar na unha. Faz careta de
agonia. Contorce a carona bolachuda. Parece
estar dando tudo que pode. O dedo vai esticando uns 20 centímetros,
penosamente. Estanca. Deus espreme os lábios, que ainda guardam um quê da
antiga sensualidade divina. Aperta as pálpebras num esforço de concentração. O
dedo avança errático mais uns 10 centímetros, dobra para baixo, exausto, como
se brochasse —. Deus desiste. Reunindo todas as forças que ainda Lhe restam,
solta um urro:
—
Serafiiiiiiiiim!
Mal
chama, se segura no gradil da cabeceira da cama, aguardando o tremor. O quarto
permanece inabalado. Ele espia de lado as paredes para ver se estão vibrando.
Nada. “Putz!”, choraminga de novo, “não posso nem sacolejar esta joça com meus
berros! Que é que está acontecendo coMigo, meu Deus, digo, Eu? O pior é que o
tranqueira do Serafim tá ficando velho e surdo. Antes, vinha correndo mal
sentia o Céu tremer. Agora...”
—
Serafiiiiiiiiim! Serafiiiiiiiiim! Serafiiiiiiiiim! — se põe a esgoelar
histérico. O rosto fica rubro do esforço. Ofegante, Ele sucumbe. Deixa os
braços caírem lassos para os lados. Virando penosamente os olhos, fita
angustiado o aparelho de tevê pendurado na parede à Sua frente. Aperta as
pálpebras uma vez. Nada. Aperta outra. Nada. Dá uma saraivada de piscadas na
direção do aparelho. Nada. Apalpa os lençóis com ambas as mãos, torcendo para
que o controle remoto ainda esteja por ali. A contragosto, gira o pescoço para
o lado do criado-mudo. Ah! lá está o desgraçado! Fora do Seu alcance. “Por que
o Serafim faz isso Comigo?” choraminga de novo. “Te-lo-ei tratado tão mal
durante todos esses milênios, para que ele seja tão cruel em sua vingança?”
—
Serafiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!
A
gigantesca porta da Suíte Divina se abre num baque espetacular, socando
estrondosamente a parede. Um anjo velho e de ar doentio entra. Arrasta uma das
asas no chão atrás de si. Tem a expressão extremamente desanimada. Um humano,
se o visse, se espantaria que criatura tão mórbida e carcomida pela passagem
dos tempos tivesse forças para caminhar.
Apesar
da impressão geral de fraqueza, ele traz no rosto enrugado um esgar feroz,
quase raivoso, que de angelical não tem nada.
O
recém-chegado se detém ao lado da cama de Deus e sibila com voz áspera e dura,
tão dura quanto o olhar frio:
—
Que é que foi dessa vez...? — E completa, agora com desdém: — ...meu Senhor? Quer
mais papa de aveia?
—
Ah! Serafim, graças a Deus, digo, Mim! Já não era sem tempo. Não, obrigado.
Essa papa que você tem me servido... sei não, tem um gosto... como diria...
Bem, um gosto meio estranho.
—
Ora, meu Senhor! — Serafim abre um sorrisinho sórdido e escarnecedor. — É a
mesma que venho Lhe servindo desde o século décimo oitavo a.C. Só mudamos um
pouco os ingredientes. Tiramos a gordura trans, reduzimos o colesterol ruim,
aumentamos as fibras... Sabe como é, essas porc... digo, essas coisas que todos
comem hoje em dia.
Deus
fica absorto por uns segundos, aparentemente procurando uma resposta a
contrapor ao anjo velho e carcomido, mas desiste. Apenas pergunta:
—
Diga: o mundo acabou?
O
anjo velho e carcomido emite uma bufada ruidosa e exasperada.
—
Você me chama lá dos Quintos dos Infernos até aqui só para me fazer essa
pergunta besta? — Serafim se volta bruscamente para a janela, que está aberta,
e sacode raivoso o dedo indicador. — Veja Você mesmo, sua Anta Balofa! Por
acaso parece que o mundo acabou? Aquelas nuvens lá fora serão o quê? Miragem?
Deixe de sentir pena de Si mesmo e ponha esse cérebro entupido de banha para
funcionar, pelo amor de... Bem, Você sabe de quem!
Deus
fecha os olhos, amargurado. Abana longamente a cabeçorra, mexendo os lábios
como se rezasse. Abre os olhos e fita Serafim, um olhar meigo e ao mesmo tempo
suplicante.
—
Hoje não é trinta e um de outubro de dois mil e seis?
—
É claro que é! — Serafim aponta novamente o dedão duro, agora indicando uma
folhinha na parede. — Olha lá! Trinta e um de outubro de dois mil e seis.
Terceiro milênio depois do Teu Filho. Até isso serei obrigado a mastigar para
Você agora?
—
Pois é isso mesmo que estou falando, meu bom Serafim — A voz de Deus tem um tom
extremamente gentil, meigo, quase bajulador. — Pelas minhas contas, o mundo
deveria ter acabado antes de ontem. Vinte e nove de outubro de dois mil e seis.
Era esta a data programada, não era?
O
anjo velho e carcomido faz menção de abrir as asas, mas fica só na ameaça.
Obviamente não teria forças para fazê-lo. Se limita a olhar o teto com
impaciência, chuchando as bochechas por dentro com as gengivas desdentadas. Por
fim, vocifera:
—
Sim, era! Era a data programada. Só que houve... bem, uma ligeira mudança nos
planos, Você sabe.
—
Que mudança? — Deus franze as sobrancelhas, aflito. — Por que não Me
avisaram? Quem mudou?
—
Bem, eu e o meu angelical companheiro Lúcifer decidimos tocar o negócio da data
mencionada em diante.
Deus
parece sentir uma fisgada dentro do peito. Bem que desconfiava que vinha sendo
traído. Só não contava com tamanha desfaçatez.
—
Me diga pelo menos uma coisa, meu bom Serafim. E o Delúbio? Prenderam aquele
diabo, finalmente? Pelo menos isso os homens foram capazes de fazer?
—
Prender o Delúbio? — Sem se conter nem se esforçar para dissimular o deboche,
Serafim assume uma expressão indizivelmente sombria e solta uma gargalhada. —
Hahahahahahá!!! Essa é boa! E quem Você acha que é nosso contato na Terra?
Hahahahahahá!!!
— Nosso?
— Deus percebe algo ominoso naquele plural. Ademais, depois de conviver com
ambos por toda a eternidade, sabe que Serafim e Lúcifer não teriam capacidade
para engendrar um motim sem ajuda externa. — Quer dizer que vocês não estão
sozinhos nessa tramoia contra Mim?
—
Claro que não, Sua baleia já pra lá de extinta! Vimos contando com uma pequena ajudazinha,
hahahahá! dum pessoal lá do Brasil. Desde mil, novecentos e setenta e nove,
para ser mais exato. Hahahahá!
—
Vocês acham que o Berção ainda aguenta?
—
Achamos. Dá para explorar mais uns trinta ou quarenta anos. Se usado com
moderação, claro. Hahahahá!
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