Com o cuspe no bico

Meu vizinho imediato, que morava do outro lado do muro, sumiu.

Se mudou, provavelmente.

E com certeza não foi sequestrado. E não o apagaram, eliminaram nem liquidaram.

Não vi nem ouvi nenhuma viatura da polícia por perto nos últimos tempos.

Não posso descartar assim sumariamente a possibilidade de que ele ainda esteja dentro da casa em estado cadavérico.

Mas é improvável.

Eu mesmo teria sentido o fedor do corpo em decomposição, embora tenha por hábito não dar muita trela a estímulos sensoriais.

De qualquer forma, mesmo que eu não tenha me dado conta, um vizinho do meu sumido vizinho certamente o faria, isto é, se daria conta.

Dizem que depois de dois ou três dias um defunto fede indisfarçavelmente. Não duvido. Se tal acontece com as carcaças dos frangos no refrigerador do Carrefour, de certo ocorrerá também com seres humanos em decomposição.

Seja como for, notei a ausência desse vizinho pelo silêncio.

O sujeito era (será que ainda é?) assaz barulhento.

Toda manhã escutava o programa do padre Marcelo no rádio. O padre Marcelo também é um sujeito barulhento. E enervantemente redundante. Fica repetindo Jesus Jesus Jesus Jesus e Jesus sem parar. Eu achava que fosse algum disco quebrado, até perceber que a intenção do tal padre é enfiar a todo custo na cachola de seus ouvintes que o filho de Deus tem mesmo a capacidade de nos salvar.

Ao término do citado programa do citado padre Marcelo, eu escutava o referido vizinho dar um ou mais telefonema de seu celular. Parecia ser sempre para a mesma pessoa. Nunca pude identificar se o chamado era homem ou mulher. Mas uma coisa determinei: meu vizinho não se dava nada bem com a pessoa do outro lado linha. Mandava-o ou mandava-a ir tomar no cu de minuto a minuto. Por que, nunca me ficou totalmente claro.

De qualquer forma, nunca prestei muita atenção mesmo. Não costumo dar grande importância a vizinhos.

Até que esta manhã, não sei bem por que, acabei sentindo falta de seus impropérios contra o desconhecido ou a desconhecida.

Seja como for, espero que o mesmo ou a mesma não tenha resolvido se vingar, acabando com a raça do coitado.

Puxa vida, me ocorre agora que eu até gostava daquele vizinho.

Um comentário:

  1. Ótima crônica. E vai ver que você na realidade, após tantos "Jesuses", sentia uma satisfação, diria, locupletativa com os "vai tomar no cú" que se prosseguiam. Ou seja, fica implícito que o homem tinha algo que o irritava profundamente, mas logo em seguida incorporava numa rápida reversão, a tua personalidade, um radicalismo totalmente nescessário ao repeteco cristão.

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