Blogando 0006

Como vocês sabem, finalizei o Blogando 0004 c'um lamento (quem, eu lamentando?) sobre que é que iria fazer até as onze, hora do meu primeiro gole. (By the way, vamos fingir que o Blogando 0005 não foi escrito, não existe, não foi lido por ninguém (o que é absolutamente verdadeiro, of course.)) Como todos estão vendo, recaí nessa mania chatérrima de salpicar minhas bloguices c'umas expressõezinhas inglesas aqui e ali, só para fins de codimento. Não, não pensem que é esnobismo. Há décadas deixei de ser esnobe. Era-o quando ainda me deslumbrava com meu próprio conhecimento, minha própria inteligência, minha própria sensibilidade. Não, ainda não me acostumei. Leiam qualquer grande escritor ou poeta e verão que o sujeito nunca para de se espantar com as reações que o mundo e/ou a vida provocam nele ou nela. É um autofoco fundamental (que requer rigoroso autocontrole de qualidade para evitar revisões profundas ou mesmo a lata de lixo). (Aqui caberia uma bela derivação digressiva sobre o tema dileto de Ferreira Gullar, o "espanto", mas que ele, FG, já deveria ter superado aos 80 anos e mudado o disco. FG anda lamentando que há anos está desinspirado. Ora, quem mandou se viciar em espanto? Uma que todo vício é ruim, mesmo esse, nos expulsa de nós mesmos para pôr em nosso lugar sua mecânica perversa. Duas, mesmo para um cara genial como FG, todo caminho, ou sentimento, batido em demasia acaba nos embotando nossas anteninhas, travando  o poeta como se este emergisse dum mergulho num lago de gesso líquido de secagem instantânea. Me delicio a imaginar Ferreira Gullar com aquela dramatiquérrima máscara totêmico-messiânica sob a copiosa cabeleira pálida olhando a parede cedinho de manhã esperando uma visitinha básica dum espanto qualquer para enfim desenferrujar a lira e pôr mãos à obra. Chega de digressão derivativa. Deix'eu reler onde parei para pegar o fio da meada.) Ah sim, estava falando do meu antigo esnobismo, preparando o terreno para soltar umas fustigadas nos esnobes em geral. Estava a ponto de lascar a bobagem de que todo ato de escritura tem um quê de esnobismo e portanto de narcisismo. Me contive a tempo. Embora um arretado narciso esnobe, tenho, ainda, semancol suficiente para identificar os grandes thomas-manns que não se aproveitam do que escrevem para obter vantagens mundanas. Obviamente. Se bem quê. Hoje parece ser bem mais difícil e extenuante ficar ao largo dos ataques da frivolidade. É extremamente fácil você se assarapantar, vislumbrando no espelho das suas próprias palavras a imagem fantasiosa dum gênio literário por se esquecer por alguns instantes de que elas, palavras, embora suas, não lhe dão o direito de usá-las em seu próprio benefício. Tê-las sob seus dedos no teclado não lhe confere poder mundano algum. É compreensível que um primário feito Lula se enlambuze e se refestele e se empanturre com as túmidas tetas da Presidência da República de que jorram infindáveis jatos de grana para a colheita dos neonababos. Seria até justificável, fosse ele um gênio da administração e da economia. Essa imensa baboseira dum operário no poder operou uma catarse coletiva nos corações moles dos eternamente frustrados com as injustiças do mundo, tão profunda catarse, que os impede de enxergar os abusos inaceitáveis cometidos por Lula e sua gangue contra nossa democracia. A essa seguiu-se a catarse da primeira mulher no comando. Mais um transe nacional. Para sorte do país, a jogada de Lula em botar o primeiro negro no STF não produziu o efeito que ele esperava. E Lula está acabado politicamente, deo gratia. Senão era capaz de na próxima vez eleger uma criança. Um travesti judeu japonês baiano professor de dança do ventre. Retomando, àquele que se pretende escritor, grande ou modesto, a frivolidade narcísica não se justifica. Quando citei Thomas Mann me ocorreu a figura impávida de Philip Roth que apanhou o bastão passado pelos grandes do século passado. Que insustentável peso o desse bastão. Como não sucumbir a ele? Embora ainda esteja na dianteira, ao lado duma meia-dúzia de outros bambas, Roth andou ameaçando umas escorregadelas aqui e ali. A mais perigosa sendo a auto-imitação. (Tem hífen? minha cabeça simplesmente se recusa a assimilar essa repulsiva nova ortografia.) Claro, não deve ser batatinha um escritor como ele jogar a toalha, dando-se por satisfeito, reconhecendo que não tem mais nada a dizer, pelo menos não com o vigor e a clarividência de antanho. Mas a capacidade de autoexploração, a espera pelo próprio espanto e seu poder de abrir uma janela para nós mesmos, o gatilho da inspiração, fazem de quem cria meio que um fantoche. Suspeito que, no fim, o que nos cabe e resta é cultivar a humildade. Que talvez nos facilite o autodesarmamento. Que talvez nos ilumine por dentro. Um pouco que seja. Uau, quase duas da tarde e eu ainda aqui com minhas encucações. Passei batido pelas onze. Onde estava mesmo? Ah é, passeando com minha dobberman chiuaua Zezeí. Sempre que retorno das nossas caminhadas me ocorre que preciso acabar com essa mania de andar cabisbaixo qual um penitente. Só ergo a cabeça quando escuto uma ave a cantar. A cidade está tomada de sabiás-laranjeira, bem-te-vis, as maritacas foliãs. É primavera, a minha, não a do Tim Maia, nem a do Boato da primavera de Drummond. Ainda acordo com meu fiel sabiá-laranjeira, que madruga cada vez mais cedo a cada ano que passa. Quando começou a cantar para mim há uns doze anos, ele acordava às quinze para as cinco. Hoje mal dá três e meia da matina e já ouço a melíflua, fluente flauta sob a qual flutuam minhas reflexões malsãs, com perdão das anáforas. Meus ataques disparados pelo passado, meus contra-ataques automáticos vãos. Ah, a hipernarcísica Camille Paglia e sua ira divina e seu canhonaço contra blogs e blogueiros. "Ainda não apareceu nenhuma figura de monta nos blogs. Se defacto querem escapar de seu gueto, os blogueiros precisam adquirir um senso de drama e teatro e talento linguístico. Caso contrário, por que raios os outros haverão de lê-los? E, em minha opinião, a internet é um meio visual  — não entro na rede para cair numa página encardida entulhada de prosa indigesta." Bem, foi Camille quem disse, não eu. Para mim praticamente toda prosa que não seja minha é indigesta. Será narcisismo? Receio que sim. Sou meu pai, sou meu filho. Como diz um dos meus frasistas preferidos e igualmente narciso, Oscar W., "Nunca viajo sem meu diário. Deve-se sempre ter algo sensacional para ler no trem". Comecei a ler o diário de Samuel Pepys. Talvez fale dele em Blogando 0007, se não beber além do sensato. Como vocês sabem, o bom-senso não é meu forte. Agora ao primeiro gole, finalmente. Até logo mais. Sempre em pensamento.

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