Não gosto de
perdoar. Me aflige assistir a uma mágoa que me levou a classificar alguém de
imperdoável se desvanecer por falta de adubo. Muito pelo contrário. Quando
percebo que o motivo que me fez ou os motivos que me fizeram ficar com
ressentimento de alguém está ou estão perdendo força no dínamo de fel que trago
aqui dentro de mim, me apresso a remexer a lenha no fogo. Dependendo das
implicações duma mágoa, posso soprar as brasas apenas para manter vivo o calor
e ficar aqui no meu cantinho curtindo essa quentura que me alivia do fardo de
pensar. (Não me dou muito bem com o frio. Trauma de parto. Nasci em dezembro,
sob prováveis 30ºC, mas o registro que guardei daquele instante é o dum
mergulho inverso catastrófico num mundo paralisado pelo gelo.) Ou, quando as
implicações envolvem um cipoal de outros sentimentos, posso reavivar o fogo até
reobter as belas frondosas arrebatadoras calcinantes labaredas que um dia já
distante incendiaram meus olhos e enterneceram meus ouvidos com o firme e
furioso crepitar duma fogueira apocalíptica.
Sei, vocês aí
fora já estão torcendo seus narigões e seus narizinhos para tão despropositada
enunciação. Isto é, os que conseguiram ultrapassar a zona da arrebentação, que
hoje está tormentosa além do normal. (D. F. Wallace e outros são a favor de que
não se dê mole ao leitor. Pessoalmente não tenho opinião formada. (O que, para
alguém que se diz escritor, é uma vergonha.) Vai do calor (epa!) da hora. Tem
hora, acho que devo dar umas mastigadas para que o leitor não engasgue com os
caroços que vou largando displicente na massa. (Mas sempre há o risco de melar a
gogoroba com excesso de baba.) Outras horas, ligo o automático e fôdasse. Outras
ainda, nem mastigo nem degringolo. Sei que minha escrita (ou escritura,
para agradar aos professores literários) sofre de terrível variação em estilo e
qualidade. Pois é.) Quase que posso ouvir daqui do meu ninho escondido entre as
copas das árvores "Que
exagero!", assim, com a voz anasalada dos moralistas e o ponto de
exclamação dos espantadiços. Bem, digamos que depende do ponto de vista.
Lembram daquele rapaz que se dizia exagerado, como se chamava mesmo? ah sim,
Cazuza, como era mesmo o versinho? deix'eu olhar no Google... ...olhando...
...aqui está, "Eu sou
mesmo exagerado", bem,
nunca enxerguei lá muito talento ou inspiração nessa baladinha, pois não vejo
exagero algum nos exageros de que o rapaz falava. E se ele via (algum exagero
em suas normalidades), então seu único exagero era se achar poeta quando na
verdade seu caso se tratava igualmente de moralismo. Ou pensar que podia
escandalizar um verdadeiro poeta com seus arroubos adolescentes.
(Não posso
deixar passar batido, merece uma espicaçada. Arroubos adolescentes é o
que se vê na imensa maioria dos blogs que se dizem literários por aí. Sei,
dependendo, é fácil confundir com literatura esquerdismo, inadequação, queda
para a nostalgia, inconformismo, revolta com relação aos pais, aos tios, aos
vizinhos, falta de reconhecimento alheio e outros males. Eu mesmo custei décadas
para aceitar a diferença. Ou você tem o talento primitivo e visceral
duma Stela do Patrocínio, ou arregaça as mangas e parte para desenvolver seu,
com perdão da palavra, potencial. (Não se esqueça de se assegurar primeiro de
que o tem, senão lá se vão décadas de tempo perdido.) Seja como for, os que nos dispomos etc. cedo aprendemos a criar,
e logo o maturamos, um semancol literário. O método mais fácil e seguro é ler
sem parar, sem parar, sem parar. Começando-se o mais precocemente possível na
vida. Assim, com uns 20 anos (falo dos não gênios) você já saberá que o galo
sempre canta longe de onde a porca torce o rabo. É Kartoffel.)
Para um
(verdadeiro) poeta não existem exageros. Pelo menos não sob os, com perdão da
palavra, critérios dos escandalizáveis, os viciados no princípio burguês de que
o pensamento e a experiência humanos devem-se circunscrever a uma média
utilitarista em prol dos homens de boa vontade. Imaginem Edgar Allen Poe ou seu
conterrâneo e tradutor Baudelaire (de quem Poe também era tradutor). O
verdadeiro horror nas histórias escabrosas de Poe é a naturalidade com que ele
se atreve a trazer a lume aspectos terrivelmente mórbidos, perversos da
natureza humana. Acontece que em Poe isso é apenas mais exacerbado. Todo
escritor (digno do nome) faz o mesmo em maior ou menor grau.
Todo mundo
queria gostar de perdoar, menos eu? Eis uma boa questão. A maioria, talvez. Ao
longo da minha vida já vi inúmeros exemplos de gente incapaz do perdão. Eu
mesmo fui um deles. Me recobrei (ainda hoje não sei se a tempo ou não. Ainda
não consegui decidir quais caminhos que tomei merecem ou não uma reanálise sob
a pálida luz que bruxuleia dentro do cegante farol marítimo do arrependimento.
Ah jesus, quantas vezes faço e refaço esses caminhos. Ah jesus, quantas vezes
faço e refaço aturdido, amargo, álacre, esses caminhos. Tem hora, absorto em
mim e em meus pecados e em minhas perguntas sem resposta. Outras horas,
plenamente cônscio e convicto dos meus controversos ambíguos caminhos.
E essa
incapacidade traz resultados desastrosos e muitas vezes destrói tanto o
imperdoador quanto o, aos olhos deste, imperdoável. A incapacidade do perdão é
praticamente sinônima da incapacidade da gratidão. Esta sendo ainda mais
deletéria. Bem, está tudo bem explicado em Inveja
e gratidão, da sagaz e imperdoável Melanie Klein.
Minha questão
não é querer gostar de perdoar.
A minha
questão é querer gostar de não perdoar.
Não quero
perdoar pela mesma razão por que preciso entrar na sala e ver o triciclo
deixado por Papai Noel.
Aquela manhã
papai parecia feliz e me basta. A mana ganhou uma boneca, uma enorme boneca
rósea cujo colorido arbitrário depois fingíamos evocar com ternura e pompa a
nossa pele branca. Hoje olho minha irmã rabugenta, a quem um dia quis
mostrar um poema e me retrucou com sua proverbial cara de inhaca, “Não gosto
de poesia”, mesmo sendo a mais pantagruélica devoradora de livros que já
conheci, leu Proust inteiro várias vezes, já sabia, pensei, fantástico como
para certas pessoas a poesia parece ser um tipo de antídoto da prosa,
inconciliáveis antípodas que moram tão lado a lado da nossa frágil vigília.
Mas não era
nada disso que eu queria falar. Assim como em Blogando 0007 e também nos demais
Blogandos, me afastei da minha meta inicial, tomei atalhos com a intenção de
retomar o caminho principal posteriormente mas tudo que logrei foi me perder.
É que gosto
de me arrepender.
Sim, o
arrependimento me dá um barato, qual uma droga. Um kick.
Vocês aí fora
com seus narizinhos e narigões eternamente torcidos na certa já viram muita
gente boa declarar alto e bom som que "Eu
não me arrependo de nada em minha vida!" Sim, com ponto de exclamação e tudo,
como se empoleiradas em cima dum púlpito na pracinha da igreja, numa das mãos o
panteão nacional, na outra a espada dos justos, na voz a empostação fabricada
própria para manifestar sentimentos enlatados.
Sempre leio o
blog do Reinaldo Azevedo. Por, digamos, dever de ofício. Azevedo é o paladino
mor dos que lutamos contra a tirania asquerosa do lulopetismo e por isso deve ser lido e apoiado diuturnamente.
Não é que dia desses ele escreveu todo um comentário se ufanando de nunca se
arrepender de coisa alguma? Bem, pelo próprio papel que exerce, concedo que
Azevedo deva fomentar em seu enorme público a noção de que ali está um genuíno
herói. Assim como várias outras virtudes particulares que vive alardeando,
talvez ele pense que assim facilita a disseminação de suas ideias e opiniões,
sempre com o fim precípuo de estabelecer um contrapeso aos que resolveram
apadrinhar Lula e seus meliantes. Certo, a heróis não se permite o luxo de
arrepender-se. Senão, se humanizariam e pluft! o heroísmo já era. Mas pode ser
que se trate apenas de recaídas narcísicas. Como sempre digo, é extremamente
fácil deixarmos passar declarações grandiloquentes a nosso próprio respeito
quando escrevemos sobre nós mesmos. Quem sabe eu também me deixaria levar se
tivesse aquela platéia de dezenas de milhares de acessos diários. Talvez
confidenciasse que nunca me arrependi de porra nenhuma em minha vida. Uau, só
de imaginar já me sinto melhor. Meu continuamente acabrunhado espírito até se
elevou uns centímetros.
Eu podia
ainda me fingir de nobre e afirmar que escrevo para descobrir a verdade, não
para exibir aos olhos alheios penas de pavão que não tenho.
Podia mas não
finjo nem afirmo. Escrevo por uma porrada de razões. Todas de foro íntimo. Quem
me ler e se dispuser a aceitá-las, ótimo. Quem não me ler e se dispuser a
aceitá-las, ótimo. Quem me ler e não se dispuser a aceitá-las,
ótimo. Quem não me ler e não se dispuser a aceitá-las, ótimo.
Me sinto estranho quando estou me sentindo bem. Mas não me sinto bem quando estou me sentindo estranho. Contradições humanas. Por que somos tão complicados, mein gott?
Bem, hoje tenho o Google e daqui a
pouco vou buscar os sons e os esgares que se perderam lá trás. Uma vez imaginei
um portal chamado pai.com ou father.com. Você entrava, se registrava e logo
estava cara a cara com seu pai, seu antigo pai, vivo, morto ou seja qual for o
estado em que você mantém seu pai hoje.
Como
qualquer ser humano normal que curte alimentar as próprias mágoas e brincar sem
fim com situações alternativas aos vexames que todos passamos mais ou menos em
escala cubana ou industrial nesta jornada tortuosa rumo à morte, o que quero
dizer está sempre uma palavra aquém do que a barragem de ácido nítrico que
cultivo no jardim da minha cabeça me permite. Um dia lá longe imaginei ser
capaz de neutralizá-la (a barragem). Vejo hoje que não tenho forças, paciência,
interesse, estâmina. Estou vendo se aprendo a me aceitar hoje como sou hoje
como tão ardorosamente tentava me aceitar adolescente como era adolescente
então. Se for honesto, você vai ver que os lances simplesmente não batem.
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