Blogando 0008


Não gosto de perdoar. Me aflige assistir a uma mágoa que me levou a classificar alguém de imperdoável se desvanecer por falta de adubo. Muito pelo contrário. Quando percebo que o motivo que me fez ou os motivos que me fizeram ficar com ressentimento de alguém está ou estão perdendo força no dínamo de fel que trago aqui dentro de mim, me apresso a remexer a lenha no fogo. Dependendo das implicações duma mágoa, posso soprar as brasas apenas para manter vivo o calor e ficar aqui no meu cantinho curtindo essa quentura que me alivia do fardo de pensar. (Não me dou muito bem com o frio. Trauma de parto. Nasci em dezembro, sob prováveis 30ºC, mas o registro que guardei daquele instante é o dum mergulho inverso catastrófico num mundo paralisado pelo gelo.) Ou, quando as implicações envolvem um cipoal de outros sentimentos, posso reavivar o fogo até reobter as belas frondosas arrebatadoras calcinantes labaredas que um dia já distante incendiaram meus olhos e enterneceram meus ouvidos com o firme e furioso crepitar duma fogueira apocalíptica.

Sei, vocês aí fora já estão torcendo seus narigões e seus narizinhos para tão despropositada enunciação. Isto é, os que conseguiram ultrapassar a zona da arrebentação, que hoje está tormentosa além do normal. (D. F. Wallace e outros são a favor de que não se dê mole ao leitor. Pessoalmente não tenho opinião formada. (O que, para alguém que se diz escritor, é uma vergonha.) Vai do calor (epa!) da hora. Tem hora, acho que devo dar umas mastigadas para que o leitor não engasgue com os caroços que vou largando displicente na massa. (Mas sempre há o risco de melar a gogoroba com excesso de baba.) Outras horas, ligo o automático e fôdasse. Outras ainda, nem mastigo nem degringolo. Sei que minha escrita (ou escritura, para agradar aos professores literários) sofre de terrível variação em estilo e qualidade. Pois é.) Quase que posso ouvir daqui do meu ninho escondido entre as copas das árvores "Que exagero!", assim, com a voz anasalada dos moralistas e o ponto de exclamação dos espantadiços. Bem, digamos que depende do ponto de vista. Lembram daquele rapaz que se dizia exagerado, como se chamava mesmo? ah sim, Cazuza, como era mesmo o versinho? deix'eu olhar no Google... ...olhando... ...aqui está, "Eu sou mesmo exagerado", bem, nunca enxerguei lá muito talento ou inspiração nessa baladinha, pois não vejo exagero algum nos exageros de que o rapaz falava. E se ele via (algum exagero em suas normalidades), então seu único exagero era se achar poeta quando na verdade seu caso se tratava igualmente de moralismo. Ou pensar que podia escandalizar um verdadeiro poeta com seus arroubos adolescentes.

(Não posso deixar passar batido, merece uma espicaçada. Arroubos adolescentes é o que se vê na imensa maioria dos blogs que se dizem literários por aí. Sei, dependendo, é fácil confundir com literatura esquerdismo, inadequação, queda para a nostalgia, inconformismo, revolta com relação aos pais, aos tios, aos vizinhos, falta de reconhecimento alheio e outros males. Eu mesmo custei décadas para aceitar a diferença. Ou você tem o talento primitivo e visceral duma Stela do Patrocínio, ou arregaça as mangas e parte para desenvolver seu, com perdão da palavra, potencial. (Não se esqueça de se assegurar primeiro de que o tem, senão lá se vão décadas de tempo perdido.)  Seja como for, os que nos dispomos etc. cedo aprendemos a criar, e logo o maturamos, um semancol literário. O método mais fácil e seguro é ler sem parar, sem parar, sem parar. Começando-se o mais precocemente possível na vida. Assim, com uns 20 anos (falo dos não gênios) você já saberá que o galo sempre canta longe de onde a porca torce o rabo. É Kartoffel.)

Para um (verdadeiro) poeta não existem exageros. Pelo menos não sob os, com perdão da palavra, critérios dos escandalizáveis, os viciados no princípio burguês de que o pensamento e a experiência humanos devem-se circunscrever a uma média utilitarista em prol dos homens de boa vontade. Imaginem Edgar Allen Poe ou seu conterrâneo e tradutor Baudelaire (de quem Poe também era tradutor). O verdadeiro horror nas histórias escabrosas de Poe é a naturalidade com que ele se atreve a trazer a lume aspectos terrivelmente mórbidos, perversos da natureza humana. Acontece que em Poe isso é apenas mais exacerbado. Todo escritor (digno do nome) faz o mesmo em maior ou menor grau.

Todo mundo queria gostar de perdoar, menos eu? Eis uma boa questão. A maioria, talvez. Ao longo da minha vida já vi inúmeros exemplos de gente incapaz do perdão. Eu mesmo fui um deles. Me recobrei (ainda hoje não sei se a tempo ou não. Ainda não consegui decidir quais caminhos que tomei merecem ou não uma reanálise sob a pálida luz que bruxuleia dentro do cegante farol marítimo do arrependimento. Ah jesus, quantas vezes faço e refaço esses caminhos. Ah jesus, quantas vezes faço e refaço aturdido, amargo, álacre, esses caminhos. Tem hora, absorto em mim e em meus pecados e em minhas perguntas sem resposta. Outras horas, plenamente cônscio e convicto dos meus controversos ambíguos caminhos.

E essa incapacidade traz resultados desastrosos e muitas vezes destrói tanto o imperdoador quanto o, aos olhos deste, imperdoável. A incapacidade do perdão é praticamente sinônima da incapacidade da gratidão. Esta sendo ainda mais deletéria. Bem, está tudo bem explicado em Inveja e gratidão, da sagaz e imperdoável Melanie Klein.

Minha questão não é querer gostar de perdoar.

A minha questão é querer gostar de não perdoar.

Não quero perdoar pela mesma razão por que preciso entrar na sala e ver o triciclo deixado por Papai Noel.

Aquela manhã papai parecia feliz e me basta. A mana ganhou uma boneca, uma enorme boneca rósea cujo colorido arbitrário depois fingíamos evocar com ternura e pompa a nossa pele branca. Hoje olho minha irmã rabugenta, a quem um dia quis mostrar um poema e me retrucou com sua proverbial cara de inhaca, “Não gosto de poesia”, mesmo sendo a mais pantagruélica devoradora de livros que já conheci, leu Proust inteiro várias vezes, já sabia, pensei, fantástico como para certas pessoas a poesia parece ser um tipo de antídoto da prosa, inconciliáveis antípodas que moram tão lado a lado da nossa frágil vigília.

Mas não era nada disso que eu queria falar. Assim como em Blogando 0007 e também nos demais Blogandos, me afastei da minha meta inicial, tomei atalhos com a intenção de retomar o caminho principal posteriormente mas tudo que logrei foi me perder.

É que gosto de me arrepender.

Sim, o arrependimento me dá um barato, qual uma droga. Um kick.

Vocês aí fora com seus narizinhos e narigões eternamente torcidos na certa já viram muita gente boa declarar alto e bom som que "Eu não me arrependo de nada em minha vida!" Sim, com ponto de exclamação e tudo, como se empoleiradas em cima dum púlpito na pracinha da igreja, numa das mãos o panteão nacional, na outra a espada dos justos, na voz a empostação fabricada própria para manifestar sentimentos enlatados.

Sempre leio o blog do Reinaldo Azevedo. Por, digamos, dever de ofício. Azevedo é o paladino mor dos que lutamos contra a tirania asquerosa do lulopetismo e por isso deve ser lido e apoiado diuturnamente. Não é que dia desses ele escreveu todo um comentário se ufanando de nunca se arrepender de coisa alguma? Bem, pelo próprio papel que exerce, concedo que Azevedo deva fomentar em seu enorme público a noção de que ali está um genuíno herói. Assim como várias outras virtudes particulares que vive alardeando, talvez ele pense que assim facilita a disseminação de suas ideias e opiniões, sempre com o fim precípuo de estabelecer um contrapeso aos que resolveram apadrinhar Lula e seus meliantes. Certo, a heróis não se permite o luxo de arrepender-se. Senão, se humanizariam e pluft! o heroísmo já era. Mas pode ser que se trate apenas de recaídas narcísicas. Como sempre digo, é extremamente fácil deixarmos passar declarações grandiloquentes a nosso próprio respeito quando escrevemos sobre nós mesmos. Quem sabe eu também me deixaria levar se tivesse aquela platéia de dezenas de milhares de acessos diários. Talvez confidenciasse que nunca me arrependi de porra nenhuma em minha vida. Uau, só de imaginar já me sinto melhor. Meu continuamente acabrunhado espírito até se elevou uns centímetros.

Eu podia ainda me fingir de nobre e afirmar que escrevo para descobrir a verdade, não para exibir aos olhos alheios penas de pavão que não tenho.

Podia mas não finjo nem afirmo. Escrevo por uma porrada de razões. Todas de foro íntimo. Quem me ler e se dispuser a aceitá-las, ótimo. Quem não me ler e se dispuser a aceitá-las, ótimo. Quem me ler e não se dispuser a aceitá-las, ótimo. Quem não me ler e não se dispuser a aceitá-las, ótimo. 

Me sinto estranho quando estou me sentindo bem. Mas não me sinto bem quando estou me sentindo estranho. Contradições humanas. Por que somos tão complicados, mein gott?
Bem, hoje tenho o Google e daqui a pouco vou buscar os sons e os esgares que se perderam lá trás. Uma vez imaginei um portal chamado pai.com ou father.com. Você entrava, se registrava e logo estava cara a cara com seu pai, seu antigo pai, vivo, morto ou seja qual for o estado em que você mantém seu pai hoje.
Como qualquer ser humano normal que curte alimentar as próprias mágoas e brincar sem fim com situações alternativas aos vexames que todos passamos mais ou menos em escala cubana ou industrial nesta jornada tortuosa rumo à morte, o que quero dizer está sempre uma palavra aquém do que a barragem de ácido nítrico que cultivo no jardim da minha cabeça me permite. Um dia lá longe imaginei ser capaz de neutralizá-la (a barragem). Vejo hoje que não tenho forças, paciência, interesse, estâmina. Estou vendo se aprendo a me aceitar hoje como sou hoje como tão ardorosamente tentava me aceitar adolescente como era adolescente então. Se for honesto, você vai ver que os lances simplesmente não batem.

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