Para Sylvia Plath

Saindo direto de Age of Aquarius para um noturno em mi maior de Chopin, pensando em escrever neste meu quarto para o qual mudei muito recentemente sob um calor de 500 graus à sombra nesta noite sem lua ou estrelas, povoada apenas dos sussurros metálicos na rua e lembranças desesperançadas, concluindo que minha única saída é me abraçar a uma serpente.

Uma serpente peçonhenta.

Queria saber de vocês meus amigos leitores o que acham dessa minha conclusão, preciso que me digam, vou esperar a resposta pois é questão de sanidade mental ou trevas psicóticas.

Explico:

É que, imagino, uma serpente peçonhenta por quem me apaixonasse provavelmente exigiria que eu cumprisse à risca minhas promessas.

Não, não sou relapso.

Só esperava que quando dissesse, "Benzinho, estarei de volta no lusco-fusco do crepúsculo...", ela, a serpente peçonhenta, em vez de rir, se limitasse a sibilar cissssssssssssshhhhhh e quem risse fosse eu e então trocaríamos faíscas e chiados, lotando com nossos ruídos o ar vazio à nossa volta, eu e esta minha serpente de medonha peçonha.

Mas devo, antes que meus milhões de leitores respondam, devo subir o volume de Daydream, com a improvável banda holandesa Wallace Collection, baseada em Tchaikovski. Devo ainda confessar que redijo mais esta insensatez ainda sob os eflúvios etílicos da tarde que se seguiu a esta manhã que veio após esta madrugada e assim por atrás, atrás, atrás...

Acordei às 7 e tantos, ressaca cavalar -- não sei se me regozijo por saber me manter no reino da zoologia --, me ergui da cama pensando estar atado a uma cadeira elétrica, dei duas ou três voltas ao mundo sem me surpreender por coisa alguma e retornei de língua de fora, vira-lata existencialista marrudo apegado às convicções que um vira-lata é capaz de desenvolver em sua faina vagabunda.

Acordei às 7 e tantos e, dio mio, fui ler Sylvia Plath.

Mas em vez de ler Sylvia Plath, me vi obrigado a escrever para ela, como sempre me ocorre.

E botei Daydream no último volume e escrevi assim:

Para Sylvia Plath

Na maioria eles estacionam longe, mesmo havendo vaga em frente, e vêm chegando sorrateiros, cabeça baixa, quase às escondidas. Não olham para os lados. O portão fica convenientemente às escuras. São quase todos velhos, caras que se pretendem circunspectas mas que denunciam a angústia da transgressão constrangida. Algumas velhas senhoras ousam comparecer sozinhas qual adolescentes fugindo da família. Muitos são gordos, alguns obesos, párias da classe média não aceitos em outros circuitos do epicurismo. Se não jogam, ficam em casa a se empanturrar, remoendo a culpa pela glutonice, provavelmente com muito maior amargor. Assim optam por um tipo de autodegradação que confira ao menos algum prazer sem cobrar o alto preço de fechar os olhos diante do espelho.

Sylvia, há também os moços e as moças. Me espanto vendo-os vindo dar seu suado dinheiro aos donos da jogatina. Invariavelmente se vestem com discrição e simplicidade, tons pastéis, de certo receando chamar atenção. (Mas obviamente chamam a dum sujeito desgarrado do rebanho como eu.)

Mesmo o jeans é raro entre essa extemporânea moçada. Envergam ares de jovens cansados e desiludidos, envelhecidos demasiado cedo. Deslocados, a esta hora deviam estar alhures, bebendo vodka com energético, esnifando coca, curtindo os vícios próprios da idade. Em vez disso movem-se para dentro e para fora da grande casa silenciosos, olhares no chão, semiocultos na penumbra da noitinha, lamentando a insufiência das sombras.

O recém-chegado dá um envergonhado toque na campainha e é instantaneamente absorvido como se um hiperaspirador quântico o sugasse num piscar da história. Às vezes tenho a pachorra de fazer um pouco de farol na porta de casa acompanhando o movimento e então flagro uns e outros caindo fora nem dez ou vinte minutos se passam. Provavelmente são os mais afoitos. Ou entraram sonhando com a jogada milagrosa que lhes daria uma bolada suficiente para um mês de mercado ou já saíram de caso predispostos a perder logo tudo de uma vez na esperança de abreviar ao máximo, e ao mínimo, o sofrimento da impaciência. Qualquer que seja sua categoria, as maquininhas de arrancar grana de doentes os deixam lisos assim que finalizam a consumação média estimada. Permanecem no casulo tumular sobrecarregado de fumaça de cigarro apenas o bastante para algumas meias cervejas, das quais a derradeira abandonam pela metade assim que se dão conta de sua indefectível falta de sorte e fogem apressados para retomar suas vidinhas sem perspectiva.

Sylvia, sei que posso estar soando moralista. Mas, veja, não tenho de fato pena dos jogadores. Pelo contrário, admiro neles a facilidade com que se entregam à única curtição que ainda lhes é possível e a despreocupação com que dão de mão beijada suas economias aos "empresários" do jogo.

Eis um vício que jamais dominaria minha vontade, por fraca que seja, nem os resquícios que ainda me restam de sensatez, que nunca foi meu forte. Apostar no mano a mano com um computador que está sabidamente programado para trapacear flutua soporiferamente longe do meu entendimento. Me render ao autoludibrio, mesmo que por livre e espontânea vontade, a lúdico título, não faz meu gosto nem satisfaz minha vocação à desconfiança. Me pergunto se pode haver gente que curte ser enganada. Pode, obviamente, me respondo indiferente. Para que fim, nem imagino. Será sentimento de culpa que requer expiação circular e constante? Quem sabe. Nunca fui bom em análise psicológica. Cada um que seja louco como melhor lhe aprouver, não é mesmo, minha cara teutônica?

Eu nunca participaria dum esquema que não me permitisse auferir algum dividendo. Mesmo que simbólico. Se um dia entrasse num bingo, contendo o nojo daquele fedor misto de cerveja rançosa esparramada nos tampos das mesas, montanhas de tocos cigarros desamparadamente esmagados nos cinzeiros imundos e coxinhas, quibes e esfirras esquecidas pelos cantos, não ia sair sem um lucro qualquer, por ínfimo que fosse. Poderia ser um uísque por conta da casa a título de consolo pelos meus dez reais perdidos ou um brindezinho como um boné com a inscrição "Sou idiota, jogo no bingo do Zé". De mãos abanando e cara de tacho, nem pensar.

Certo, os velhos - talvez não incluindo aqueles que frequentam bingos - antigamente costumavam recomendar a nós jovens, "nunca diga 'deste uísque não beberei'". Gostavam também de repetir preciosidades como "o mundo dá voltas", dito que eu, molecão afeito a radicalismos e chegado a um preto-no-branco, achava risivelmente imbecil. (Embora hoje saiba que é um dos pilares da existência e que não se ri impunemente dum dos pilares da existência.)

Ainda que leitor desde pirralho, sempre tive problemas com o potencial evocativo do vernáculo. Lembro que, púbere, metáforas e metonímias me irritavam. Passando pela escola, fui forçado a me submeter às figuras de palavra e de linguagem de que todos padecemos. Até assimilei algumas, só para me dar conta de que hoje em dia ainda as detesto, tal como Roth e outros grandes americanos mas que eram o xodó da minha iridiscente Sylvia. (Provavelmente o são para os poetas em geral.)

Em contrapartida, todo mundo e sua sogra hoje diz "risco de morte", ao que parece em nome da "clareza" da comunicação e sob o pavor de que as infinitas complexidades da língua fujam ao controle, que já é desoladoramente parco. Nesse sentido, acho mesmo que esses semi-letrados têm razão: é melhor estarem bem seguros de suas palavras, por mais pobres que estas sejam, do que se aventurarem numa sutileza linguística que na verdade signifique o contrário do que pretendem expressar. Falar "risco de morte" no fundo é sensatamente não correr riscos de morte de vexames semânticos.

Quando dou ponto e parágrafo a música cessa e acordo do transe.

Que é que estou fazendo?

Disse cassinos, linguística, contrapartida, nesse sentido, me dirigindo diretamente a Sylvia?

Que raios sei dessas coisas? Quem estou querendo imitar? Quem estou querendo enganar?

Não sei falar dessas coisas, você, mais que todos, é testemunha. Não sei falar assim mansinho e disciplinado não senhora.

Por que não me deu um safanão, minha gélida e alourada germânica intérprete da vida que corre além de mim?

Coisas como contrapartida, nesse sentido e outros penduricalhos do jargão acadêmico infrigem minha regra de dieta faquiriana a qualquer custo e prova.

Estabeleci para mim mesmo minha dieta faquiriana de escrita há dezenas de anos, quando descobri que, qual qualquer cristão ou judeu, não sou imune a desandar na xaropada. É verdade que quase tudo que se escreve por aí é encheção de chouriço, inclusive entre os grandes, tirante os gênios. Mas um limite razoável faz-se necessário. Nós que escrevemos por compulsão não vamos largar o osso por tão ridícula ninharia. E os que nos leem por inércia ou falta do que fazer certamente são piedosos e condescendentes e, estimo, preferem preservar a amizade, mesmo que impessoalmente digital, a me esfregar na fuça de peroba a abrasão da verdade.

Mas, em que pese o retro-referido, peço aos meus caridosos amigos digitais, os únicos que ainda se dignam a passar a vista pela indigência das minhas palavras, que fiquem atentos. Não apenas: precavidos. Ainda mais: desconfiados.

Se porventura suspeitarem que escrevi este texto ou qualquer outro como se estivesse dormindo, rogo que me acordem cum belo cutucão de indicador rijo bem no meio das minhas costelas. (Ando meio acima do peso, por isso não economizem na força ou na raiva.) E não estranhem que eu possa escrever durante o sono -- é o estado em que perpetro a maioria das minhas saladas de abóbora doce. Simplesmente não me deixe rezingando quando tá na cara que, ao invés de escrever, eu queria estar mamando meu uisquinho com água de coco nos braços da minha impalpável serpente peçonhenta.

Você, meu amigo digital, também é um dos que vai levando? (Pelo amor do senhor que está no céu, não vá pensar na música do Chico, please. Alguém me faça a misericórdia de chacoalhar a sombra que projeta por sobre todos nós esse sujeito.)

Quanto a mim, sim, vou levando minha luta diária me abanando nesse calor dos infernos durante o dia, dormindo de cueca ou peladão feito um nenê hipertrofiado, morrendo de frio à noite, selando os lábios com fita crepe durante o sono para que deles não me escape nenhum dos muitos segredos que conheço.

Tenho uma pequena canoa de plástico.

Nos fins de semana pego minha canoa de plástico, passo na bomboniere pertinho de casa, pego uns docinhos que me lembram as guloseimas que mamãe me fazia para lanchar na escola junto cum sanduíche de presunto e umas rodelas de salame e vou pescar na lagoa que tem no parque desta cidade em que moro e não quero outra coisa na vida senão talvez reformar minha cozinha (você sabe, trocar os azulejos e o piso, mudar a pia de lugar, desintupir o ralo que vive entupido, essas sarnas que pegam em todos nós mortais). Se um dia tiver meios para viajar, hei de trazer aqueles estonteantes almofadões da Macy's.

Nos bolsos da frente das calças vou levando, de novo, alguns punhados de farelo para o caso de me dar vontade de passar no parque aqui perto caso me dê vontade de alimentar as garças e os cágados e os porteiros, embora, sei, seja proibido como tudo que é bom nesta nossa vidinha sem graça. Quando vou ao parque procuro um banco afastado, sem companhias indesejáveis, de onde possa assistir à lida dos varredores dedicados a manter limpos os jardins que nesta época do ano estão salpicados de azaleas brancas, vermelhas e rosas e borrados de hortências roxas e lilazes.

Mamãe botava muito fermento no bolo de fubá com banana que fazia semanalmente para mim e desde pequeno me chamam de gordo, o que hoje sou por culpa própria e de mais ninguém e ser responsável pelas próprias culpas é um dos poucos consolos que me restam.

Os varredores no parque são quase todos velhos ou jovens já com pinta de velhos, fugidos das roças do Nordeste e de Minas e me sinto catolicamente superior a eles e é dessa gente que posso me sentir superior e mesmo assim alguns passam por mim e têm o topete de me olhar de cima como se guardassem na manga alguma razão para me esnobar. Se fosse parrudo mostrava o dedo para eles e ia pra cima e perguntava tá olhando o que, porra? Olha que te enfio o cabo desse varrourão no rabo. Espalho o farelo na beira do lago e resolvo dar o fora antes de arrumar encrenca.

Na saída do parque a prefeitura está instalando aqueles tubos gigantes para coleta de esgoto ou água da chuva e há uma centena deles enfileirada ao longo da comprida, funda vala já escavada, formando um túnel no qual entro fingindo que me conduzirá para as entranhas do planeta e daí para o inferno onde o diabo me aguarda às 15:45 para me recepcionar com toda sua diabólica pompa. Um operário de capacete e uniforme laranja me vê e ri se perguntando que é que um cara da minha idade tá fazendo correndo dentro dos tubos fingindo conversar com alguém invisível e me dá gana de responder que pelo menos tenho todos os dentes e não vou morrer seco na fila do SUS embora ninguém me espere em casa esta tarde mas pelo menos não tenho nove caraminguás esfomeados me esperando chegar depois do trabalho para ser expulsos do quarto-e-cozinha enquanto o patriarca fertiliza a escrava sexual encomendando o futuro décimo abridor de valas para prefeituras. Me dá gana de saltar pra cima do fornicador e impor um fim à sua sanha procriadora mas ele está carregando uma marreta de nove quilos num dos ombros e decido ficar na minha.

Um galo canta no viveiro das galinhas me lembrando que preciso voltar à bolha de realidade onde vou sufocando torcendo minuto a minuto para que exploda e me exploda junto e me leve para onde são levados os que não sabem viver fora de suas bolhas de realidade.

Cerro as mandíbulas, lanço minha bengala à frente e vou.

Estou usando bengala há umas semanas. Pensei que não fosse ter paciência, que alguns quarteirões apontando esse troço pro chão cuidando pra não enfiar na grade dum bueiro ou em merda de cachorro seriam o bastante para esquecer a brincadeira mas me dei conta de que um processo se iniciava em minha vida e comecei a aceitar este novo processo em que arrasto pra cima e pra baixo este meu novo apêndice que, me dou conta agora, me fez falta desde sempre. E vejo, bem podia ter nascido com três ou mais pernas que me ajudassem a assegurar este meu equilíbrio que sempre foi insuficiente.

Sim, enquanto estava no parque escutava as Gymnopédies de Satie em meu mp3 e esqueci de acrescentar que lá dentro dos tubos de esgoto me sentia no túnel do amor e que meu destino era a terra prometida onde Sylvia me aguardava à mesa para um jantar com trufa rosa, arroz tropeiro com manga e presunto com pêssego e uma caixa de banana de sobremesa e uma edícula presidencial onde me proporcionaria meu orgasmo poético supremo e final, sugando de mim três baldes de esperma para que estes meus instintos sexuais me deixassem definitivamente em paz e eu nunca mais sonhasse cuma buceta.

Lembro que, aos 6 ou 7 anos, chupei um pêssego e pensei estar diante da porta da vida.

Uau, há tanto não me lembrava desse momento hoje absolutamente apodrecido.

Não, não é que a vida não tenha porta.

Tem.

Mas a porta é só o começo dessa conversa.






Nenhum comentário:

Postar um comentário