Música das estrelas, música da Terra

[Capítulo do livro Trinta anos esta noite, de Paulo Francis]


MÚSICA DAS ESTRELAS,
MÚSICA DA TERRA

Nos intervalos de banho, preparativos, beliscadas de comida, telefonemas etc., antes que a noite se tornasse madura para procurar os amigos e o prazer, ouvi naqueles anos todos, em discos ou no rádio, tudo o que Bach, Mozart e Beethoven haviam composto. Ainda não tinha descoberto, ou melhor, não me sentia particularmente atraído por Wagner, paixão futura. Debussy e Ravel eram para mim mais um instrumento do incomparável Walter Gieseking ao piano. Fiquei profundamente chocado ao saber que ele vestira a camisa da SA nazista. Certamente para agradar, por falta de caráter, e não por ideologia, pois quem tira de Debussy e Ravel aqueles sons nada tem em comum com as brutalidades dos alemães dos 1930 e 1940.
Não tenho educação formal em música. Não aprendi a ler partituras, como Bernard Shaw, a quem o crítico A. B. Walker encontrou, no Museu Britânico, estudando alternadamente O capital, de Marx, e a partitura de Tristão e Isolda, de Wagner. Como, de resto, Marx explicaria o priapicídio de Tristão por Isolda? Sim, Tristão morre afogado nas pudendas de Isolda, a que não pode resistir, traindo sua família, sua honra de cavaleiro, a si próprio, enlouquecendo com um desejo que só faz crescer e cuja única saída é a morte. Isolda preside sobre o seu desfecho, ninando-o com uma canção de amor e morte (Liebestod). A que aberração burguesa, ou aristocrática, Marx atribuiria esse destino? Nem convém pensar. Há uma insolência irritante no esplendor dessa música, como na carta cheia de vanglória que Wagner enviou a Liszt quando completou a ópera (apertado por três mulheres, de que queria se esconder), mas nos rendemos, apesar de tudo.
Mas tenho, quero crer, ouvido, e um senso de estrutura musical. A arquitetura de Parsifal, de Wagner, que permanece intoxicante em sua penetração e ressonância na minha alma, ainda que os cantores entoassem o catálogo telefônico, é que me fez ver pela primeira vez a importância de Wagner. Wagner é cosa nostra, tão doido e neurótico quanto nós, ou até mais. Uma amiga minha me disse ouvindo essa música: "Essa é a felicidade que eu nunca tive".
Quando eu ouvia Bach e Mozart, admirava-os, mas têm muito a ver conosco? Para não ir muito longe, leitor amigo, ouça o quarto concerto de Brandenburg, ou a última ária que d. Ana canta para o noivo em Don Giovanni, de Mozart, Non mi dir. Ela foi estuprada pelo Don, que lhe matou o pai. Explica ao noivo por que não vai mais casar com ele. Pede que tenha paciência. Banal? Sim, mas a música, ainda que seguindo esse libreto, nada tem a ver com o que é dito. É uma manifestação de pureza espiritual quase intolerável de se ouvir. Dá a nossa vida corriqueira uma dimensão que não é deste mundo. E talvez não seja, literalmente.
Música é minha única dúvida espiritual. Vem só de seres humanos o que Bach, Mozart e Wagner criaram? Ou há forças espirituais falando por meio deles? Uma pergunta de titia, me digo, sóbrio e a seco, mas quando os ouço penso em origem extra-humana, na graça que perdemos aos sermos expulsos do paraíso, ao nos alienarmos dos animais e coisas, e que cessa de nos perturbar, pois nos integramos de novo durante as horas em que ouvimos a grande música. E Beethoven. Ao ouvir Das Heilige Dankesang, o quarteto de ação de graças, ao menos duvidamos, enquanto persiste a música, que nossa origem seja tão ignominiosa e nosso destino o oblívio. Não consigo ouvir o concerto de violino de Beethoven sem cantá-lo e por isso desisti de ir a salas de concertos, preferindo ouvi-lo em casa. Beethoven é nosso semelhante. Fomos feitos à sua semelhança. A era moderna começa com ele. Bach e Mozart podiam imaginar mundos de certeza que não nos são mais acessíveis. Wittgenstein sentia em Beethoven a expressão do silêncio que pregava para o que não pudesse ser provado logicamente. Mais perto do meu fim, certamente, do que do meu começo, não vejo por que não soltar minha imaginação.
Vìrginia Woolf dizia que a natureza humana mudou em 1912. Uma grande frase, mas que significava apenas que Virgínia, menina, achava a cozinheira da família Stephen, de seu pai, uma figura majestosa e distante (senti o mesmo pela cozinheira do meu avô, quando garoto). Em 1912, Virgínia, mulher feita, a cozinheira começou a dar palpites políticos. As classes baixas desemudeceram no palco da história. Quando muito, no passado, guinchavam incoerentemente e seus portadores faziam tropel. Agora, uma nova era. Meineke, o historiador alemão, diz que, desde 1890, as massas (palavra cunhada por Mussolini) eram a preocupação suprema da classe dirigente, aristocrática. Pode ser, mas para nós e Virgínia, de classes intermediárias, aconteceu muito mais tarde.
Ouvindo Bach e Mozart, admiro mas percebo que não é comigo. Beethoven é. Um amigo, sentado no meu agradável escritório na Rodolfo (cacófato) Dantas, falando só comigo. Senti na carne os nobres estertores de Coriolanus. Ao ouvir a sétima sinfonia, o que Einstein diz sobre a velocidade da luz me parece mais claro do que sua descrição.
Bach teve vinte filhos, o que é um absurdo (mães nordestinas, no meu tempo de garoto, tinham vinte filhos, contando que dez morressem), e Mozart era escatológico, mas acredito que caibam bem na definição de Tocqueville sobre nobreza, de que, por mais vil seu comportamento e natureza, o aristocrata não pensa baixo. Bach e Mozart também não pensam baixo. Beethoven é sublime, mas conhece o submundo das ruas. Era um republicano. Nunca perdoou Goethe por ter se ajoelhado diante da futura dauphine e rainha da França, a austríaca Maria Antometa, quando esta chegou da sua terra, a Áustria, para ser mulher de Luís xvi. Beethoven mais ou menos aquiesceu em ensurdecer de vez, o que faz dele outro neurótico da nossa estirpe. Com mais gênio; muito, muito mais...


Um comentário:

  1. Bravo!!! Bravo!!! \o/ \o/

    Vaccari, indizível o prazer em ler esse texto e o outro que vc indicou tb...
    esses dias li uma cronica de Rubem Alves onde ele citava que a Arte da Fuga de Bach ficara inacabada, pois o compositor morrera antes de terminar..e logo me lembrei do texto que li no livro "A musica e a vida de Beethoven de Lewis Lockwood", onde o grande Ludwig se refere a Bach como sendo " o deus imortal da harmonia...imortal e deus pra mim em primeiro lugar é Beethoven... Parabéns pelo texto, pelo blog, é sempre muito bom estar aqui!! Um abraço :))

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