Liberdade, enfim

7 de setembro

Você acha que ainda seremos amigos daqui a dez anos? – A pergunta espantosa dele me desarma.
Minha cabeça faz que sim mecanicamente. A pergunta me dá náusea. Não gosto de pensar nesses termos. Passada a perturbação, recobro essa nesga de lucidez que ainda teima em pairar um pouco acima do negrume que formam meus sentimentos e minhas emoções. E então penso:
É muito improvável que não.
E minha abulia habitual se reinstala depois de dois ou três segundos.
Sinto a máscara do desprezo, que raramente me abandona, cunhar um molde em meu rosto.
Naquela época nunca apelava à dissimulação. Era o que era para o que desse e viesse. Não mudei muito, acho. Apenas desenvolvi uns truquezinhos com que procuro graduar um tico esta minha má-vontade natural a estímulos externos. Não funciona às mil maravilhas, bem sei. Não sou nem um pouco convincente. O que tenho de evitar a todo custo é abrir a boca. Caso contrário neguinhos debandam em polvorosa qual baratas subitamente flagradas a perambular gostosamente na escuridão pela pia da cozinha, satisfeitas com o que lhes restou da comilança alheia. Meu tom de voz, nem Laurence Olivier lograria modular. Quando falo, fico com sono. O efeito produzido nos que estiverem nas proximidades é outro. Se alarmam. Me imagino numa rua da Londres durante o Sábado Negro de 194o sob o bombardeio dum enxame de Heinkells com suas bombas de 800 kg de TNT.
Soltei um berro tresloucado de entusiasmo quando o Chile fez seu gol. “Tresloucado” porque o resto do Brasil estava sob aquele manto de mutismo perplexo que se estende até o horizonte nas horas negras e fui ouvindo meu vozeirão se espalhar pelas redondezas acachapadas de silêncio. O resultado não foi alarme e sim mais perplexidade. Uns resmungos pipocaram aqui e ali na vizinhança. Neguinhos estavam a se perguntar quem seria o chileno que ousava comemorar o tento de sua seleção? Por um instante temi que batessem na minha porta exigindo satisfação. Amanhã certamente haverão de me dizer que pensavam que eu fosse brasileiro.
Thomas Bernhard dizia que a Áustria, sua terra natal, era uma “inferno comum em que o intelecto é incessantemente conspurcado e a arte e a ciência, destruídas”. Não chegaria a tanto, de minha parte. Não dou muita bola pro intelecto – sou quase que completamente mercurial, o que Nietzsche chamava dionisíaco, roçando perigosamente o irracional, e olhar este país intelectualmente seria piada estando todos sob o tacão totalitário dum primário qual lula. Quanto a arte e ciência, temos um panteão de gatos pingados. Não à toa, os pintores que se destacam nas paradas são quase todos “peculiares”, “idiossincráticos” – primitivistas ou expressionistas genéricos que não se deixam caracterizar por elementos comuns a uma escola artística ou de época para não ser flagrados em sua mediocridade. Cientificamente, devemos nos classificar entre os cinco piores do mundo, atrás de Gana e Haiti.  Nossos próceres universitários recebem loas de estudiosos franceses sempre ávidos por dar uma banana ao establishment impostos pelos U.S.A. Daí o “renome” de falências éticas da estirpe de Marilena Chauí. A crítica literária continua invisível. Talvez esteja sobrevivendo nos porões da USP ou da Unicamp e se estiver ninguém está prestando atenção – ninguém que escreva na Folha de S. Paulo, bien sûr – veículo que se pretende catalisador das inquietações nacionais ameaçando repercussões atômicas que quando muito ressoam como traques juninos. No Estadão, Arnaldo Jabor continua tentando ser levado a sério como cronista apelando a cafonérrimos, constrangedores diálogos fictícios com Nelson Rodrigues. Rubem Fonseca está no osso e o futuro da raça vai assomando cada vez mais sombrio.
Sou diferente de Bernhard. Bernhard odiava tudo e todos, não odeio senão o que e quem me faz mal. Pra quem não sabe do que estou falando, é uma diferença colossal. Bernhard precisava do ódio para viver e, mais ainda, para escrever. O mundo e a história estão cheios – ou “repletos”, como preferem os agitadores culturais de araque da Folha – de escritores capazes de qualquer coisa para escrever. Porque escrever é letal para os não gênios. Bernhard não era gênio. Talvez a maioria dos que o vulgo considera gênios não são gênios.  Machado era gênio. Mas o vulgo só sabe que Machado era gênio porque alguém lhes deu a dica mastigada. O vulgo só sabe ruminar no meio do rebanho, cabisbaixo, mugindo doce na tentativa do acasalamento mas de mandíbulas fechadas que é pro mugido não chamar a atenção dos predadores. O gado nunca perde a consciência de que existimos sob o lema da cadeia alimentar – embora esteja, neste exato momento, lá fora nas ruas escuras de Sampeia de papo pro ar, se fingindo indiferente ao risco de cair nas garras dum egresso da “comunidade” Paraisópólis.
Escrever não é moleza quando você não tem o dom da chama. Fazer o quê? É uma definição a contento, não é? Poucas coisas neste mundo são mais frágeis que uma chama e estão mais vulneráveis ao ambiente que uma chama. Cada um de nós é uma chama – e os crentes se colocam farisaicamente nas mãos de deus tentando driblar o destino. Hoje no jogo com o Chile os fariseus marcaram presença, como em todos os jogos, como em todos os arranca-rabos entre fariseus. Se benzem implorando que o big boss lá em cima lhes dê a graça da vitória. Só tomam o cuidado de não incluir em suas preces que, para que se deem bem, o adversário tem de foder. Por que raios esses neandertais – e aqueles que os assistem – imaginam que um ser magnânimo e justo e perfeito como deus cairia em tal balela, só o diabo explica. (E parte dos meu leitorado de quase quatro cidadãos ainda tem a empáfia de torcer o nariz pro meu lado quando digo que o conceito de deus é uma enevoada elaboração psicológica e social resultante dos indecifráveis perigos do mundo. Quase ninguém tá muito a fim da “verdade”. Eles querem mesmo é tirar uma casquinha das delícias de viver e, se possível, esticar as canelas sem maiores traumas, de preferência sob uma anestesia religiosa que lhes cumpra as devidas “promessas” pós-morte e não demande grande consistência conceitual. Como sabemos todos, a verdadeira fé flutua acima do nosso parco poder de racionalização empírica.)
A hipocrisia é uma característica comum a cada um de nós, em maior ou menor grau au au? É provável que os crentes respondam que não. A fé é uma capacidade intangível dentro de cada um, não está sujeita à nossa volição. (E aqui os capazes da fé dão de dez a zero em nós pragmáticos emperdenidos que não temos o caminho da entrega à devoção.)
Aquele 7 de setembro o diretor me convocou à sua sala – exatamente como ocorreria com Bernhard – e me intimou a participar do desfile. O tom que tentava passar era, “não há rebeldes que possam se rebelar a ponto de mudar as estruturas”.
Olhando para trás em retrospectiva qual num filmeco de Hollywood, sei que nunca pretendi mudar estrutura porra nenhuma. Estamos cercados de clichês e os clichês são o que nos move e nos define. Como Bernhard talvez respondesse, cara, não quero mudar nada, ainda estou tentando entender o que estou fazendo aqui.
Aqui entraria um sujeito como Bernhard.
E mais ninguém.
Ah, quão vasto é este meu mundo e não tenho sido digno dele.
Lembra a noite daquele sábado em que você aceitou dançar Everybody's talkin' e cedeu quando te puxei pro meu peito e aconchegou o rosto contra o meu como se eu não fosse o saci-pererê?
A dança terminou.
Vou embora. (Okay, explico, a salada dos tempos verbais... puta que pariu.)
Saio para o mundo. De novo.
O mundo não existe. O mundo está por ser feito.
Só não me botem nas garras dos medíocres, é tudo que peço.
Nasci e cresci num mundo refratário ao truque. Mesmo a religião não era truque, mas modo de sobrevivência. Posso culpar por isso meus pais com quem tenho sonhado os últimos vinte anos?
É triste ter de reconhecer, outra vez, que escrevo senão para mim mesmo.
Escrevo para mim mesmo.
Vivo para mim mesmo.
Você vai me culpar, sei. Vivemos para nós mesmos mas não podemos confessar. Não neste modo de vida ritualizado que escolhemos seguir. Outros talvez existam. E daí? Somos a espécie de todas as probabilidades.
Naquele 7 de setembro marchei no sentido contrário. Para que o mundo deles parasse e o meu prosseguisse. O diretor e sua diretoria entraram em estado de choque. Pulmões se paralisaram. As digníssimas esposas das autoridades reprimiram um ohhhhh.
E Neymar mirou concentrado o alvo e fez o maior gol contra de todos os tempos.
E o mundo começou a girar ao contrário.
Comemorei silenciosamente. Logo virá a reviravolta.
Da reviravolta.