Quem me lê sabe que um
dos meus temas recorrentes é a porta da vida, assim chamada, ao que eu saiba,
somente por mim mesmo e ninguém mais, pois o rebanho que pasta apático no meio
do capinzal está é se lixando para o fato de que a vida possa ter porta,
janela, ralo ou claraboia, no que lhes dou, em parte, razão, sou escritor
generoso, estou, quando posso e minha abulia mo permite, atento às fraquezas
humanas, sou eu quem sou, confesso, arquiteto errado na obra errada (meus
lábios tremem e coçam, desconfio se será sinal de que estou tentando aplicar
uma (indeletéria) peça).
Quem me lê também sabe
que a primeira vez que abri a porta da vida foi durante um ultrafugaz momento,
há quatro ou cinco décadas, em que levei um pêssego à boca e desferi uma
dentada, nada violenta ou faminta, e o cheiro do pêssego (ou da fruta, como
diriam os escribas preocupados com anáforas) me transportou alhures e me vi, sem
luva, sem mística, sem cócegas, na plataforma donde partiria minha nave das
flores lilases que um dia lá trás S. recusou torcendo o nariz dizendo que eram
de velório.
Certo.
Me dei conta então,
naqueles tempos havia em algum canto da casa um forno gélido e peludo onde passava
os dias a hibernar ante a intolerância dos que amava, no armarinho garrafas de
vodka, funil, centenas de maços de Camel Toe, deixando a barba crescer à Tolstoi,
esperando as feridas fechar, lendo Machado no banheiro, matando o tempo arranhando
a pele dos braços, delirando com os sorri-dentes de S., tentando me lembrar
duns versos de S. Plaft, rindo dumas piadinhas internas na minha absoluta
solidão como a de que precisava era duma bússola do labirinto do meu passado no
meu quartinho 1 X 1 m, sorrindo para mim mesmo da minha própria graça, hoje a
moçada tem Borat e tantos outros lixos cinematográficos, hipnotizados desta
nova era de órfãos roedores da vida dos célebres ao sabor dum hambúrguer de
carne e um balde de coca numa mesinha num barracão dum campo de concentração e
engorda de semiliteratos felizes, roubei de deus a chave e optei por morar em
minha caverna, eu e minha cara e meu cheiro e o peso dos meus braços e das
minhas pernas, esfomeado duma fome inescrutável, debulhando meus sonhos
recobertos de infinitas cascas.
Hoje, nestes dias feitos
de hierarquias, perdi o poder de escolha (pensava ter?), parei de acreditar que
ainda disponho duma vasta gama de opções de rumo. Houve um tempo em que não
precisei de amor e carinho, não precisei aprender as lições que aprendi, não
precisei saber o que era absolutamente vital para minha saúde, minha
consciência, minha produtividade e cairia numa gargalhada de deboche se alguém
me dissesse num fim de noite de domingo num balcão de buteco que meu problema
era falta de autorrespeito, se não nos respeitamos ninguém nos respeitará, rindo
de lambuja de “mitos” como independência emocional, autonomia física,
independência financeira, mais uma chance para tentar mais outra vez.
Tudo bem, reconheço
hoje que não tenho cabeça para enfrentar minha verdade. Tentei esticar o prazer
além do possível, quebrei a cara. E o coração. Dos quatro aos seis anos fui
obrigado a usar bota ortopédica. Tinha os pés inusitadamente chatos. Nenhum dos
meus primos, nenhum dos meus colegas de rua tinha tão chatos assim. Com essa
forte tendência à autovitimização, me via desfavorecido pela injustiça divina,
até chegar aos trinta e conhecer homens cujas mães eram prostitutas e marmanjos
que eram, e sempre seriam, virgens. Tudo teria sido muito mais fácil se tivesse
me entregado cedo aos estereótipos. Então poderia ter procurado – e talvez
encontrado – uma mulher também de pés chatos (ou uma que calçasse 47?). Uma donzela
que se dispusesse a me entregar sua virgindade. Kant, dizem alguns, morreu
virgem. Se Kant morreu virgem, acho que eu também poderia me abster de sexo até
a morte, se tivesse me esforçado um pouquinho.
Tudo bem, Gore, sei
que te prometi “ficar longe” do visceral. Quando te leio me envergonho de ser
assim confessional feito um guri de rua sem nada a perder. E quando leio
Gustave Flaubert me constranjo com a desordem do meu estilo e quando leio Marcel
Proust enrubesço ante minhas sentenças abrutalhadas de bruto completamente vocacionado
para ser acariciado por um time de ninfas de juventude eterna.